Memores Domini

É o nome de uma nova “associação” aprovada pela Santa Sé. Seu objetivo é viver a presença de Cristo no mundo do trabalho. Leigos, praticam a pobreza, a castidade e a obediência. Entrevista com o presidente, monsenhor Luigi Giussani
Lucio Brunelli e Gianni Cardinale

Eles colocam os bens em comum, vivem a castidade e praticam a obediência, mas não usam hábito e não fazem votos. Dedicam pelo menos duas horas do dia à contemplação mas estão inteiramente “mergulhados no mundo” e trabalham para o seu sustento, como todo mundo. Não foi fácil encontrar uma colocação canônica para esses monges leigos do ano dois mil, que se chamam Memores Domini, os que vivem a memória do Senhor. Nasceram em 1964 e foram reconhecidos como “Pia associação leiga” em 1981 pelo bispo de Piacenza (Itália), Dom Enrico Manfredini. No dia 8 de setembro de 1988 a Santa Sé os reconheceu oficialmente como “associação eclesial privada universal”.
Nesse meio tempo, cresceram. Hoje contam com centenas de membros, homens e mulheres, e têm casas na Europa, África e América Latina. O presidente da Memores Domini (“vitalício”, segundo os estatutos da associação), é monsenhor Luigi Giussani. Nesta entrevista, ele conta pela primeira vez a história e o sentido dessa nova experiência de vida cristã, nascida no contexto do Movimento Comunhão e Libertação.

Como e quando nasceu a ideia dos Memores Domini?
LUIGI GIUSSANI: No início dos anos 60, alguns jovens de Gioventu Studentesca [só mais tarde o movimento passou a se chamar Comunhão e Libertação] insistiram para serem acompanhados numa vida de dedicação a Deus no mundo. Fiquei admirado com a proposta, mas não muito de acordo. Tanto que, no início, participei sem muito entusiasmo dos seus encontros quinzenais de oração. Só depois de dois ou três anos percebi claramente que aquilo poderia ser o início de uma realização particular e significativa da experiência cristã que havíamos iniciado alguns anos antes. Com o meu apoio, alguns desses jovens decidiram adotar como casa e centro logístico uma pequena fazenda não muito distante de Milão, que é hoje a casa-mãe da Memores Domini. A minha incerteza se manifestava também no nome genérico, “grupo adulto”, que usamos até pouco tempo para indicar os núcleos que lentamente se multiplicavam.

Qual era o motivo dessa incerteza?
GIUSSANI:
A ideia dessa forma de dedicação não foi minha. Eu obedeci às circunstâncias que veiculavam a proposta que os jovens me fizeram. Além disso, havia o medo de uma nova responsabilidade muito mais grave.

O que significa para o senhor a aprovação pontifícia dessa associação?
GIUSSANI:
É um espaço de segurança pelo qual somos profundamente gratos ao sumo pontífice, porque a aprovação não é só um apoio à nossa tentativa, mas nos mostra aquilo que somos e queremos ser na grande obediência ao mistério da Igreja.

Quais são as regras fundamentais a que um membro da associação deve obedecer?
GIUSSANI:
Elas podem ser sintetizadas nas categorias em que a Igreja tradicionalmente resume a imitação de Cristo: obediência, no sentido que o esforço espiritual e a vida ascética são facilitados e autenticados pelo seguimento; pobreza, como renúncia à posse individual do dinheiro e das coisas; virgindade, como renúncia à família para uma dedicação mais total a Cristo.

