Dom Giussani e aquela “estranha companhia”

Em maio de 2017 chega às livrarias na Itália, o primeiro volume de uma nova coletânea: “Cristianismo à prova”. Agrupa as intervenções de Dom Luigi Giussani nos Exercícios Espirituais da Fraternidade de CL. Eis a prévia de alguns trechos
Luigi Giussani

O homem que começa a entender que o seu ser, a sua personalidade, pertence a Outro é um homem diferente. Pode haver uma analogia distante, mas atraente e patética: quando uma moça está fraca, perdida, deprimida e inquieta, e encontra o rapaz que lhe diz: “Eu quero me casar com você”, essa mesma garota – quantos casos, meus amigos, conhecemos – de um dia para o outro é uma outra, é um outro ser, é uma outra pessoa; desde quando percebe que a sua vida pertence a outro, a sua vida, a sua personalidade muda, isto é, se manifesta a potencialidade que antes parecia estar bloqueada no seu íntimo. Bom, é uma analogia muito distante daquilo que acontece ao homem que tem consciência de que pertence a Cristo, a Deus: “eu” que dizer “pertencer a Ti”, porque Tu és todo o meu ser, és o Senhor, eu Te pertenço também com todos os meus sucessivos lamentáveis erros e as minhas traições, e isto se chama misericórdia e perdão, porque Tu os queima continuamente e os destrói e eu sou continuamente novo graças a este reconhecimento de Ti, meu Senhor, ao qual pertenço, todo, também, portanto, nos meus erros. Ora, é tão diferente um homem cujo horizonte tem a alvorada e a aurora deste sol, é de tal forma um ser diferente, que Jesus, discutindo com um professor da universidade do seu tempo, um tipo importante, um “barão” muito importante, lhe disse: “Se alguém entrar no reino de Deus”, isto é se alguém quer entender a verdade – era um professor universitário, a verdade deveria lhe interessar –, se alguém quer entrar na verdade, “deve nascer de novo”. Nascer de novo! E o disse de uma forma tão decidida, que aquele, que se chamava Nicodemos – terceiro capítulo de São João –, lhe disse: “Mas como faço para nascer de novo? Devo, talvez, entrar novamente no ventre da minha mãe para nascer de novo, agora que sou velho?”. E Jesus não diz que não, diz somente que não é esta a maneira, a expressão única da realidade, existe uma realidade mais profunda: “Aquilo que nasce da carne é carne, mas aquilo que nasce do Espírito é Espírito. Não te impressiones se eu te digo: é necessário nascer de novo. Olhe o vento: tu não sabes de onde vem, nem aonde vai, mas tu o sentes. Assim é quem nasce do Espírito”.

Um momento dos Exercícios da Fraternidade

Tu não sabes como ocorre, mas se sente, se vê os efeitos: é outro homem, outro homem! Cristo faz a comparação inclusive de um novo nascimento, que é uma ideia fundamental em todo o Novo Testamento. São Paulo, ao menos duas vezes, de uma forma incisiva diz: “Mas não importa mais o resto: aquilo que conta é a nova criatura”, no capítulo 6 da Carta aos Gálatas, no final, e no capítulo 5 da segunda Carta aos Coríntios: “Aquilo que importa é a nova criatura!”. Por isso “não vale mais nem o rico nem o pobre, nem a direita nem a esquerda, nem o ocidental em o oriental, não vale mais nem o grego nem o judeu, nem o livre nem o escravo, nem o homem nem a mulher”, aquilo que vale é a criatura nova, o homem novo! Quem entende isto é um novo ser: permanece como todos os outros, mas é diferente! Meu Deus, quanto é verdade! São Thiago inclusive diz que nós somos o início de uma criatura nova, e São Pedro diz, na sua Carta, que nós temos o mesmo sangue de Deus, fomos gerados com o mesmo sangue de Cristo. Mas a parte mais imponente é aquela que se lia antigamente sempre no final de cada Missa e que, infelizmente, agora, com a renovação litúrgica, foi eliminada: “O mundo foi feito por meio d’ele” – de Outro, o Senhor! – sem ele nada daquilo que foi feito teria sido feito. Nele está a vida.

A vida veio ao mundo, aquele “mundo que foi feito por meio d’ele, mas o mundo não o reconheceu. Veio entre os seus e os seus não o acolheram. Mas àqueles que o acolheram, foi dado poder de tornarem-se filhos de Deus: aqueles que acreditaram no seu nome” – “seu nome” é a força com a qual Deus nos faz instante por instante; o nome de Deus é a força que cria-, àqueles que reconhecem, então, de pertencerem a Ele, “os quais, não do sangue nem do querer da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus foram gerados”.

