O valor de algumas palavras que marcam o caminho cristão

Palavra entre nós
Luigi Giussani

Reflexões sobre o significado da Cruz e Ressurreição de Cristo

L’Osservatore Romano, edição italiana, de 06 de abril de 1996. Também in Litterae communionis, março abril de 1996, pp. 46-47

A Páscoa, fazendo memória da cruz e ressurreição de Cristo, pode ser uma ocasião para chamar a nossa atenção e a de todos para o valor de algumas palavras que marcam o nosso caminho cristão.
Anima-nos um amor à nossa humanidade, ou seja, àquela espera de realização total que todo homem tem: trata-se de reconhecer o objetivo de tudo o que existe e da história, com as suas cruzes e as suas ressurreições. Por isto, queremos desenvolver o percurso dos termos que usamos.
1) Seguindo uma certa inspiração bíblica, definimos de bom grado com a palavra “coração” aquelas exigências originárias com base nas quais o impacto com a realidade é criticamente verificado, e cuja satisfação justificaria a verdade da proposta.
O dinamismo da razão pode ser assim sintetizado: como consciência da realidade que emerge na experiência segundo a totalidade dos seus fatores.
Menos do que a totalidade, não existe razão, considerando, como nós consideramos, a razão como instrumento indispensável do eu.
O desenvolvimento da dinâmica da razão leva o nome de cultura, ou seja, consciência crítica e sistemática da experiência: o termo “crítica” liga a experiência a um ponto supremo – totalidade, como dissemos –; “sistemática” liga a experiência à coerência ideal na história e no tempo. Seja como for, a mais bela definição de crítica nós encontramos na Primeira Carta aos Tessalonicenses (5, 21): “Pánta dókimazete to kalón katéchete”. Avaliai todas as coisas e ficai com o que tem valor.
Em qualquer ato da razão, tendo-se listado todos os fatores que podem ser identificados, há um ponto, um sopro, uma abertura, um ponto de fuga imprevisto – como reconhece Montale: “Um imprevisto é a única esperança”, ou Kafka: “Existe um ponto de chegada” –, por causa do qual toda experiência julgada pela razão remete a uma região misteriosa, a uma realidade de Mistério: Deus.
A razão não pode pretender conhecer nem mesmo um pedacinho só desse Mistério, mas unicamente aproximar-se do seu calor de fonte e da sua luz original através de insatisfeitas aproximações analógicas.
O Mistério só se deixa conhecer revelando-se, tomando ele mesmo a iniciativa ao colocar-se como fator da experiência humana, quando e como quer. Isto é esperado com supremo desejo pela razão.
Parece-nos que negar a possibilidade de registrar este surpreendente desvelamento do Mistério na experiência é renegar a razão como categoria da possibilidade, ou seja, como relação com o Infinito, como relação, justamente, com a existência do Mistério registrada, ainda que em meio a trevas, de maneira segura.
2) Há um acontecimento, um fato absolutamente original e mesmo assim ocorrido: um homem se disse Deus. Deus quis se tornar familiar ao homem – com ternura – como seu companheiro de caminho rumo ao destino para o qual o criou, redimindo as suas fraquezas, até as mais desproporcionais ao ideal.
Este acontecimento implica o ato fundamental de assumir a promessa feita profeticamente ao povo hebreu, e a sua realização, ou seja, o cumprimento da profecia como fato na história.
Diante da história judaica, não há vibração de consciência humana que seja mais em sintonia e mais humilde – quase como se pedisse desculpas pela sua certeza àqueles que carregaram “pondus diei et aestus”, ou seja, carregaram todo o peso da história precedente –, e mais pacífica na afirmação da realização total que já aconteceu para todo o universo no judeu Jesus de Nazaré morto e ressuscitado.