O estatuto dos Memores Domini diz que os membros devem viver em casas onde colocam os bens em comum e observam momentos de oração e meditação.
GIUSSANI:
Sim, os Memores Domini devem viver em “casas”, ou seja, em uma companhia determinada, de três a doze pessoas. A companhia à qual o Senhor chama, dando a mesma vocação, constitui como um sinal sacramental, evidentemente em sentido analógico, na qual a presença de Cristo e a dedicação a essa presença é atuada de modo a ser recordada a cada dia e a cada momento, como o primeiro âmbito em que se aprende a viver a fé e a enfrentar e a plasmar, segundo o amor a Cristo, a realidade do mundo. É o lugar prioritário do qual o trabalho, que define toda a vida do homem, deve extrair a sua forma exemplar. Quando os membros da Memores Domini entram em casa são convocados a tomar consciência do porquê estão entre aquelas paredes, a partir da própria disposição dos móveis ou da modalidade do tempo passado em casa. É impressionante perceber aquele pequeno pedaço do mundo como a grande casa da humanidade de Cristo. Então compreendemos por que é tão importante na vida das casas da Memores Domini a insistência sobre o silêncio. Em todas elas existe a obrigação de silêncio total durante uma hora por dia, na qual cada um se coloca diante de Cristo. Esse silêncio profundo deve ser feito também depois de Completas, à noite. É a consciência da casa como início do modo como todos os homens viverão o mundo quando Cristo se manifestar, como primeiro lugar da oferta da própria existência para antecipar isso, que exige uma vigilância que só uma tensão contínua ao silêncio pode favorecer. Esse clima de silêncio físico deve ser mantido durante todo o dia, mas, obviamente não evita a palavra necessária, que deve ser dita com a consciência do ambiente em que se está e com respeito pelo recolhimento dos demais. É suspenso durante as refeições. Os membros da Memores Domini aceitam também colocar em comum o salário e os bens de que dispõem. Aquilo que excede às necessidades de cada casa é depositado em um fundo comum da Memores para ser utilizado em obras de caridade, na missão e em necessidades gerais.

É verdade que a televisão é proibida nas casas?
GIUSSANI:
Não é uma proibição. É um conselho que se não for seguido sem uma justificativa grave é reafirmado com certa energia. A televisão é como a língua: pode ser governada, pode ser usada com racionalidade. Mas a televisão, pelo seu conteúdo normal, dificulta muito a racionalidade em assisti-la. Esse conselho é uma ajuda para nos livrarmos da vaidade de uma curiosidade. Por isso, mais do que a ausência da televisão, que em si mesmo é já uma sadia salvaguarda, vale a advertência sobre a racionalidade no uso do tempo.

São admitidas exceções à obrigação de morar em uma casa dos Memores Domini?
GIUSSANI:
Sim, quando existem sérios motivos familiares ou pessoais. Nesse caso, os membros da associação participam de alguns momentos importantes da vida da “casa”, mas é óbvio que continuam a participar da economia familiar.

Competências vaticanas à parte, o que distingue a associação Memores Domini de uma congregação religiosa ou dos institutos seculares?
GIUSSANI:
A associação Memores Domini não implica a explicitação, nos clássicos “votos”, da perspectiva de vida em que se empenha. Não por uma espécie de reticência, mas porque nos parece que o Batismo e o Crisma são suficientes para fundamentar uma dedicação total a Cristo e à Igreja, sem a necessidade de recorrer à característica formal da vida religiosa que se exprime nos votos. A minha imagem é a de um leigo que vive livremente uma existência totalmente imersa no mundo com uma total responsabilidade pessoal. Não é a pretensão de uma liberdade maior, mas uma prova de estima e de confiança total na responsabilidade pessoal do leigo cristão. Mas há um momento no caminho da Memores Domini em que o compromisso vocacional é assumido diante de toda a comunidade como um compromisso permanente. Esse momento sempre foi considerado como assumir a responsabilidade diante de todo o mistério da Igreja.

Essa determinação de salvaguardar o caráter laical da associação, criando novas formas de vida monástica para os tempos atuais, significa que o senhor considera historicamente esgotada a função das formas tradicionais de vida religiosa?
GIUSSANI:
Eu creio que as associações determinadas totalmente pela fé se mantêm vivas na medida em que respondem aos sinais dos tempos, como diria João XXIII. Ora, é um sinal dos tempos que hoje Deus e Cristo (e tendencialmente a concepção da realidade da Igreja) não são negados mas relegados, no melhor dos casos, à margem da vida, fora da vida com a sua trama de necessidades concretas. Portanto, é preciso dar testemunho de Cristo na realidade mundana, na sua dinâmica cotidiana, no trabalho, porque o trabalho é o fenômeno que expressa o apego do homem à vida, que concretiza a imagem da sua realização. É dentro da condição do trabalho assim concebido, com o seu significado totalizante, que se deve dar testemunho de Cristo. É exatamente esse o objetivo dos Memores Domini: viver a memória do Senhor no trabalho. Em um mundo em que a deificação do trabalho caminha ao lado da difusão de uma religião hedonista, o testemunho de um gosto mais potente, de uma letícia indestrutível, de um novo senso da beleza, de uma verdadeira intensidade afetiva e amorosa, é mais surpreendente que o inevitável e intolerante planejamento que o Estado faz dos sentimentos, até dos mais comuns, que encontra inevitáveis pausas impostas pela dor, pela desilusão e pelo repentino silêncio provoca do pelo tédio ou por um vazio “incompreensível”.
As congregações e ordens religiosas devem se articular nessa encarnação de testemunho, mesmo quando o testemunho é feito diante dos anjos de Deus, no silêncio de uma clausura ou no contexto de uma regra conventual. Operando, no limite do possível e segundo as regras de cada ordem, um renascimento das suas origens, que eram e devem voltar a ser imanentes à vida do povo.

