A vida: Deus se “misturou” conosco
Palavra entre nósNotas de uma palestra de Luigi Giussani na casa de Noviciado das Irmãzinhas da Assunção, que se tornaram em 1993 Irmãs da Caridade da Assunção. Roma, 10 de março de 1970
1. “Iahweh lhe apareceu no Carvalho de Mambré, quando ele estava sentado na entrada da tenda, no maior calor do dia. Tendo levantado os olhos, eis que viu três homens de pé, perto dele; logo que os viu, correu da entrada da tenda ao seu encontro e se prostrou por terra. E disse: ‘Meu senhor, eu te peço, se encontrei graça a teus olhos, não passes junto de teu servo sem te deteres. Traga-se um pouco de água e vos lavareis os pés, e vos estendereis sob a árvore. Trarei um pedaço de pão, e vos reconfortareis o coração antes de irdes mais longe; foi para isso que passastes junto de vosso servo!’. Eles responderam: ‘Faze, pois, como disseste’. Abraão, apressou-se para a tenda, junto a Sara, e disse: ‘Toma depressa três medidas de farinha, de flor de farinha, amassa-as e faze pães cozidos’. Depois correu Abraão ao rebanho e tomou um vitelo tenro e bom; deu-o ao servo que se apressou em prepará-lo. Tomou também coalhada, leite e o vitelo que preparara e colocou tudo diante deles; permaneceu de pé, junto deles, sob a árvore, e eles comeram. Eles lhe perguntaram: ‘Onde está Sara, tua mulher?’. Ele respondeu: ‘Está na tenda’. O hóspede disse: ‘Voltarei a ti no próximo ano; então tua mulher Sara terá um filho’. Sara escutava, na entrada da tenda, atrás dele. Ora, Abraão e Sara eram velhos, de idade avançada, e Sara deixara de ter o que têm as mulheres. Riu-se, pois, Sara no seu íntimo, dizendo: ‘Agora que estou velha e velho também está o meu senhor, terei ainda prazer?’. Mas Iahweh disse a Abraão: ‘Por que se ri Sara, dizendo: será verdade que vou dar à luz, agora que sou velha? Acaso existe algo de tão maravilhoso para Iahweh? Na mesma estação, no próximo ano, voltarei a ti, e Sara terá um filho’. Sara desmentiu: ‘Eu não ri’, disse ela, porque tinha medo; mas ele replicou: ‘Sim, tu riste’” (Gn 18, 1-15).
Essa primeira revelação do mistério da Santíssima Trindade, cheia de sombras – mas já tão cheia de luz para nós, aos quais foi dada a explicação, a palavra definitiva – talvez seja a página do Antigo Testamento que mais nos comova, se a encararmos de frente, se nos colocarmos a meditá-la: é a página do Antigo Testamento que mais nos comove, quando vemos o que Deus se tornou para o homem.
Deus se introduz na vida do homem, e nela se insere com a familiaridade de um diálogo, de um jantar: ser servido pelo homem. Olhemos, contemplemos a figura de Abraão – não se pode entender essas páginas, a não ser mirando-as longamente com o olhar, ou seja, contemplando-as –: “Tomou também coalhada, leite (...) e permaneceu de pé, junto deles”. Peçamos a Deus que faça reviver em nós toda essa comoção e emoção, toda essa vigilância cheia de humildade e solicitude. Imaginemos Abraão, ali, voltado para aqueles três personagens que eram Um (notem essa passagem constante, do singular para o plural e vice-versa, cheia de mistério); experimentemos pensar no rosto que Abraão tinha quando estava ali, de prontidão para servi-los, disponível a eles; pensemos em como a alma, a consciência, o coração de Abraão devia ser todo como uma luz; uma luz não definida, pois era como uma grande aurora que se iniciava, na história da humanidade, dentro da alma, por meio da alma de Abraão, uma vez que esse é o lugar em que o sentido de toda a história do mundo, o sentido da existência de qualquer homem, encontra a sua comunicação: começa a comunicar-se o acontecimento com o qual Deus se torna fator dentro da nossa vida, dentro da vida do homem, com o qual Deus se torna como que um de nós, um de nós, como nós.