O fato de que Cristo seja Deus não é um achado da razão, mas é um achado da razão o encontro com uma humanidade presente, excepcional em relação a todas as outras, incomparavelmente correspondente às exigências do coração. “Quem é este homem?”, dizem os amigos e os críticos entendidos. A resposta desconcertante e imprevisível é aceita por causa da evidência de verdade e da certeza de confiabilidade incomparáveis introduzidas pela convivência com Ele e julgadas segundo os ideais da razão. “Eu sou o Verbo de Deus que bateu à porta da casa do homem para ser nela hospedado, aliás, para ser parte dela”.
Santo Agostinho diz: “Quid fortius desiderat anima quam veritatem?”; pergunta e resposta estão no outro antigo aforismo: “Quid est veritas? Vir qui adest”.
3) O realismo da presença de Cristo assume no tempo a forma de uma companhia que é motivada inteiramente como fé nEle. Ele é a verdade e a vida. A Igreja, sinal no qual está a Sua presença pessoal, metafisicamente “corpo místico” e, na história, “povo” – Paulo VI falou de uma “entidade étnica sui generis” –, sinal comunitário e histórico, é a Sua presença em nós a cada momento do tempo. O fim da história é a revelação do valor absoluto da Sua presença, contingente na Palestina, e estendida por energia do Espírito a todo o tempo da Igreja.
4) Moralidade não são leis de dinamismos descobertos mais ou menos cientificamente pela análise racional nos movimentos da evolução humana, mas a atração descoberta e razoavelmente reconhecida diante daquela presença excepcional à qual se adere, que se ama na simplicidade (originalidade) do coração, à qual se liga a adesão realizada como tentativa no ato – “Sim, eu te amo” – de São Pedro, imitando-a, ou seja, seguindo a sua modalidade de realização existencial.
Trata-se da característica do esforço humano a partir de dentro de uma fraqueza original, cuja incoerência habitual é perdoada, ou seja, dotada novamente, no amor, de uma capacidade de retomada contínua.
Moralidade é a intensidade e a propensão contínua desta retomada.
5) A companhia cristã é o hoje do mundo.
A festa da Páscoa e todas as festas cristãs são a inicial mas certa, provisória mas autêntica, experiência da antiga promessa.
A essência do tempo, cristãmente falando, é festiva por causa da presença de um companheiro com o qual qualquer aventura de trabalho é possível, indício certo de uma imagem última realizada; e com o qual qualquer parcialidade e estranheza é revestida de uma propensão unificante que organiza os caracteres da existência pessoal em uma capacidade de relacionamento com todos os outros homens chamados para a obra de Deus, e que, portanto, introduz um rosto de socialidade plenamente realizada.
O nosso coração é invadido pela imagem criada por João Paulo II na Tertio millennio adveniente: “O tempo, na realidade, cumpriu-se pelo próprio fato de que Deus, com a Encarnação, desceu para dentro da história do homem. A eternidade entrou no tempo: que ‘cumprimento’ seria maior do que este? Que outro ‘cumprimento’ seria possível?”.
6) Nesta fé se desenvolve a esperança, pela qual qualquer tentativa humana de libertação, pessoal ou coletiva, é considerada e consagrada na sua positividade eterna, como veículo profético que mantém desperta uma espera de totalidade que se manifestará no final da história. “Chegou a hora. Pai, glorifica o teu filho, como o teu filho glorificou a ti”.
Esta esperança escatológica gera uma atividade que tende ao encontro com toda e qualquer presença humana empenhada neste sentido (ecumenismo) e, dada a aproximação inevitável de toda construção poeticamente consistente, coloca diante de toda e qualquer morte – ou seja, de todo e qualquer limite extremo – a misericordiosa vitória do bem.
Assim, o amor é possível até mesmo com o inimigo, com o tirano, por causa da caridade do Último e para com o Último, como paixão de oferta ao Divino, mesmo quando esta oferta não é consciente, de todos os esforços humanos.

