«Na simplicidade do meu coração, cheio de letícia, vos dei tudo aquilo que tenho»

Testemunho durante o encontro do Santo Padre João Paulo II com os movimentos eclesiais e as novas comunidades. Roma, Praça de São Pedro, 30 de maio de 1998
De Deixar marcas na história do mundo, Cia. Ilimitada, 2019, pp. 9-13
Luigi Giussani

Vou tentar dizer como nasceu em mim uma atitude que eu não poderia prever, nem muito menos querer – e à qual Deus viria a dar Sua bênção, segundo Sua vontade.

1. “Que é o homem, para dele assim vos lembrardes e o tratardes com tanto carinho?” (Sl 8,5) Nenhuma pergunta jamais me impressionou tanto como essa, em toda a minha vida. Que adianta a alguém ganhar o mundo inteiro, mas arruinar a sua vida? Que poderia dar em troca de sua vida?” (Mt 16,26; cf. Mc 8,36ss; Lc 9,25s). Nunca ouvi de ninguém uma pergunta que me deixasse tão sem fôlego como essa, feita por Cristo!
Mulher alguma jamais ouviu outra voz falar de seu filho com semelhante ternura original e indiscutível valorização do fruto de seu seio, com uma afirmação totalmente positiva de seu destino; só a voz do judeu Jesus de Nazaré. Mas, mais ainda, nenhum homem pode sentir-se afirmado com essa dignidade de valor absoluto, independentemente de qualquer sucesso seu. Ninguém no mundo jamais pôde falar assim!
Só Cristo se interessa totalmente pela minha humanidade. É a surpresa de Dionísio, o Areopagita (século V): “Quem poderá jamais falar do amor ao homem que é próprio de Cristo, transbordante de paz?” Repito essas palavras a mim mesmo há mais de cinquenta anos!
Por isso, a Redemptor hominis entrou em nosso horizonte como um clarão bem no meio das trevas que envolvem a terra obscura do homem de hoje, com todas as suas confusas perguntas. Obrigado, Santidade.
Era uma simplicidade de coração o que me fazia sentir e reconhecer Cristo como excepcional, daquela maneira imediata e cheia de certeza, como a que se dá diante da evidência incontestável e indestrutível de fatores e momentos da realidade, que, tendo entrado no horizonte de nossa pessoa, nos tocam até chegar ao coração.
Reconhecer o que é Cristo em nossa vida invade, portanto, a totalidade de nossa consciência do viver: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6).
“Domine Deus, in simplicitate cordis mei laetus obtuli universa” (“Senhor Deus, na simplicidade do meu coração, cheio de letícia Vos dei tudo”), diz uma oração da liturgia ambrosiana. Podemos ver que o reconhecimento é verdadeiro pelo fato de a vida, assim, ter uma última e tenaz capacidade de letícia.

2. De que modo essa letícia, que é glória humana de Cristo e me enche o coração e a voz em certos momentos, pode ser descoberta como verdadeira e razoável para o homem de hoje? Pois esse Homem, o judeu Jesus de Nazaré, morreu por nós e ressuscitou. Esse Homem ressuscitado é a Realidade da qual deriva toda a positividade da existência de qualquer homem.
Toda experiência terrena, vivida no Espírito de Jesus, Ressuscitado da morte, floresce no Eterno. Esse florescimento não desabrochará só no fim dos tempos; ele já começou, no crepúsculo da Páscoa. A Páscoa é o início desse caminho para a Verdade eterna de tudo; caminho, portanto, que já está dentro da história do homem.
De fato, Cristo, como Verbo de Deus encarnado, torna-se presente, enquanto Ressuscitado, em qualquer tempo, ao longo de toda a história, para chegar desde a manhã de Páscoa até o fim deste tempo, deste mundo.
O Espírito de Jesus, do Verbo que se fez carne, torna-se experimentável para o homem de todos os tempos mediante Sua força redentora, que redime a existência inteira de cada pessoa e da história humana, e mediante a mudança radical que produz naquele que se depara com Ele e, como João e André, O segue.
Assim também para mim a graça de Jesus, na medida em que pude aderir ao encontro com Ele e comunicá-Lo aos irmãos na Igreja de Deus, tornou-se a experiência de uma fé que na Santa Igreja, ou seja, no povo cristão, revelou-se um chamado e um desejo de alimentar um novo Israel de Deus: “Populum Tuum vidi, cum ingenti gaudio, Tibi offerre donaria” (“Vi Vosso povo, com grande alegria, reconhecer a existência como oferta a Vós”), continua a oração da liturgia.
Vi assim acontecer a formação de um povo, em nome de Cristo. Tudo em mim se tornou realmente mais religioso, até o ponto de chegar a ter uma consciência voltada a descobrir que “Deus é tudo em todos” (1Cor 15,28). Nesse povo, a letícia tornou-se “ingenti gaudio”, ou seja, fator decisivo de sua história, como positividade última e, por conseguinte, como alegria.
O que poderia parecer, no máximo, uma experiência individual transformava-se num protagonismo na história, instrumento, portanto, da missão do único Povo de Deus.
É nisso que se baseia, hoje, a busca de uma unidade manifesta entre nós.

3. Termina assim o precioso texto da liturgia ambrosiana: “Domine Deus, custodi hanc voluntatem cordis eorum” (“Senhor Deus, salvai essa disposição do coração deles”).
A infidelidade sempre se insurge em nosso coração, mesmo diante das coisas mais belas e mais verdadeiras, nas quais, ante a humanidade de Deus e a simplicidade original do homem, este pode fraquejar por debilidade e preconceito mundano, como Judas e Pedro. Até mesmo a experiência pessoal da infidelidade que sempre se insurge, revelando a imperfeição de qualquer gesto humano, clama pela contínua memória de Cristo.
Ao grito desesperado do pastor Brand, no drama homônimo de Ibsen (“Responde-me, ó Deus, na hora em que a morte me engole: não é então suficiente toda a vontade de um homem para conseguir uma só parcela de salvação?”), responde a humilde positividade de Santa Teresa do Menino Jesus, que escreve: “Quando sou caridosa, é só Jesus que age em mim”.
Tudo isso significa que a liberdade do homem, sempre implicada pelo Mistério, tem como forma suprema e incontestável a oração. Assim, a liberdade apresenta-se, segundo toda a sua verdadeira natureza, como pedido de adesão ao Ser, portanto a Cristo. Mesmo dentro da incapacidade, dentro da grande fragilidade do homem, a afeição a Cristo está destinada a perdurar.
Nesse sentido, Cristo, Luz e Força para todo seguidor seu, é o reflexo adequado da palavra com que o Mistério aparece em sua relação última com a criatura, como misericórdia: Dives in Misericordia. O mistério da misericórdia supera qualquer imagem humana de tranquilidade ou de desespero; até o sentimento do perdão pertence a esse mistério de Cristo.
Esse é o abraço último do Mistério, contra o qual o homem – mesmo o mais distante e o mais perverso, ou o mais obscuro, o mais tenebroso – nada pode opor, nada pode apresentar como objeção: pode abandoná-lo, mas abandonando-se a si mesmo e ao próprio bem. O Mistério como misericórdia continua sendo a última palavra, mesmo sobre todas as piores possibilidades da história.
Por isso, a existência exprime-se, como último ideal, na mendicância. O verdadeiro protagonista da história é o mendicante: Cristo mendicante do coração do homem e o coração do homem mendicante de Cristo.