Nessa passagem está ainda a sombra da profecia, a primeira aurora, a primeira alusão; mas o valor da vida e de cada homem, o valor da história, está nesse acontecimento. É de um acontecimento que podemos extrair o motivo da nossa segurança, do nosso agir, o mobilizador das nossas ações, o contentamento que temos, a certeza pela qual caminhar: não é tanto de uma reflexão sobre o mundo, de uma análise das situações que podemos extrair as nossas diretrizes, mas do maravilhamento por esse acontecimento – pelo fato de que Deus se misturou conosco –, é do fascínio por esse acontecimento, da contemplação desse acontecimento. O fascínio por esse acontecimento é o início do nosso renascer, da nossa vida. A contemplação desse acontecimento é o lugar em que se delineiam as diretrizes do nosso agir.
Esse acontecimento tem dentro de si uma definitividade inexorável, tem dentro de si um quê de duro e inexorável: quando Sara riu, Iahweh a observou, a repreendeu, mas nem por isso modificou o significado da sua presença, do seu plano. Ele não modifica o seu plano pelo fato de Sara ter rido: “Acaso existe algo de tão maravilhoso para Iahweh? Na mesma estação, no próximo ano, voltarei a ti, e Sara terá um filho”. Todo o Antigo Testamento, a maravilhosa história do povo hebreu, é esse milagre na história de toda a humanidade. Toda a história do povo hebreu é o desenvolvimento do fascínio por essa Aliança; por essa “Aliança” – esse é o termo exato – de Deus com o homem. Aliança quer dizer que Deus se une ao homem, que se une a ele exatamente enquanto acontecimento da vida do homem.
Toda a história do povo hebreu é o desenvolvimento da consciência dessa Aliança, é toda “tecida” com o fio dessa Aliança, e traz dentro de si, continuamente, o ceder à tentação da incerteza, à tentação de deixar que a sua certeza escorregue, ou melhor, que os critérios do seu juízo se desviem para as suas próprias medidas. Sara, que ri: “Eu vou ser mãe agora que estou velha? É impossível, é ridículo”. Diante de Deus, que se introduziu por meio da Aliança com o povo de Israel, esse povo, por assim dizer, está sempre como que dividido entre a figura de Abraão e a de Sara, entre o fascínio atento, devoto, obediente de Abraão e o riso de Sara, o riso incrédulo de Sara. Mas Deus é fiel.
Deus repreende o povo de Israel por essa sua constante escorregar a recolocar sua esperança nas suas próprias medidas, nos seus ídolos, nas suas construções, nas “alturas”, como diz constantemente a Bíblia, “nos templos feitos para os deuses criados por ele”, ou seja, nas suas ações. Deus repreende constantemente o povo de Israel pela sua escorregar a recolocar a sua esperança, a sua estima, nas ações que realiza, naquilo que cria, nos seus projetos, feitos sempre segundo a medida da sua imaginação e da sua fantasia, ao passo que Deus não pode ser medido por essa imaginação, Iahweh é infinitamente maior.
“A tua esperança sou Eu”, Eu, que te falo; não em sentido abstrato – o Deus que não se revelou –, mas Eu, que me revelo a ti. A tua esperança se apóia no acontecimento em que Eu me revelo a ti, no qual Eu estou contigo, a tua esperança está nesse acontecimento. Tu deves conceber toda a tua história em função desse acontecimento, e portanto os critérios das tuas ações devem ser descobertos nesse acontecimento, não em outras coisas. Não deves ser adúltero (como sempre dirão os profetas), não deves introduzir os teus ídolos, as tuas medidas, qualquer que seja a natureza delas.
