Acontecimento é vocação

Documento
Julián Carrón

A palestra de Julián Carrón na Assembléia Internacional de Responsáveis de Comunhão e Libertação (La Thuile, 25 a 29 de agosto de 2001)


No cartaz de Páscoa deste ano, padre Giussani diz que “sem o reconhecimento do Mistério presente, a noite avança, a confusão avança e - como tal, no nível da liberdade - a revolta avança, ou a decepção preenche de tal forma a medida que é como se não se esperasse mais nada e se vive sem desejar mais nada” 1. Mas quando a pessoa chega a esse ponto, no qual não deseja mais nada, não espera mais nada, podemos ainda chamá-la de “eu”, se o eu é definido exatamente pelo desejo, pela espera de realização?
Sem o reconhecimento do Mistério, portanto, o eu não existe, não acontece como desejo de realização, com a espera que o constitui; dominam a confusão, a revolta, a desilusão, e não se deseja mais nada. O que é o eu para quem vive assim? O que tem a ver aquilo que essa pessoa vive com o eu do qual ouvimos padre Pino falar ontem, um eu que pede a eternidade? Como está distante daquele “o primeiro ímpeto pelo qual”, como diz padre Giussani, “sinto descrita a minha experiência: uma paixão pela humanidade” 2! Onde está essa paixão num homem que vive como se não esperasse mais nada?
Um homem que não pede a eternidade, que não deseja a realização, que esquece sua aspiração “por um significado que tudo explique e realize”, “é como se fugisse, é como se ficasse sempre de fora” 3. Ele não se suporta, foge e procura refúgio no esquecimento, que depois procurará justificar. Dessa forma se dá o triunfo da ideologia, que é a perda do eu. Assim que olhamos para nós mesmos nos damos conta do quanto, em maior ou menor medida, tudo isso acontece conosco.
O que permite a cada um de nós reconhecer o Mistério presente? O que desperta o nosso eu?
Por dois anos meditamos sobre O senso religioso na Escola de Comunidade, e aprendemos que o eu é despertado no impacto com o real. Todos podem viver isso, inclusive nós: todos nós estamos permanentemente em relação com o real. Mas se, a despeito dessa relação imediata com o real, acontecer que uma pessoa acabe por não desejar mais nada, isso significa que as coisas, as pessoas que encontramos, mesmo aquelas com quem mais simpatizamos, não conseguem suscitar nosso eu de maneira permanente. “A insatisfação a que se chega, mesmo depois de todo sucesso - pois todo sucesso, após o primeiro momento de embriaguez, sempre repropõe um problema -, confirma que o homem está em busca do seu caminho” 4. Mesmo quando conseguimos alcançar o que desejamos, cedo ou tarde vem a insatisfação e, com o passar do tempo, a pessoa passa a não mais acreditar na promessa das coisas e a não desejar mais nada.
Se o homem vivesse o real adequadamente, segundo a sua natureza de sinal, tudo o que viesse ao seu encontro lhe lembraria o Mistério, se tornaria caminho para o Mistério, pois tudo o que existe é sinal de um Outro e remete a um Outro, isto é, ao Mistério. Mas nós sabemos muito bem que, se a pessoa pode alcançar o Mistério em alguns momentos, cedo ou tarde essa posição decai. Tanto é verdade que, como já ouvimos muitas vezes, somente poucas pessoas, depois de muito esforço e não sem erros, alcançam a verdade (Santo Tomás de Aquino). Mas nem mesmo esses poucos conseguem manter-se nessa intuição: a posição originária do homem não se mantém. “Reconhecer o real como procedente do Mistério deveria ser algo familiar para a razão, já que justamente no reconhecimento do real assim como é, ou seja, como Deus o quis, e não reduzido, achatado, sem profundidade, as exigências do ‘coração’ encontram correspondência e se realiza até o fundo a possibilidade de razão e afeição que nós somos. De fato, a razão, pelo seu próprio dinamismo original, não pode se realizar a não ser reconhecendo o real enquanto mergulha no Mistério. A razão humana atinge o seu próprio cume, é realmente razão, portanto, quando reconhece as coisas por aquilo que são, e as coisas são na medida em que procedem de um Outro. [...] Cada instante tem uma relação definitiva com o Mistério” 5. Deveria ser familiar! E por que não é? “Há portanto uma ferida no coração pela qual algo se distorce no homem e ele não consegue apenas com suas próprias forças permanecer no verdadeiro, mas fixa a atenção e o desejo em coisas particulares e limitadas. O desígnio originário, aquilo para que o homem é criado, foi alterado por causa do uso arbitrário da liberdade; os homens tendem, assim, em direção a um particular que, separado do todo, é identificado com o objetivo da vida” 6.
Apenas a pessoa que entende isso e faz na sua vida esse percurso existencial pode entender a insistência de padre Giussani sobre Abraão.