Às vezes, em nome de uma presença junto ao povo, algumas comunidades religiosas tomaram o caminho do ativismo sociopolítico, tornando-se a menina dos olhos de partidos e ideologias tradicionalmente hostis à Igreja...
GIUSSANI:
A dissolução da origem das ordens e congregações não corresponde à exigência de encarnação da qual falei. Se entendêssemos a presença no mundo como identificação com o mundo, assumindo como critério decisivo para a compreensão da vida religiosa critérios e modelos da cultura mundana, fazendo concessões a práticas cuja forma e cuja origem não é Cristo na Igreja, seria uma mentira. Nesse caso, a fé seria julgada pelo mundo em vez de julgá-lo, e sub-repticiamente (mas não muito) seríamos separados da vocação religiosa e do dinamismo que ela implica.

A associação eclesial Memores Domini tem caráter “privado”, como diz o artigo 1° dos seus estatutos. Portanto, não envolve a responsabilidade da Igreja enquanto tal, no seu agir concreto. Há um significado particular nessa medida?
GIUSSANI:
Essa experiência, como também a de Comunhão e Libertação, que a gerou, quer ser totalmente imanente à vida ordinária da Igreja. Se precisa de organização, é apenas para salvaguardar uma solidariedade de ajuda na difícil tarefa do testemunho cristão e para alimentar continuamente o espírito que origina esse compromisso. Assim, é como se eu quisesse que os membros da Memores Domini não fossem distinguidos nem como “associação” na Igreja. Que as pessoas fossem vistas não como membros de uma nova entidade na Igreja, mas pelo exemplo que dão. Nesse sentido, aceitei a fórmula da privacidade.

Depois do permissivismo dessacralizante dos anos 70, hoje, na época da AIDS, há gente até no campo laicista que apresenta “boas razões” para viver castamente. Por outro lado, o mundo religioso não cristão conheceu e praticou o ideal da virgindade, como no caso da “castidade de Estado” das vestais romanas ou da condenação do casamento pelos gnósticos do século II. O que diferencia a castidade cristã dessas formas? Seria porque o consagrado vive a mesma renúncia mas com um objetivo diferente, o serviço aos outros?
GIUSSANI:
A diferença é a mesma que existe entre um cristão e um pagão: o amor a Cristo, o reconhecimento da Sua presença e o estupor cheio de gratidão pela Sua permanência na história. Uma disponibilidade maior ao serviço dos irmão é e deve ser uma consequência normal para quem não deve sacrificar as suas energias físicas e afetivas para formar uma família e educar os filhos. Mas não é este o motivo da virgindade cristã. Um militante revolucionário também poderia impor-se a renúncia à família para se dedicar totalmente à sua causa política. O motivo é acima de tudo porque Cristo chamou alguns dos Seus a essa forma de vida. Se essa foi a forma de vida de Cristo, ela não pode implicar uma mutilação do humano ou uma diminuição do valor afetivo. Então, curiosos, por assim dizer, ou atraídos por essa consideração, nos perguntamos qual era a força do amor com a qual Cristo olhava os homens e mulheres que encontrava, Simão, João, Zaqueu, Madalena. Era um relacionamento que superava tudo e atingia, abraçando toda a humanidade da pessoa, o destino para o qual cada um deles tinha sido criado. Não existe um amor maior do que o amor ao destino do outro. Por ele podemos realmente dar a vida pelos amigos, como disse Jesus. Deste ponto de vista, também um pai e uma mãe que não vivam de algum modo a profundidade desse olhar aos filhos é como se os amassem menos. É a profundidade desse olhar que implica, paradoxalmente, uma distância. Mas é essa distância que possibilita um abraço humano ainda mais profundo. Desse ponto de vista, a virgindade é um ideal para todos, mesmo para aqueles que não a escolheram como estado de vida. Quem a vive como estado de vida é como um indicador na comunidade, para dizer a todos: recordemo-nos de quem somos. Por isso, um dos aspectos mais sugestivos do fato cristão é o relacionamento de José com Maria. Por outro lado, a afeição virginal não cancela nenhuma das características do amor humano. Consagra as preferências e redime as antipatias.

