O que temos de mais caro

Julián Carrón

O testemunho de padre Carrón durante a peregrinação a Loreto (Itália) no dia 16 de outubro

Hoje estamos aqui no Loreto para quê? O que é que nos trouxe aqui, a cada um de nós? Olha para a tua vida: o que é que trouxe você aqui? Porque você veio? É um amor. É um apego do qual não podemos prescindir.
Um amor a quê? Onde nos levou esta história a que pertencemos e que existe há 50 anos? O que é que nos fascinou e continua a nos fascinar, o que é que nos fascina neste momento? Aquilo que nos cativou até à adesão tem um nome: Cristo. Teríamos de apagar toda uma vida, toda a nossa história, se hoje não disséssemos o seu nome.
Sim, hoje podemos clamar diante de todos, cheios de gratidão: “Aquilo que temos de mais caro na nossa vida é o próprio Cristo porque nEle habita corporalmente a plenitude da Divindade”.
A coisa mais querida que nós temos é o próprio Jesus. Todo o nosso mal, a nossa mesquinhez, a nossa fraqueza mortal não pode nos impedir de dizer que todo o nosso amor, a nossa simpatia humana é por ti, Cristo. Não há nada que seja mais interessante. Nada nos tocou tanto como Ele. Jesus, não apenas como objeto do pensamento, mas como experiência real. Tanto mais real quanto maior a transformação que introduziu em você.
Mas ao pronunciar o seu nome não podemos evitar pensar naquele que nos fez conhecê-Lo assim, Dom Giussani. Sim, foi e é por meio dele, da sua pessoa, do seu “sim” a Cristo que nós pudemos conhecer quem é Jesus. É essa a gratidão que hoje todos nós temos por ele, que nos introduziu à realidade de Cristo, que nos permitiu fazer uma experiência de vida que nenhum de nós jamais teria sonhado. Obrigado Dom Giussani pela sua vida, pelo seu testemunho, pelo amor ao nosso destino!
Escuta hoje o clamor da gratidão dos seus filhos!
Foi você quem nos fez reconhecer o cristianismo como acontecimento, por aquela urgência que sempre teve em comunicar o cristianismo nos seus “aspectos elementares, ou seja, a paixão pelo fato cristão enquanto tal, nos seus elementos originais, e nada mais”, como escreveu ao Papa. Sim, nós todos sabemos bem. Foi precisamente o reacontecer do cristianismo como acontecimento, que mudava a nossa vida sempre que entrávamos em relação com ele, aquilo que nos persuadiu. Quantas vezes, ao longo destes anos, participando em algum gesto, qualquer que fosse a situação em que nos encontrássemos, voltávamos maravilhados com o que tinha acontecido: mudados por uma Presença. Uma Presença que investiu de tal forma o nosso eu que já não podemos levantar pela manhã, ir trabalhar ou descansar, olhar para as estrelas ou o pôr-do-sol, rezar ou sofrer, sem que tudo isso seja determinado pela sua Presença.
De tal forma que a nossa vida se tornou memória: comovido reconhecimento da sua Presença. Presença que cada vez mais se tornou familiar, amiga. “Mesmo vivendo na carne, vivo na fé do Filho de Deus que deu a sua vida por mim”. Tudo nasce dEle e dEle partimos sempre. Como nos recordou ontem Dom Giussani: “O início da fé não é uma cultura abstrata [como se fosse um discurso que se aplica às coisas], mas algo que está antes: um acontecimento. A fé é tomada de consciência de uma coisa que aconteceu e que acontece, de uma coisa nova da qual tudo parte, realmente”.
Eis o cristianismo nos seus elementos originais: uma humanidade, a nossa, tal como ela é, que é olhada, abraçada, preferida e exaltada por Jesus. O desejo sem fronteiras do nosso eu, que encontra em Jesus aquela “impossível correspondência” tão ansiada pelo nosso coração. A nossa “humanidade arrasada pela sua mortal fraqueza” que se surpreende a retomar vida cada vez que entra em contato com a sua Presença. A dor pelo nosso mal que se encontra diante de um olhar cheio de misericórdia que o comove até à raiz. “À solidão brutal a que o homem chama a si mesmo, quase para se salvar de um terremoto, oferece-se como resposta o cristianismo. O cristão encontra resposta positiva no fato de que Deus tornou-se homem: esse é o acontecimento que surpreende e conforta a diferentemente má sorte”.
É por isso que a nossa história nos educou a rezar o Angelus, não só como recordação do passado, mas como paradigma da própria natureza do cristianismo: um acontecimento que acontece aqui e agora.

Um Anúncio: “O anjo do Senhor anunciou a Maria”
Este anúncio é dirigido à minha humanidade necessitada. Este anúncio é sempre único, novo. Podia não suceder. O que faz a diferença entre uma devoção piedosa, em que já não acontece nada, e um evento, em que o anúncio se dá sempre como acontecimento e é percebido como a irrupção da novidade que Cristo trouxe à história, é a consciência de que poderia não ter se dirigido a mim hoje. É um acontecimento se muda. Existe se muda.
Dá arrepios pensar nisto! Por isso podemos entrever a comoção de Nossa Senhora. Nossa Senhora comoveu-se com o Infinito porque o Senhor olhou para o nada da sua serva.
Se dá arrepios pensar em Nossa Senhora, imaginem pensarmos em nós! Em mim, em você, tal como somos – coitados, pecadores, ingratos –, é dirigido o mesmo anúncio. O Ser interessou-se pelo meu destino! O Ser, que olha com infinita ternura para o meu nada. “Acaso uma mulher se esquecerá de sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem eu não me esqueceria de ti” (Cf. Is 49,15).
Que falta de afetividade é necessária para não nos comovermos! Precisaríamos ser como pedras.