O valor de algumas palavras que marcam o caminho cristão

Antologia
Luigi Giussani

Reflexões sobre o significado da Cruz e Ressurreição de Cristo

L’Osservatore Romano, edição italiana, de 06 de abril de 1996.
Também in Litterae communionis, março abril de 1996, pp. 46-47


A Páscoa, fazendo memória da cruz e ressurreição de Cristo, pode ser uma ocasião para chamar a nossa atenção e a de todos para o valor de algumas palavras que marcam o nosso caminho cristão.
Anima-nos um amor à nossa humanidade, ou seja, àquela espera de realização total que todo homem tem: trata-se de reconhecer o objetivo de tudo o que existe e da história, com as suas cruzes e as suas ressurreições. Por isto, queremos desenvolver o percurso dos termos que usamos.
1) Seguindo uma certa inspiração bíblica, definimos de bom grado com a palavra “coração” aquelas exigências originárias com base nas quais o impacto com a realidade é criticamente verificado, e cuja satisfação justificaria a verdade da proposta.
O dinamismo da razão pode ser assim sintetizado: como consciência da realidade que emerge na experiência segundo a totalidade dos seus fatores.
Menos do que a totalidade, não existe razão, considerando, como nós consideramos, a razão como instrumento indispensável do eu.
O desenvolvimento da dinâmica da razão leva o nome de cultura, ou seja, consciência crítica e sistemática da experiência: o termo “crítica” liga a experiência a um ponto supremo – totalidade, como dissemos –; “sistemática” liga a experiência à coerência ideal na história e no tempo. Seja como for, a mais bela definição de crítica nós encontramos na Primeira Carta aos Tessalonicenses (5, 21): “Pánta dókimazete to kalón katéchete”. Avaliai todas as coisas e ficai com o que tem valor.
Em qualquer ato da razão, tendo-se listado todos os fatores que podem ser identificados, há um ponto, um sopro, uma abertura, um ponto de fuga imprevisto – como reconhece Montale: “Um imprevisto é a única esperança”, ou Kafka: “Existe um ponto de chegada” –, por causa do qual toda experiência julgada pela razão remete a uma região misteriosa, a uma realidade de Mistério: Deus.
A razão não pode pretender conhecer nem mesmo um pedacinho só desse Mistério, mas unicamente aproximar-se do seu calor de fonte e da sua luz original através de insatisfeitas aproximações analógicas.
O Mistério só se deixa conhecer revelando-se, tomando ele mesmo a iniciativa ao colocar-se como fator da experiência humana, quando e como quer. Isto é esperado com supremo desejo pela razão.
Parece-nos que negar a possibilidade de registrar este surpreendente desvelamento do Mistério na experiência é renegar a razão como categoria da possibilidade, ou seja, como relação com o Infinito, como relação, justamente, com a existência do Mistério registrada, ainda que em meio a trevas, de maneira segura.
2) Há um acontecimento, um fato absolutamente original e mesmo assim ocorrido: um homem se disse Deus. Deus quis se tornar familiar ao homem – com ternura – como seu companheiro de caminho rumo ao destino para o qual o criou, redimindo as suas fraquezas, até as mais desproporcionais ao ideal.
Este acontecimento implica o ato fundamental de assumir a promessa feita profeticamente ao povo hebreu, e a sua realização, ou seja, o cumprimento da profecia como fato na história.
Diante da história judaica, não há vibração de consciência humana que seja mais em sintonia e mais humilde – quase como se pedisse desculpas pela sua certeza àqueles que carregaram “pondus diei et aestus”, ou seja, carregaram todo o peso da história precedente –, e mais pacífica na afirmação da realização total que já aconteceu para todo o universo no judeu Jesus de Nazaré morto e ressuscitado.
O fato de que Cristo seja Deus não é um achado da razão, mas é um achado da razão o encontro com uma humanidade presente, excepcional em relação a todas as outras, incomparavelmente correspondente às exigências do coração. “Quem é este homem?”, dizem os amigos e os críticos entendidos. A resposta desconcertante e imprevisível é aceita por causa da evidência de verdade e da certeza de confiabilidade incomparáveis introduzidas pela convivência com Ele e julgadas segundo os ideais da razão. “Eu sou o Verbo de Deus que bateu à porta da casa do homem para ser nela hospedado, aliás, para ser parte dela”.
Santo Agostinho diz: “Quid fortius desiderat anima quam veritatem?”; pergunta e resposta estão no outro antigo aforismo: “Quid est veritas? Vir qui adest”.
3) O realismo da presença de Cristo assume no tempo a forma de uma companhia que é motivada inteiramente como fé nEle. Ele é a verdade e a vida. A Igreja, sinal no qual está a Sua presença pessoal, metafisicamente “corpo místico” e, na história, “povo” – Paulo VI falou de uma “entidade étnica sui generis” –, sinal comunitário e histórico, é a Sua presença em nós a cada momento do tempo. O fim da história é a revelação do valor absoluto da Sua presença, contingente na Palestina, e estendida por energia do Espírito a todo o tempo da Igreja.
4) Moralidade não são leis de dinamismos descobertos mais ou menos cientificamente pela análise racional nos movimentos da evolução humana, mas a atração descoberta e razoavelmente reconhecida diante daquela presença excepcional à qual se adere, que se ama na simplicidade (originalidade) do coração, à qual se liga a adesão realizada como tentativa no ato – “Sim, eu te amo” – de São Pedro, imitando-a, ou seja, seguindo a sua modalidade de realização existencial.
Trata-se da característica do esforço humano a partir de dentro de uma fraqueza original, cuja incoerência habitual é perdoada, ou seja, dotada novamente, no amor, de uma capacidade de retomada contínua.
Moralidade é a intensidade e a propensão contínua desta retomada.
5) A companhia cristã é o hoje do mundo.
A festa da Páscoa e todas as festas cristãs são a inicial mas certa, provisória mas autêntica, experiência da antiga promessa.
A essência do tempo, cristãmente falando, é festiva por causa da presença de um companheiro com o qual qualquer aventura de trabalho é possível, indício certo de uma imagem última realizada; e com o qual qualquer parcialidade e estranheza é revestida de uma propensão unificante que organiza os caracteres da existência pessoal em uma capacidade de relacionamento com todos os outros homens chamados para a obra de Deus, e que, portanto, introduz um rosto de socialidade plenamente realizada.
O nosso coração é invadido pela imagem criada por João Paulo II na Tertio millennio adveniente: “O tempo, na realidade, cumpriu-se pelo próprio fato de que Deus, com a Encarnação, desceu para dentro da história do homem. A eternidade entrou no tempo: que ‘cumprimento’ seria maior do que este? Que outro ‘cumprimento’ seria possível?”.
6) Nesta fé se desenvolve a esperança, pela qual qualquer tentativa humana de libertação, pessoal ou coletiva, é considerada e consagrada na sua positividade eterna, como veículo profético que mantém desperta uma espera de totalidade que se manifestará no final da história. “Chegou a hora. Pai, glorifica o teu filho, como o teu filho glorificou a ti”.
Esta esperança escatológica gera uma atividade que tende ao encontro com toda e qualquer presença humana empenhada neste sentido (ecumenismo) e, dada a aproximação inevitável de toda construção poeticamente consistente, coloca diante de toda e qualquer morte – ou seja, de todo e qualquer limite extremo – a misericordiosa vitória do bem.
Assim, o amor é possível até mesmo com o inimigo, com o tirano, por causa da caridade do Último e para com o Último, como paixão de oferta ao Divino, mesmo quando esta oferta não é consciente, de todos os esforços humanos.