Passos

Passos N. 266, Março/Abril 2024

Alucinações
A inteligência artificial está no centro do mundo, protagonista de debates em todas as esferas. Ela está entre as prioridades de reflexão até mesmo para o Papa, que dedicou sua Mensagem para a Paz a ela, fazendo perguntas urgentes sobre seu impacto: desde a dignidade do indivíduo até as dinâmicas internacionais e os armamentos. As “máquinas inteligentes”, ao mesmo tempo em que fazem com que as pessoas discutam sobre governança global, já estão lançadas em direção a uma capacidade de cálculo um milhão de vezes maior, o que surpreendeu e assustou até mesmo aqueles que a acionaram. Elas provocam entusiasmo e medo justamente porque não são mais concebidas apenas como ferramentas. Reproduzem ou imitam as capacidades cognitivas humanas e (treinados) geram conteúdo; dão respostas, mas não fazem perguntas; ameaçam a autenticidade com verossimilhança, as chamadas “alucinações”, que são plausíveis, mas não necessariamente verdadeiras.

Portanto, o Destaque desta edição é dedicado à palavra de ordem do progresso irrefreável, para oferecer algumas perspectivas sobre as questões radicais que ele abre: sobre o significado do conhecimento, sobre a relação com a realidade e a verdade. Perguntamos a vários interlocutores como a inteligência artificial desafia a concepção de vida, o que ela revela sobre o homem e seu “ser unitário e irredutível”. É assim que o psicanalista Miguel Benasayag define isso no diálogo que abre a publicação. À pergunta “o que resta do homem?”, quando tanto é delegado a algoritmos e máquinas, ele responde: “Tudo permanece”.

Não se trata apenas de afirmá-lo: é decisivo ver que, diante da inteligência artificial, o homem não está perdido se estiver presente com todo o seu ser. Na verdade, ele é solicitado a estar. É interessante que a chave para tudo seja, cada vez mais, mergulhar na natureza do único assunto em campo. Somente assim o homem também será capaz de programar e usar essas ferramentas por seu formidável poder, fazendo isso com responsabilidade, amando a verdade, sem manipular ou se deixar manipular. Aceitar e não fugir da provocação sem precedentes dessa revolução faz com que os fatores constitutivos da vida surjam com mais força.

No quarto episódio do podcast O senso religioso, Dom Giussani – de quem publicamos um discurso inédito nesta edição pela passagem do 19º aniversário de sua morte, ocorrida em 22 de fevereiro de 2005 – diz: “Se estou envolvido com minha experiência, se olho para meu sujeito em ação no presente, surgem dois tipos de fatores que são irredutíveis um ao outro. O grande filósofo Jaspers disse: ‘Todas as causalidades empíricas e processos biológicos de desenvolvimento... parecem ser aplicáveis a um certo substrato do homem que chamamos de material, mas não ao próprio homem’. Há algo no homem que o excede”. Sabemos que nem tudo pode ser previsto e calculado, mas o que em nós, neste momento, surge como verdadeiramente inacessível até mesmo para o instrumento mais prodigioso?