O que o senhor disse não corresponde à ideia comum que se tem da virgindade cristã, como uma amputação (heroica ou paranoica, conforme o ponto de vista) do amor humano ou uma separação mística da “carne” irredimível, como os monges orientais.
GIUSSANI:
Eu estive no Japão e dialoguei com monges budistas. Não sou um especialista em religiões asiáticas, mas a minha impressão é que na mística oriental a virgindade é uma consequência do pessimismo em relação à matéria, da concepção da individualidade como limite à totalidade e portanto como origem do mal. O bem é o tudo, o mal é o particular. A procriação, incancelável objetivo da relação natural entre homem e mulher, é uma contínua geração daquele particular humano em que o mal se torna dor. De qualquer forma, em todas as experiências humanas existe um traço do aspecto supremo da verdade da pessoa que o cristianismo gerou e revelou. São traços de nostalgia de uma pureza última, ineliminável, que fora do cristianismo acabam por se exprimir em formas moralísticas, pessimistas ou violentas.

Os jovens de Comunhão e Libertação não são objeto de insistentes chamadas de atenção às normas da ética sexual católica e o Movimento não faz campanhas para promover as vocações. Apesar disso, continuam a florescer vocações ao sacerdócio, à vida religiosa e à virgindade em jovens normais e pouco propensos, como outros da sua idade, a fazer sacrifícios sem motivo, neste como em outros aspectos da vida. Como o senhor explica esse paradoxo?
GIUSSANI:
É verdade, existe esse paradoxo. Mas eu queria dizer que o aspecto destacado em CL que obtém o resultado a que o senhor se refere é que nós cremos em Cristo morto e ressuscitado, presente “aqui e agora”, para usar as palavras de João Paulo II. Uma presença atual que se mostra e se revela até no aspecto mais contingente da vida da Igreja. Nesse sentido, é toda uma urgência de moralidade que ressurge, dando vibração às leis fundamentais do decálogo e da natureza humana, até a gratuidade absoluta e total do amor do Pai pelo homem. Sem dúvida, o jovem, e também quem não é mais jovem, precisa ser introduzido continuamente na consequência moral, na sua vida concreta, da grande e pacificadora luz da fé. Essa introdução representa o conteúdo de uma educação que é dada em uma companhia. A luz da fé em Cristo dá as motivações das leis nas quais o ímpeto moral, ou seja, o ímpeto rumo ao destino, deve se desdobrar. Portanto, abre a uma facilidade que certamente não evita a dor e o sacrifício, mas persuade a abraçá-los, e quando erramos, a retomar o caminho mais facilmente. O ideal, o ímpeto rumo ao destino que define a moral, não pode evitar a experiência do esforço até o sacrifício, e até o grande sacrifício. Mas quando esse sacrifício é vivido na memória habitual de Cristo, se torna mais racional e traz consigo a letícia. É por isso que nós citamos sempre uma frase da peça O Anúncio feito a Maria, de Paul Claudel: “A paz é feita de partes iguais de dor e alegria”. Nessa perspectiva, os sacrifícios da vida moral se fazem mais facilmente, em paz.

O objetivo da Memores Domini é viver a memória de Cristo no trabalho. Nos meios católicos, quando se fala de testemunho cristão no ambiente de trabalho, são enfatizados os aspectos morais ou sociopolíticos. Qual é a imagem de testemunho cristão que lhe vem em mente quando pensa na presença cristã no mundo do trabalho?
GIUSSANI:
Compartilho plenamente as preocupações acenadas na pergunta, mas nós estamos mais preocupados em formar o sujeito que permite a expressão de um testemunho sem moralismos e com humanidade coerente. A sua origem é a consciência mais atual possível, e portanto habitual, da presença de Cristo e do destino de todo o real para a Sua glória. É necessário ter particularmente viva a consciência do conteúdo da própria personalidade como pertencer a Cristo, para que a personalidade deixe criativamente uma marca diferente nas coisas e no ambiente e por isso estabeleça com criatividade uma forma de relacionamento com os colegas de trabalho, ocupe o tempo com intensidade plena de duração e encha de beleza racional a relação com as coisas no espaço. O sinal mais revelador dessa postura é uma vibração de alegria, que não nasce de um senso menor de responsabilidade, mas se origina na consciência da presença de Cristo que ressuscitou dos mortos e subiu aos céus, e por isso está na raiz de toda a realidade, inclusive da realidade que está ao alcance de nossas mãos. Ele a redime e a faz participante da eternidade. Uma letícia que, nascendo dessa consciência, faz sentir mais a dor, ainda que provisória, do peso das coisas e sobretudo da estraneidade do homem em relação a seus irmãos e aos objetos do seu trabalho. É uma letícia sem irresponsabilidade como diz Czeslaw Milosz na peça Miguel Mañara: “Não te espantes com a minha letícia; não me esqueço de nenhum dos meus deveres”.