Deus repreende Israel, mas não trai o acontecimento; o seu acontecimento não falta: “Na mesma estação, no próximo ano, voltarei a ti, e Sara terá um filho”. É preciso ler Deuteronômio 32, 1-55, que é uma das mais belas expressões sintéticas de toda essa dialética entre o povo e Deus. Engordado pelos favores de Deus, Israel responde com coices, procurando sua própria trilha, tendo estima por outra coisa, não pelo acontecimento de Deus (pois este é o primeiro problema, que está na raiz: a estima que nasce do juízo último com o qual a pessoa está diante das coisas); a estima de Israel é dirigida a outra coisa. Deus o repreende, mas diz sempre: “Eu, porém, não retiro a minha palavra”. Deus é fiel porque é justo. A justiça é a coerência de Deus com o seu desígnio. Assim, para quem foi chamado por Deus, a justiça é a coerência ao seu desígnio, ou melhor, é a coerência do desígnio de Deus a nós mesmos, e portanto é a coerência da nossa adesão a esse desígnio. A justiça é só isso. Do contrário, o capítulo 22 do Gênesis (o sacrifício de Isaac) não teria nenhum sentido.
2. Mas depois do capítulo 18 do Gênesis teríamos de ler os últimos capítulos do Evangelho de João, do 14 ao 17, especialmente o 15. Que diferença grandiosa e ao mesmo tempo que continuidade, que continuidade profunda entre o Abraão com a Trindade debaixo do carvalho de Mambré e Jesus, que não chama mais os homens de “servos”, mas de “amigos”, pois deu a eles tudo o que ele é, comunicou a eles tudo o que ele é! Que continuidade profunda, mas ao mesmo tempo que diferença abissal: como a coisa amadureceu, como se cumpriu! Aqui ela está realmente cumprida, mais do que isso impossível. Ninguém ama mais aos amigos do que aquele que dá a vida por seus próprios amigos: mais do que isso não é possível.
Talvez o conceito intuído por São Paulo nos faça entender que mais do que isso é impossível: “Vós sois eu e eu sou vós”. O corpo místico de Cristo, carne da sua carne e ossos dos seus ossos (cf. Ef 5). Mas o Evangelho de João também o diz: “Eu sou a videira e vós sois os ramos; quem permanecer em mim e eu nele dará muito fruto, pois sem mim não podeis fazer nada”: sem esse acontecimento, vocês não são mais nada. Os outros homens ainda podem se iludir colocando a sua esperança nas suas ações, nos seus projetos. Mas vocês não podem nem mais fazer isso, pois quem é marcado, no seu ser, pelo envolvimento de Deus com ele, quem é marcado pelo sinal de Cristo ressuscitado, quem é marcado pelo sinal definitivo, quem tem dentro de si a semente da ressurreição final, o início do fim do mundo, como o cristão (que já tem dentro de si a semente da salvação final, pois tem dentro de si, na sua carne, nos seus ossos, Cristo ressuscitado), não pode mais nem se iludir: esquecer isso é uma traição tal que logo a pessoa se vê vazia, e a sua irrequietude é muito mais patológica do que a irrequietude que o homem do mundo tem dentro de si. Toda a sua ação se reduz a essa irrequietude e a essa verdade: “Sem mim não podeis fazer nada”. Esse é o nosso valor, esse é o valor do nosso rosto, o conteúdo da nossa pessoa.
3. Ora, todas as ações exprimem o que somos. Por isso, este é o motivo, o mobilizador, o critério, e este é o anúncio, a mensagem de qualquer ação nossa: o que ele é para nós, não porque sejamos capazes de fazer alguma coisa sozinhos, como dizia São Paulo, não por causa das obras de justiça que fazemos, mas pela misericórdia com a qual ele nos tratou. É por isso que temos valor e esta é a nossa tarefa no mundo: fomos escolhidos para carregar essa misericórdia; não em primeiro lugar como palavra, mas como expressão da consciência que temos de nós mesmos. Testemunhamos essa misericórdia na medida em que carregamos a consciência de que a nossa substância é ele (“omnia in ipso constant”, diz São Paulo). Pensemos no primeiro capítulo do Evangelho de João. A substância de todas as coisas é Ele; mas nós somos aqueles, entre os homens, que foram escolhidos para entender essas coisas definitivas já desde agora, no tempo; fomos tornados parte do seu mistério, por isso essa realidade definitiva das coisas já é conhecida por nós. E é esta a tarefa: que levemos essa notícia aos outros: “Ide por todo o mundo e pregai esse evangelho, esse anúncio a todas as criaturas”.
