Testemunhas que tornaram visível o essencial

Canonizações. A herança viva de João XXIII e João Paulo II
Julián Carrón

Seria preciso recuar à situação da Igreja nos anos 1950 para entender o alcance histórico dos dois Papas que hoje são canonizados. Uma Igreja que corria o risco de ficar fechada em si mesma, com grande dificuldade para estabelecer uma relação adequada com o pensamento moderno, precisava de uma reviravolta memorável para tornar a anunciar Cristo de modo convincente e atraente aos homens do nosso tempo.
“A longanimidade misericordiosa de Deus para a salvação do homem”: foi com estas palavras que Dom Giussani sintetizou o testemunho do Papa bom, o qual, na Pacem in Terris, havia intuído que a “fratura” entre fé e vida, nos batizados, “é o resultado, pelo menos em parte, da falta de uma sólida formação cristã. É, por isso, indispensável que a educação da mocidade seja integral e ininterrupta” (n. 152).
Quem teria imaginado, apenas pouco tempo antes, um evento como o Concílio Vaticano II? Era preciso uma personalidade simples como a de João XXIII para assumir a total responsabilidade de convocar um concílio ecumênico. E embora tenha sido Paulo VI a guiar os trabalhos conciliares, o mérito de tê-lo convocado e de ter estabelecido o seu andamento inicial será sempre do Papa Roncalli. Como observou no longínquo 1968 o então Joseph Ratzinger, ele “faz parte dos poucos que são verdadeiramente grandes, que, vencendo todos os esquemas, experimentam pessoalmente, de modo criativamente novo, aquilo que está na origem, a própria verdade, e conseguem pô-lo em evidência novamente”. Parece que estamos lendo um dos muitos chamados de atenção ao essencial do Papa Francisco.
Se a João XXIII cabe a honra de ter proclamado o Concílio, sem dúvida se deve ao outro Papa a ser canonizado, João Paulo II, a honra ter acolhido o mandato conciliar e a ânsia pela sua realização, que tinha sido a de Paulo VI. Depois de anos de desorientação do chamado pós-Concílio (a que o Papa Montini se referiu como um “dia de nuvens, de tempestade, de escuridão, de procura, de incerteza”), em que se via claramente aquilo que já não fazia falta, mas ainda se procurava aquilo que verdadeiramente podia responder aos desafios do presente, a chegada de João Paulo II representou uma lufada de ar fresco para uma Igreja em dificuldades.
Talvez só agora comecemos a nos dar conta da natureza do impacto que a sua eleição produziu na vida da Igreja. Ele conseguiu inverter “com a força de um gigante – força que lhe vinha de Deus –, uma tendência que parecia irreversível”, ajudando “os cristãos de todo o mundo a não ter medo de se dizerem cristãos, de pertencerem à Igreja, de falarem do Evangelho” (Bento XVI, Homilia na Beatificação de João Paulo II, 1º de maio de 2011). O Papa Wojtyla encarnou, como disse dele Dom Giussani, “a clara certeza do que significa o conteúdo da mensagem cristã também para a história deste mundo. A fé no Deus feito homem, com o consequente entusiasmo por este Homem, no qual é possível depositar toda a esperança dos indivíduos e do mundo inteiro”.
Quem não recorda o impacto da encíclica programática Redemptor Hominis? “O homem não pode viver sem amor. Ele permanece para si próprio um ser incompreensível e a sua vida é destituída de sentido, se não lhe for revelado o amor, se ele não se encontra com o amor, se não o experimenta e se não o torna algo seu, se nele não participa vivamente. […] O homem que quiser compreender a si mesmo profundamente — não apenas segundo imediatos, parciais, não raro superficiais e até mesmo só aparentes critérios e medidas do próprio ser — deve, com a sua inquietude, incerteza e também fraqueza e pecaminosidade, com a sua vida e com a sua morte, aproximar-se de Cristo. Ele deve, por assim dizer, entrar nEle com tudo o que é em si mesmo, deve ‘apropriar-se’ e assimilar toda a realidade da Encarnação e da Redenção, para encontrar a si mesmo” (n.10).
Com o seu testemunho pessoal de um cristianismo vivido com uma consciência e audácia únicas, João Paulo II repropôs de modo genial o fundamento teológico da fé católica nas encíclicas trinitárias: Cristo, centro do cosmos e da história (Redemptor Hominis); Deus Pai, rico em misericórdia (Dives in Misericordia); o Epírito Santo, Senhor e doador de vida (Dominum et Vivificantem). E ao mesmo tempo, o Papa Wojtyla mostrou também todas as implicações antropológicas e culturais da fé cristã para a vida do homem: a razão exaltada e curada pela fé (Fides et Ratio); a dependência da moral da fé (Veritatis Splendor); o alcance da fé para a economia e o trabalho (encíclicas sociais); a natureza missionária da fé (Redemptoris Missio); a capacidade da fé de iluminar o mistério da dor (Salvifici Doloris), da vida umana (Evangelium Vitae), da família (Familiaris Consortio). Assim, o homem pode compreender a promessa que a fé cristã traz consigo para responder aos anseios de realização em todos os aspectos da vida.
Em 2005, o então Cardeal Jorge Mario Bergoglio prestou homenagem a João Paulo II falando dele como de “um homem que se põe em jogo com todo o seu ser e, com todo o seu ser e com a sua vida inteira, com a sua transparência, confirma aquilo que anuncia”. Uma testemunha que tornou visível o essencial, que é Jesus Cristo, o Único que salva o humano e enche de alegria o “coração inquieto” de cada um.

* presidente da Fraternidade de Comunhão e Libertação

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