Os vaticanistas se dividem entre quem afirma que o senhor se inspirou no pensamento do fundador do Opus Dei e quem destaca, pelo contrário, os elementos de diversidade. Quem está mais perto da verdade?
GIUSSANI:
Quando nasceu o grupo dos Memores Domini eu ainda não sabia o que era o Opus Dei, uma associação que me edifica muito pela sua afirmação clara da verdade cristã e pelo seu esforço de formação da pessoa. Mas eu nunca falei com eles sobre essas coisas, apesar de acreditar que muitas das considerações que fizemos até agora são tranquilamente reconhecidas pelos membros do Opus Dei. Talvez algumas afirmações precisem de maiores esclarecimentos, e eu ficaria contente se me ajudassem a fazê-lo, e outras podem ser pontos de vista diferentes que caracterizam a diversidade dos carismas.

Existe algum segredo quanto aos membros da Memores Domini dentro e fora de CL?
GIUSSANI:
Não há nenhum segredo sobre quem pertence à Memores Domini, como também não se faz nenhuma propaganda. Uma certa reserva me parece uma exigência natural e compreensível. Espero que os membros desse grupo sejam reconhecidos pelas pessoas através do seu testemunho e não pela sua filiação.

Falando de analogias e diferenças com o Opus Dei não é possível não perguntar ao senhor se existem cilícios ou outros instrumentos de mortificação corporal nas casas dos Memores Domini?
GIUSSANI:
Alguém poderia ter essas coisas no seu quarto, porque, quando é possível, cada um deve ter um quarto individual, uma “cela” própria, que não deve ser violada a não ser por um motivo grave. Por isso, um membro dos Memores Domini poderia ter um cilício no seu quarto. Eu não tenho... mas peço humildemente a Deus que isso não signifique um menor desejo de mortificação.

É verdade que os responsáveis das comunidades e das obras mais importantes de CL são escolhidos entre os membros dessa associação?
GIUSSANI:
Não, absolutamente. Von Balthasar me sugeriu várias vezes que o Movimento de CL fosse dirigido pelos Memores Domini, mas eu sempre respondi que não conseguia entender a necessidade disso. É óbvio que tendo que viver a Igreja segundo a vocação que Deus lhes deu, devem viver também a experiência do Movimento. Por isso, são sempre solicitados a dar generosamente as suas energias pelas formas institucionais da Igreja e pelas várias formas de vida do Movimento.

Isso me lembra uma frase que ouvi recentemente em um encontro de CL: “não é automático que quem tenha uma propensão religiosa particular encontre mais facilmente a Cristo”. Essa frase poderia parecer “herética” para a mentalidade moderna. O senhor não acha?
GIUSSANI:
Não vejo nada de “herético” nessa afirmação, porque a propensão religiosa pode agir de tal modo que a pessoa se apega a fórmulas que ela imagina ou a modelos moralistas, por exemplo. No tempo de Jesus, os fariseus tinham certamente uma excepcional propensão religiosa, mas isso não favoreceu nem um pouco a sua aceitação do Messias. A aceitação de Cristo exige um esquecimento de si que está implicado exclusivamente no estupor de um reconhecimento. No momento em que alguém reconhece essa presença, é como uma criança que olha para seu pai e sua mãe. O primeiro momento, ao estender os braços, é um esquecimento de si no qual se realiza o verdadeiro amor a si mesmo. Em seguida, é necessário que essa pureza originária seja mantida, evitando continuamente a queda no império das reações e do aparentemente óbvio.