É um tipo de homem tão novo, tão verdadeiramente novo, que as relações que estabelece (se percebe a natureza de um ser pelas relações que estabelece; vale também para um animal, mesmo para uma planta) são diferentes, mais profundas; é um tipo de ser tão novo o homem que reconhece que pertence a Deus, que reconhece que o seu eu é pertencer a Outro, ou seja, que a essência da sua vida, a lei da sua vida é amar – porque amar é reconhecer que Tu és a minha vida, ou seja, a minha vida a afirmar a Ti-, é um ser tão novo, que as relações que estabelece são relações mais profundas do que aquelas que nascem da carne, do prazer, do interesse, da conveniência, da natureza. Desculpem, mas isto é o milagre do qual se entende que Cristo é Deus. Qual é o milagre do qual Cristo disse “o mundo entenderá que sou Deus”? Não a ressurreição dos mortos, não o endireitar a perna daquele que a tinha torta, não o dar a visão aos cegos, porque estes são milagres que servem a quem já acredita, ou a quem está a ponto de crer: o milagre que avassala o mundo é que pessoas estranhas se tratem como irmãos. “Te peço, ó Pai, que sejas uma coisa só, até que o mundo se dê conta que Tu me mandastes”.

Por este motivo, entre eu e você, que eu nem mesmo conhecia, que eu não teria nunca conhecido, com o qual eu não tinha e não tenho nenhum tipo de interesse material, de nenhum tipo – sim, gosto de você, mas isto veio depois, nós fomos colocados juntos antes de constatar que eu gostava de você, e de fato existem muitas pessoas com as quais eu estabeleci relacionamento e que não me são simpáticas, nem eu a elas –, entre nós existe um interesse que é mais profundo do que aquele que tem o teu pai e a tua mãe. Este é o milagre, e isto é aquilo pelo qual fomos chamados: uma nova geração, um novo homem no mundo. Aquelas “novas formas de vida para o homem”, que o Papa [João Paulo II] sinalizava nesta assembleia, como trama expressiva de uma civilização nova da verdade e do amor, nascem não do interesse, do prazer, da conveniência, da coincidência, mas de uma outra coisa: do reconhecer que eu pertenço a Cristo e você pertence a Cristo. É uma coisa de outro mundo, mas que se realiza neste mundo com extrema tranquilidade, como muitas pessoas e certos grupos entre nós nos dão o exemplo. Uma relação tão mais profunda com a mesma carnalidade, tanto é que o reconhecimento do pertencer muda a relação familiar: por exemplo faz viver o perdão, caso contrário impossível – se pode “passar por cima”, mas não perdoar –, faz atravessar cada obsessão. (...)



Esta geração nova, meus amigos, esta graça de escolha, pelo que nos foi dada? Se trata de escolha, amigos, porque estamos aqui em três mil e seiscentos, a Itália é grande, e o mundo um pouco maior ainda, e ninguém sabe. A maior parte de vocês foi sempre à Igreja, mas a pertinência de Deus com a carne e o sangue, com a vida, com o comer e o beber, esta coincidência do Deus com a própria pessoa, e de Cristo com a própria vida, onde é que vocês encontraram? Onde? De qualquer forma, nos foi dada esta graça para que nós a comuniquemos: se chama testemunho. O testemunho é o objetivo da nossa vida, é o aspecto supremo do trabalho da vida, e essa é dada fundamentalmente pela consciência do pertencer. Um homem que está cheio desta consciência testemunha: não são necessárias palavras particulares ou gestos particulares, é necessária uma atitude, ou seja, uma realidade nova de consciência e basta, de alguém que diz “eu” com aquela consciência, na família, entre amigos, na comunidade, na paróquia, no trabalho, é o mesmo. O testemunhar Cristo é o que faz com que exista o cosmo e a história, e nós somos chamados conscientemente a fazê-lo, tornando-nos assim os atores da história: na pequenez, na “paridade”, na mesquinhez, na pequenez das nossas forças, na mesquinhez do nosso coração, fomos chamados para isto. “Não os escolhi” leiam no Deuteronômio “porque sois o povo maior e mais numeroso, mas porque os amei, porque o meu desígnio é assim”. Mesmo na rapidez desta menção, olhais, meus amigos, que nenhum de nós pode escapar deste juízo sobre a sua vida: porque a nossa vida será julgada pelo amor, quer dizer, pela paixão por testemunhar a Cristo, e a paixão do testemunhar a Cristo é a repetição da paixão do pertencer a Ele, de qualquer forma somos. Não o digo porque sou padre e devo falar sempre assim. Falo assim porque sou homem, e continuo padre porque essas palavras respondem à a minha humanidade. Por isso sou idêntico a você, quem quer que você seja.

(de Una strana compagnia, p 141-146, BUR Rizzoli, 352 páginas, 14 Euros)