Assim, todas as deixas por meio das quais Deus nos solicita, todos os relacionamentos com que Deus nos compromete nada mais são que as trilhas de Deus para esse nosso anúncio. É exatamente esse o conceito de “pobreza”, que constitui o sentimento próprio, e fundamental, do cristão.
Quando a pessoa é cristã, ou seja, quando vive a consciência de que a sua consistência é um Outro (um Outro nela: “O meu viver é Cristo”), com a consciência de que a sua consistência, a consistência do acontecimento do seu existir, é o existir nela de um outro, é o acontecimento de Cristo que se comunica a ela por meio do seu grande mistério no mundo, por meio do mistério da Igreja, corpo místico de Cristo, o sentimento que domina a vida é a pobreza. Quando uma pessoa vive essa consciência, quando vive a si mesma com essa autoconsciência – o conteúdo da nossa autoconsciência é o seu mistério em nós: “Para mim viver é Cristo”; tanto é verdade que o nosso nome mais profundo não é o nosso nome e sobrenome, mas o seu: “cristão” –, então o sentimento da vida, o sentimento que determina a postura da vida, a moralidade (pois “moralidade” que dizer: postura a partir da qual se gera a ação, da qual nasce a ação, que determina a ação), a postura fundamental é a pobreza.
Essa pobreza é definida de uma maneira admirável e existencial por São Paulo, na Segunda Carta aos Coríntios, capítulos 5 e 6: “Tudo isso vem de Deus. (...) Exortamo-vos ainda a que não recebais a graça de Deus em vão”. O que é essa graça? É o acontecimento de Cristo, “diz ele, com efeito: no momento favorável eu te respondi, no dia da salvação eu te socorri; eis que hoje é o momento favorável, hoje é o dia da salvação”. Mas há um outro trecho de São Paulo, da Primeira Carta aos Coríntios, no capítulo 7, no qual essa pobreza é definida de maneira ainda mais clara: “Eis o que vos digo, irmãos: o tempo se faz curto. Resta, pois, que aqueles que têm esposa sejam como se não a tivessem; aqueles que choram, como se não chorassem; aqueles que se regozijam, como se não se regozijassem...”. Esse “como se” é realmente a fórmula da pobreza cristã. O trecho da Segunda Carta aos Coríntios é como que o reflexo psicológico do trecho da Primeira, que por sua vez descreve a postura moral. Aliás, ele indica o nível ontológico do qual é reflexo psicológico o que lemos antes. O primeiro trecho indica a liberdade, a segurança livre, a alegria, a paz (a verdadeira palavra é “paz”, a palavra que Cristo usou) com a qual o cristão vive. Esse segundo trecho, por sua vez, indica o desapego, a pobreza, na sua origem. Mantendo o olhar fito no termo da nossa fé, em Cristo, em Cristo que retorna, é como se tudo o que a pessoa faz saísse do caminho, pois tudo o que a pessoa faz é um único passo rumo a Cristo que retorna. Esta é a pobreza do homem cristão: estamos como que estendidos entre uma graça que nos origina, no sentido literal da palavra, que nos faz nascer (ver Nicodemos), que nos dá um ser novo, e a manifestação desse ser novo que já somos. Essa é a nossa existência. O nosso ser é a aliança de Deus conosco, não mais em meio às sombras que maravilhavam de maneira tão fascinante a Abraão, mas na realidade definitiva de Cristo ressuscitado: “Tudo o que sou eu vos dei”; na realidade definitiva de Cristo ressuscitado somos já filhos de Deus: mesmo que não apareça ainda o que somos (Jo 1).