O senhor sempre recusou para si a definição de fundador. Uma vez ouvi o senhor dizer que não era sua intenção dar vida a um novo movimento católico. Um observador externo a CL poderia deduzir dessas palavras uma espécie de arrependimento ou de desilusão quanto aos resultados organizativos da experiência que o senhor iniciou. Como estão as coisas?
GIUSSANI:
Uma pessoa não pode imaginar e pretender uma graça. Nesse sentido, eu não me considero um “fundador”. O Movimento é uma grande graça para mim e os Memores Domini são o momento mais alto dessa graça. O arrependimento é a consciência continuamente renovada da minha inadequação e também a dor pela inadequação de outros a quem isso foi dado. Não é uma desilusão mas uma tentação ou pelo menos o desejo compreensível de evitar uma responsabilidade grande diante de Deus. É como um pai ou uma mãe: continuam pais por toda a vida, não há nenhum divórcio dos filhos. Por isso, é impressionante do ponto de vista moral e antropológico que Cristo tenha dado a mesma razão para a indissolubilidade do matrimônio e para a virgindade, ou seja, “pelo Reino dos Céus”. É impressionante que o esforço para a fecundidade da virgindade tenha um paralelo no esforço pela indissolubilidade. Nesse sentido, a virgindade é como uma companhia que encoraja os casais. Quem considera atentamente o casamento cristão não se espanta com a virgindade; agradece a Deus por ter dado essa graça à humanidade, porque é como um conforto, profecia e antecipação da redenção plenamente atuada no esforço de hoje. O esforço de hoje, já redimido.

Nos meios católicos, mesmo os mais próximos a Comunhão e Libertação, é normal ouvir observações deste tipo: “como seria bom esse Movimento se a sua alma religiosa não fosse contaminada pela ação dos membros que se lançam em batalhas políticas e jornalísticas inevitavelmente parciais”. O senhor é sensível a esse tipo de observação?
GIUSSANI:
Eu sou muito sensível a esse tipo de observação porque sou muito sensível a todos os tipos de abstração. Mas o mal-estar é mais grave quando a abstração vem de cristãos, porque é o reconhecimento da presença de Cristo e o amor a Cristo que sustentam o homem na esperança, que o obrigam a encontrar e a responder, sem evitar nada, sem se esquivar de nada, a selva de condicionamentos através dos quais o próprio Cristo o chama. Cristo chama o homem através das condições cotidianas concretas, de cada momento. Por isso, os membros de CL, inclusive os Memores Domini, segundo o modo e as circunstâncias através das quais são chamados pelo Pai, devem enfrentar a provocação das circunstâncias na fé e no amor a Cristo, do qual devem sempre recomeçar. O resultado disso depende do mistério da liberdade da graça e do mistério da liberdade da resposta das pessoas e dos limites dos seus dons, humildemente considerados. Aliás, cada um é chamado a pedir a Deus que a fé e o amor a Cristo vibrem de tal modo e determinem o agir humano dando a ele uma determinação boa, tão evidente e resplendente que os outros vendo a sua obra, se perguntem “como fazem isso? por que são diferentes?”: Como Cristo, com os Seus milagres, suscitava nas pessoas a pergunta “quem é esse homem?”.

Jean Guitton escreveu em seu livro Le Christ écartelé (O Cristo dilacerado) que o escândalo diante da “forma que se mistura com a matéria, o eterno com o tempo e o puro com o impuro” constitui a perene tentação da gnose. O senhor concorda?
GIUSSANI:
O que escandaliza é a relação entre a consistência última e única das coisas, ou seja, Cristo, e a forma contingente das coisas. Na raiz da abstração própria desse escândalo está uma ideia errada do transcendente, que dificulta admitir que em Cristo tudo consiste e que o trabalho humano deve manifestar essa consistência. Nesse sentido, a virgindade é o testemunho que a história é o penhor da manifestação da recapitulação de todas as coisas em Cristo. Sem essa visão do transcendente, não haveria nem para o cristão uma alternativa entre a opção fundamentalista – “verdades religiosas” que se impõe de fora à razão – e a elevação da cultura dominante como critério último da ação. Nesse sentido, os Memores Domini contribuem na luta mais dura em ato no mundo e na Igreja: a luta que, opondo fundamentalismo e secularização, nega a possibilidade de uma encarnação e sobretudo da continuidade dessa encarnação na história.

«30Dias» n. 5 - maio 1989