A difícil disciplina do perdão
Vem à memória a primeira matança dos inocentes, a de dois mil anos atrás. Hoje, deveríamos estar todos unidos contra uma ferocidade que lembra as páginas mais diabólicas da história da humanidade. Contudo, nunca estivemos tão divididos, incapazes daquela unidade que é condição para qualquer tentativa de reconstrução depois da selvageria. Cada um se detém, um instante depois, em considerações importantes, mas não decisivas.
Entretanto, se apenas um entre as centenas de mortos inocentes destes dias (uma das crianças de Beslan, um passageiro dos aviões Tupolev ou do ônibus em Israel) pudesse falar a quem o matou e a nós, revelaria o que falta em todas as nossas considerações: “Por que eu? O que lhe fiz eu para que tu me tenhas eliminado, acrescentando injustiça a injustiça?”.
As assim chamadas conquistas democráticas, a própria “liberte, egalité, fraternité”, justificam-se, no fundo, com base em um único fato: a vida humana não pode ser reduzida a uma quantidade mensurável, de maneira alguma e por nenhum motivo. O terrorismo é a extrema conseqüência de uma concepção do homem como juiz supremo de todas as coisas, que se permite pesar, contabilizar a vida dos humildes, dos miseráveis, dos homens sem rosto. Nenhum palestino sem terra, nenhuma mulher tchetchena, nenhum iraquiano invadido pode permitir-se dispor da vida de um outro, em nome da injustiça que sofre: nenhuma causa pode tratar a vida humana considerando-a como de valor relativo.
É esta a razão forte que pode quebrar a espiral da violência, mas, infelizmente, falta mais ou menos em todos, embora de maneiras diferentes. Assim estoura a primeira e a segunda guerra do Golfo, mesmo contrariando o juízo da Igreja e do Papa, provocando destruição e morte de inocentes; percorre-se o caminho de uma repressão indiscriminada, mesmo sabendo que muitos que não têm culpa serão atingidos e que uma reação ainda mais violenta vai desencadear-se.
Ou, então, de maneira equivalente e oposta, são deixados sós o Primeiro ministro iraquiano e os soldados que tentam impedir no Iraque o nascimento de um novo Estado aliado do terrorismo, capaz de provocar inúmeras outras matanças no mundo. Chega-se a afirmar, em alguns casos até mesmo por parte de certos católicos, que os mortos do terrorismo são um tributo justo a ser pago em razão dos mortos do imperialismo e, por isso, não haveria motivo para indignar-se. O jornal francês Le Figaro relata que, sem mais, o chanceler daquele governo não tem escrúpulo em encontrar-se com os terroristas do Hamas, procurando sua indulgência, no mesmo dia em que estes reivindicavam um atentado que tirou a vida de dezesseis trabalhadores. É o homem medida de todas as coisas, raiz de uma ideologia, a mesma que leva um país civilizado como a Holanda a introduzir a eutanásia para crianças doentes...
Mas então, qual é o caminho viável? No romance Os Noivos, quando Renzo encontra Frei Cristóvão no lazareto e manifesta propósitos de vingança contra Dom Rodrigo, o frade, indignado, obriga-o a perdoar antes de informá-lo de que a noiva Luzia está salva e o Dom Rodrigo acometido pela peste. É o mesmo perdão da viúva do militar Coletta [um dos militares italianos mortos no Iraque no ano passado. A esposa dele pronunciou palavras inspiradas em Roma durante a missa; ndt]; o perdão de um cristão que, faz muitos séculos, começou um novo povo com os Anglos, os Saxões, os Húngaros que lhe haviam matado o pai; o perdão daquele bárbaro que abandonou o antigo ditado “dez vidas por uma vida”, admirado pela humanidade dos Santos Cirilo e Metódio, dos Santos como Patrício e Bonifácio.
A civilização ocidental nasceu a partir da superação da lei do “olho por olho”, a partir de um perdão que não é fraqueza, mas participação na experiência de um Deus que perdoou quem o acusava e matava injustamente e que venceu o mal. Um perdão que se torna positividade, reconstrução, civilização, paz, trabalho, ciência, progresso, democracia, tolerância, possibilidade de que a pessoa seja sempre maior das circunstâncias que deveriam nos oprimir. Infelizmente, não basta organizar “reuniões” de representantes de diversas religiões, se esses encontros permanecem abstratos.
A mulher tchetchena e o palestino em luta, a quem nenhuma reivindicação aceita restituirá o familiar ou o amigo morto, precisam encontrar homens diferentes que, tendo vivido primeiro a experiência do perdão, possam testemunhar uma maneira mais humana de tratar a mulher, as coisas, o trabalho.
Precisam encontrar cristãos que parem de “fazer arremedo” das ideologias e vivam autenticamente seu ser comunidades portadoras de paz; fiéis cristãos que reconheçam e defendam a inviolabilidade do indivíduo. Precisam encontrar muçulmanos movidos profundamente pelo seu senso religioso, que afirmem a sacralidade da vida, como os que redigiram o apelo dos muçulmanos moderados italianos. Precisam encontrar políticos amantes dos povos, como o foram os Pais da Europa.
Portanto, enquanto devemos nos defender do terrorismo, também por meio de operações de “peace keeping” para impedir o surgimento de novos Estados filo-terroristas, cada um de nós não pode furtar-se aos apelos amargurados dos profetas de nosso tempo, quais o Santo Padre João Paulo II, madre Teresa, padre Giussani.
Uma educação ao respeito pela vida, ao perdão, à amizade com o próximo e entre os povos, é o instrumento mais eficaz contra o terrorismo. É o começo do mundo novo.