“Irmãos, já fomos salvos, já estamos salvos na esperança.” E a esperança é pela vinda à tona, pela manifestação do que já temos. Para São João, a espera do cristão não está voltada para bens que virão, mas para a manifestação de um bem que já possui, pois, tendo-nos dado Cristo, seu filho, o que é que, com Ele, o Pai não nos deu? Por isso o cristão não é mais julgado por ninguém, não teme o juízo: “Ninguém mais nos pode condenar, ninguém mais nos pode julgar” (Rm 8).
Portanto, a nossa vida se estende entre essa graça que nos permite sermos novos, que nos dá uma ontologia nova (participação de Cristo, de Cristo ressuscitado: somos co-ressuscitados com ele, como diz São Paulo); entre essa aliança definitiva, a nova e eterna aliança, e a realidade desse novo ser que nos é dado pela aliança de Cristo, de Deus conosco, por meio de Cristo. Desse novo ser que nos dá a aliança desencadeia-se, então, uma só postura, que é a da espera de que se manifeste o que somos. Toda a nossa existência, como toda a história, é a espera da manifestação do que já somos. A história é a espera de que se manifeste Cristo ressuscitado, que já é; a definitividade já está presente na terra da história, e a nossa existência está toda propensa a que se manifeste o que já somos.
Então, estendidos entre esses dois pólos, a nossa vida é realmente pobre, pois a sua esperança não está em nada do que faz, e o juízo de valor não se apóia em nada do que faz: o nosso juízo de valor, a nossa esperança se apóia somente no que Deus fez em nós, na aliança que nos concedeu; a esperança está na manifestação dessa aliança.
4. Ora, de que é feita a existência? A existência, que é a história da pessoa, é feita de ações, que são a expressão, instante após instante, da pessoa. As nossas ações, portanto, devem ser todas geradas na consciência da aliança e estar propensas todas a manifestar essa aliança. Na medida em que manifestarmos essa aliança, nessa medida, testemunharemos o que somos, e nessa medida antecipamos o fim do mundo, o antecipamos para os pobres homens, que são feitos para ele. Na medida em que as nossas ações manifestam o que somos, a aliança de Deus em nós, trazem para o mundo uma antecipação da felicidade final. E o homem espera por isso. No fim das contas, o homem realmente não procura ter duas pernas ou dois braços bons, não procura estar bem de saúde, o homem procura a felicidade, procura o sentido da perfeição da sua vida. Nesse caminho, o homem é muito mais si mesmo, é muito mais homem, sente mais a vida, na medida em que lhe é permitido descobrir o fundo da questão: e Cristo veio para isso, tanto é verdade que não curou a todos, não ajeitou a todos. A tarefa que Cristo nos deu é a de anunciá-lo, não de corrigir todas as cabeças, todos os braços, de tornar todos cultos. Não é isso; aliás, com muito realismo, Jesus disse: “Vós sempre tereis os pobres convosco”. Na medida em que essa consciência, que se mantém desperta pela vigilância (nesta altura eu entendo realmente a importância decisiva, a grandiosidade do chamado de atenção de Cristo para a vigilância: pois na medida em que afrouxa a vigilância voltamos a ser mundanos, portanto faltamos ao que somos e fazemos como o povo de Israel, tal e qual a ele; e então, diante da presença de Deus, que é promessa de manifestação, diante do anúncio do que aconteceu em nós, nos vemos como Sara, temos vontade de rir, não com maldade, talvez; mas, depois de Cristo, é mais fácil que seja com maldade), na medida em que nos mantemos vigilantes diante do que somos, duas grandes conseqüências derivam da redenção de Cristo.