Uma Liberdade. “Eis a serva do Senhor”. Estou aqui
Nenhuma outra coisa pode desafiar tanto a razão e a liberdade do homem como se encontrar diante dessa ternura do Ser para comigo. “Para Deus não é concebível o próprio agir em relação ao homem a não ser como um ‘generoso desafio’ à sua liberdade”. Seria preciso fechar os olhos, os ouvidos, tudo, para não nos sentirmos desafiados por este gesto único do Ser em relação a mim. Mas não basta fechar os olhos, os ouvidos e tudo o mais, porque Ele entra na nossa fortaleza pelo coração. O assalto é ao coração, que nunca havia experimentado uma coisa há tanto tempo desejada. A descoberta de que o Pai Eterno lhe escolheu. “Amei-te com um amor eterno” (Jer 31,3). Por isso nós estamos fascinados por Jesus que nos fez conhecê-lo. Nunca vimos uma coisa semelhante. É isso que suscita o desejo de permanecer: Eis-me aqui. Mas este permanecer não é passivo, não pode ser passivo, por isso grita:

“Faça-se em mim segundo a sua palavra”
Sim, Fiat, faça-se, é o que urge em Nossa Senhora. Uma urgência que se torna mendicância do Ser porque, uma vez conhecido, já não podemos passar sem ele. Diante deste sobressalto do Ser, Nossa Senhora torna-se filha. “Virgem e Mãe, filha do teu filho, humilde e alta mais que criatura”. Porque foi humilde ao ponto de se tornar filha do seu filho chegou a ser “alta mais que criatura”, ou seja, a sua humanidade atingiu uma plenitude sem comparação.

Um fato. Um fato impressionante
“E o Verbo se fez carne”.
O “sim” de Nossa Senhora permite hospedar o Mistério na carne. E acontece o imprevisto. Caro cardo salutis. A carne, o Verbo feito carne, é o eixo da salvação. Uma presença carnal, afetivamente atraente é a única que pode vencer as nossas resistências. A única esperança para nós, sempre tão tentados pelo fascínio da autonomia, pela afirmação quase homicida de nós próprios que nos leva ao nada. Só a atração do Ser que brilha no rosto de Cristo, presente aqui e agora na carne da Igreja, pode derrotar o fascínio do nada.

“E habita entre nós”
Como pode o Mistério continuar a habitar entre nós? Se há alguém que, como Nossa Senhora, O hospeda, O acolhe. Mas quem é tão inimigo de si mesmo que não se deixa tocar por aquele olhar cheio de paixão pelo próprio destino que o faz renascer, que lhe permite experimentar uma intensidade de vida jamais vista! É por meio de pessoas assim mudadas, que testemunham uma intensidade de vida única, que Cristo continua a estar presente entre nós. “Nem a circuncisão é alguma coisa, nem a incircuncisão, mas a criatura nova” (Gal 6, 15).

Uma Presença, que muda a vida
“Durante 50 anos apostamos tudo nesta evidência!”.
Missão. Esta é a coisa que mais nos interessa. Não pensemos que aos outros, homens necessitados como nós, interessa outra coisa. Tal como nós, eles têm necessidade de que alguém os olhe assim, que se interesse pelo seu destino assim. Essa é a nossa responsabilidade. O que nos foi dado foi -nos dado para todos. É preciso levá-lo a todos, testemunhar o que encontramos.
Para proceder assim hoje, nós bem sabemos, é preciso que tenhamos uma liberdade do outro mundo! Liberdade no ambiente de trabalho, entre os amigos, diante de todos. Essa liberdade não é uma capacidade nossa, mas sim afeição por Jesus. É preciso que cada um de nós precise de Jesus para viver, para respirar. Como a pecadora, que entra na sala de jantar onde se encontrava Jesus a convite de um fariseu e desafia a todos que pensavam mal dela, lavando os pés de Cristo e enxugando-os com os cabelos. É livre perante todos. Estava tão grata pelo perdão recebido que não teve vergonha de exprimir todo o seu afeto por Jesus diante de todos.
Porque este é o desafio que nós, cristãos, temos hoje pela frente: “Foi a humanidade que abandonou a Igreja ou a Igreja que abandonou a humanidade?”. “A Igreja – disse Dom Giussani – começou a abandonar a humanidade, na minha opinião, na nossa opinião, porque esqueceu quem era Cristo, não se apoiou sobre…, teve vergonha de Cristo, de dizer quem é Cristo.”. É preciso uma grande afeição para não nos envergonharmos de Cristo.
Peçamos a Nossa Senhora, “fonte vivaz de esperança”, esta graça: que, além de nos sustentar na fadiga do viver, nós amemos tanto Jesus que não nos envergonhemos dEle diante de todos os homens que encontramos, de tal modo que eles possam, por meio de nós, encontrar o que nós encontramos. Que o mal não vença em nós e possa resplandecer em nós a Sua vitória no tempo, “aquele apaixonado amor, aquele apaixonado ardor pelo mistério do homem”, de cada homem.

(Texto publicado em Passos n.57, Dezembro 2004