De uma vida diferente nasce uma moral. São Paulo, quando convida os coríntios a darem dinheiro para os de Jerusalém, que passam necessidades, não diz: “Sois obrigados a dar esse dinheiro, é justo...”, mas: “Conheceis a generosidade de nosso Senhor Jesus Cristo, que por causa de vós se fez pobre, embora fosse rico, para vos enriquecer com a sua pobreza. (...) Não é uma ordem que vos dou, mas um conselho”, e depois fala da igualdade: “Não desejamos que o alívio dos outros seja para vós causa de aflição, mas que haja igualdade” (2 Cor 8). Tudo, portanto, deriva da consciência do que Cristo é. O mesmo se dá para a pureza. Quando São Paulo fala da pureza, não diz: “É justo que façais isto ou aquilo”, mas: “Lembrai-vos de que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo”.
Da consciência dessa realidade nova em nós nasce uma moral nova, na medida em que somos fiéis à vigilância, que se comunica como uma aurora, um crepúsculo do fim do nosso olhar (como diz São Paulo: caminhamos de claridade em claridade, refletindo em nossos rostos a glória de Deus). Se o nosso comportamento não deriva daqui, então a nossa situação, a nossa maneira de nos concebermos torna-se moralista, e o moralismo é terrível, pois nos lança no desespero. Justamente porque Deus nos fez sensíveis à vida do Espírito, o moralismo obrigatoriamente nos lança, quando nos encaramos de frente, no desespero, salvo alguns momentos, talvez os momentos de atividade, em que nos tornamos, como os fariseus e os escribas, contentes conosco mesmos, com o que fazemos. Em vez disso, se a nossa postura deriva do que Cristo é dentro de nós, dessa ontologia nova, desse ser novo que está em nós, que o catecismo chama “graça santificante” (mas trata-se de entender, de viver essas coisas), se a nossa postura vem do que Cristo é, do que temos, do que somos, se vem do nascimento novo, então ficamos cheios de segurança, não por causa das obras que fazemos, mas pelo fato de que Deus realizará a sua história, pois Deus é fiel. Deus é fiel e, tendo começado em mim a obra, irá conduzi-la ao seu fim.
Por isso, a única verdadeira preocupação moral, em nós, é a da oração, ou seja, ficar ali inclinados “como os olhos do servo para as mãos da sua patroa”, prontos (“estejais prontos”). A prontidão, a vigilância, que é a oração, só essa é a nossa preocupação: a vigilância que se exprime em pedido a Deus de que apresse a sua obra, de que apresse a vinda do seu Cristo, diziam os bons israelitas, que apresse a manifestação dele que está em nós.
Assim, se nos dirigimos aos outros sem extrair da consciência que Cristo nos deu da aliança de Deus o motivo e o critério, o conteúdo e a forma da nossa ação, todo o valor e o rosto da nossa ação, na melhor das hipóteses conseguiremos glória para nós mesmos, e não seremos testemunhas dele, pois admirarão a nossa capacidade e darão glória a nós, mas não a algo que é outro em relação a nós: não daremos glória ao mistério de Deus.
Portanto, a nossa segurança no caminho da vida – o Senhor veio para tornar-nos seguros: todos iam tateando na escuridão, procurando, até que veio o sol e tudo fica seguro –, a nossa segurança no caminho da vida (só se pode construir a partir de uma segurança, só a partir da segurança a pessoa edifica a si mesma e edifica o mundo), a validade, ou seja, a verdade, a permanência da eficácia da nossa ação para os homens, a verdade do nosso amor pelos homens, da nossa contribuição aos homens, deriva dessa autoconsciência, que Paulo exprimia tão fortemente: “Para mim viver é Cristo”. O meu viver és tu, ó Cristo, a minha vida és tu, tudo o que penso de mim e tudo o que procuro fazer vem disso, inclusive a edificação da Igreja (a Igreja é edificada por nós, depende em proporção matemática da quantidade dessa nossa autoconsciência, do contrário podemos todos ser cristãos e não construir a Igreja, apesar de todas as boas intenções). A Igreja só é construída pelo Mistério que opera em nós, ou seja, por esse ser novo, não criado pelas nossas obras, mas do qual as nossas obras derivam, com uma velocidade ou uma lentidão de acordo com os tempos de Deus (em Santa Terezinha e em Santa Catarina, são tempos bem velozes, em nós, talvez, imperceptivelmente lentos). Somos nós, em primeiro lugar, que somos mudados por essa realidade, e por isso esperamos que as nossas obras sejam mudadas: não pela nossa vontade, portanto, pois se a nossa vontade fizesse, pudesse fazer, seria inútil que Deus tivesse vindo. No entanto, tudo é graça, ou seja, o desenvolvimento de um acontecimento que Deus criou no mundo – a aliança – sem pedir antes a nossa opinião (não pediu a opinião de Abraão).
O problema é que a fé não deve ser algo pressuposto e deixado ali, dado como óbvio: “Agora é hora de agir!”. A fé tem de ser o horizonte de todas as ações. Se não, até o senso de justiça social é moralista, pois nasce de uma posição racionalista. Até os pagãos podem tê-lo e agir por causa dele, aliás, os pagãos o fazem melhor do que nós, os marxistas o fazem melhor do que nós: a origem da sua postura é o ímpeto humano diante da necessidade a que se precisa responder. Isso todos os homens honestos podem fazer. Então, o ímpeto diante da necessidade idealiza a necessidade, procura a sua teoria, ou seja, os seus caminhos, e procura fazer o seu projeto; por isso, se a necessidade é insistente, até a violência se torna justa. Ao contrário, para o cristianismo não é de forma alguma assim. O cristão é como que despertado pelo sentimento de ser “tomado por dentro” por um acontecimento que a princípio não tem a ver com o problema da justiça social: é o acontecimento de Cristo. As pessoas do Evangelho não eram tocadas pelo problema da justiça social; o mesmo anúncio era dirigido aos pastores e a Nicodemos (“Mestre, ninguém faz o que tu fazes”), ou seja, aos pastores ignorantes e aos professores universitários, da mesma forma. Assim, o homem cristão é tomado por dentro por um acontecimento. O acontecimento que Deus provocou no mundo é o primum, a primeira coisa na vida: Deus veio, veio a aliança de Deus. Essa é a situação nova: é o fascínio, o maravilhamento, a admiração, a fidelidade a esse acontecimento. Eu sou tomado por dentro por esse acontecimento, e esse acontecimento me muda e me coloca diante de mim e dos outros, diante do mundo, com o olhar cheio de uma atenção e de uma fraternidade da qual deriva depois toda a exigência de justiça, de ajuda. Parece ser uma questão talvez teórica, mas dela nascem dois métodos radicalmente diferentes. A segunda postura, a que qualifica o cristão, não dá trégua à inadequação ou à injustiça que existe, mas o fato de não dar trégua é diferente, tem um sentido mais completo da questão, pelo qual ele não pode defender um discurso de valores pisando em outros valores, é obrigado a defender tudo e portanto exige paciência, que é a grande palavra cristã. A paciência é o contrário do sossego, do ficar passivos, é uma perseverança sem fim, que não se altera, ou seja, não se torna impaciência, violência, pois está segura, não das suas próprias energias, mas de Cristo, de Deus, que leva tudo adiante, e dos seus tempos, sobretudo do seu desígnio, da sua história. “Pela paciência possuireis a vossa existência.” Assim não se destrói o valor da pessoa para defender uma estrutura social. Essa profunda diferença de método, que podemos constatar em nós mesmos, talvez seja o paradigma mais impressionante. Pois quando nos desviamos para o método moralista, racionalista, toda a nossa seriedade moral nos leva ao desânimo, salvo os momentos em que estamos distraídos ou iludidos, cheios de amor próprio, de segurança baseada nas nossas ações. Mas quando vemos com clareza, a desproporção entre o que somos e o que queremos ser não pode deixar de nos desesperar, e assim, cheios de impaciência, fazemos violência a nós mesmos e dizemos: “Esta semana assumo como propósito isto:”, e é realmente terrível. No segundo método, ao contrário, a pessoa não cede um só instante no desejo do bem, está toda propensa a ele, cheia da consciência do condicionamento que tem em si, que só o tempo de Deus purificará e decantará, e por isso toda voltada para o pedido. Toda voltada, não para o seu projeto, mas para o pedido. Com efeito, um pedido só pode ser sincero se mantém você todo voltado, isto é, todo de prontidão. E é essa a libertação de que fala São Paulo: “Libertados da lei”. É a liberdade dos filhos de Deus, que não quer dizer que nós sejamos perfeitos: nós, pecadores, no entanto tão pecadores e tão salvos.
Essa é a contradição, ou melhor, a tensão entre a Aliança, que é fundamento e origem, e a nossa história, que revelará isso a seu tempo, que o revela segundo o tempo de Deus. É realmente o que dizia Isaías: “Aqueles que seguem a Deus abrem asas como as águias, caminham e não se cansam” (Is 40). Ao passo que não existe nada que canse mais do que nos apoiarmos sobre nós mesmos e sobre os nossos projetos. “Quem se perde se encontra”: a nossa vida é a vida de um Outro.
Eu não conseguiria continuar a ser cristão se essas coisas não fossem verdade; uma pessoa não poderia mais suportar-se, nem portanto suportar os outros, pois não suportamos os outros se não temos motivos para suportar a nós mesmos. A nossa relação com os outros é sempre projeção da maneira como percebemos a nós mesmos, consciente ou inconscientemente; no fundo, se no subconsciente não nos aceitamos e não nos reconhecemos, não conseguimos aceitar e reconhecer os outros. Mas como podemos nos reconhecer e nos aceitar com essa nulidade que somos? Nós nos aceitamos porque o rosto de um Outro está em nós, uma outra realidade está em nós. Não é por acaso que toda a mentalidade mundana aceita e tolera o cristianismo na medida em que é reduzido a moralismo ou ativismo. É a tendência que sempre existiu e que a dessacralização ou a secularização teorizou até as suas últimas conseqüências, segundo a qual o cristão é aceitável na medida em que identifica o seu cristianismo com a ação social e política. Pois quando o cristianismo mostra o seu conteúdo, aquilo pelo qual existe, a sua fisionomia, a sua personalidade, não é mais tolerável, na melhor das hipóteses é absurdo: para os “filósofos”, que defendem a racionalidade pura, para as pessoas cultas, é um absurdo (as pessoas cultas não sujam as mãos) e o colocam de lado; para os “fariseus”, quer dizer, para os moralistas, para quem está interessado nos “valores”, é escândalo, não é tolerável, tem de ser varrido para longe. Assim, o liberalismo culto suportou o cristianismo, a Igreja; já o marxismo, que está muito mais engajado com a realidade, não o tolera. Portanto, “escândalo para os judeus”, ou seja, para os moralistas, para quem tem muita estima pelos relacionamentos e pela ação, e “absurdo, loucura para os gentios”, ou seja, para a filosofia pagã.
É um outro mundo. De resto, se Deus se revela ao homem, se Deus vem até a nossa história, tem de trazer algo que revira todas as nossas medidas a priori, do contrário não é ele. E a busca repleta de escuta dessa reviravolta, o desejo, a oração para que se realize, para que a nossa realidade, a nossa carne seja modulada segundo esse acontecimento, é todo o esforço cristão, a ascese, como se diz. Essa é a nossa tarefa. Eu não conheço nenhuma outra. Os judeus pediam milagres; os moralistas, que o mundo mude, que a situação mude; os gregos, a sabedoria, a filosofia, a concepção orgânica. Mas nós não conhecemos outra coisa a não ser Cristo, e Cristo crucificado.
Toda a nossa preocupação nestes anos é pelo fato de que, no mundo cristão, o conteúdo dessas frases últimas está se esvaziando. Mas esse conteúdo nenhum exegeta pode reduzir.