1. O eu como pertencer
Somente a intervenção do Mistério na história despertou o eu, um eu que permanece, que não é vencido pela confusão, que, apesar de todas as quedas, de todas as circunstâncias da vida, continua a esperar. A origem desse eu é uma iniciativa do Mistério, que começou com a escolha de Abraão e do povo que dele nasceu: “Deus disse a Abrão...” 7.
A origem desse eu - disse-nos padre Giussani - é uma história que começou com Abraão. Os Salmos, que lemos todos os dias nas nossas orações, são a expressão de pessoas que, atravessando as circunstâncias da história, como todos os homens, continuam a pôr sua esperança num Outro, continuam a gritar e não são vencidos por uma confusão última.
Para Abraão, assim como para o povo de Israel, o eu como experiência está na relação com o Mistério presente, com o Mistério que se faz presente na história. “Deus disse a Abrão...”: assim começa na história a presença de um eu que permanece. Por isso, para Abraão, como para todos aqueles que pertencem a essa história iniciada com Abraão, o eu é o pertencer a esse Mistério. A origem do eu coincide com essa intervenção real - misterioso o quanto quisermos, mas real -, histórica, que põe no mundo um eu assim.
A pessoa que faz essa experiência entende que, para Abraão e para o povo de Israel, a origem do eu e o pertencer coincidem. Mas aqui aparece nossa dificuldade em entender aquilo que dizemos sobre Abraão, em compreender por que origem e pertencer coincidem, dificuldade que foi perfeitamente formulada por alguns de vocês. “Você nos lembrou”, dizia uma pergunta, retomando o que padre Pino havia dito, “que origem e pertencer coincidem, mas isso não é nada óbvio. O que acontece normalmente é que primeiro vem o eu e a consciência de si, e depois a escolha de um pertencer”. Vocês entendem? Primeiro o eu se concebe autonomamente e depois decide pertencer! Esse é o resultado da influência da mentalidade em que vivemos, do Iluminismo, para o qual o pertencer é algo acrescentado.
Para muitos, o pertencer é uma questão moral, que eu decido depois: não pertence à natureza do eu, não pertence ao eu tal qual o vemos acontecer na história. O fato de uma pessoa pensar assim é o máximo da escravidão à mentalidade comum; pensar que antes nós dizemos “eu” e depois decidimos pertencer, e, mais ainda, pensar que essa maneira de dizer “eu” coincide com a nossa natureza é sinal da vitória da mentalidade comum em nós. Não! Nós não dizemos “eu” e depois decidimos pertencer - como se eu existisse antes e depois decidisse pertencer -, pois nós, você e eu, todos, somos feitos, isto é, pertencemos. É realmente o máximo da escravidão quando os homens pensam como o poder deseja que pensem, como se eles mesmos tivessem pensado!
Para Abraão, dizer “eu” coincidia com o pertencer ao Mistério que acontecia no encontro, que viera ao seu encontro. O eu de Abraão nunca fora despertado como naquele momento, nunca vivera uma experiência de início de realização do seu eu, nunca fora arrancado da confusão como naquele momento. Por isso, o fato de origem do eu e pertencer coincidirem significa que pertencer ao Mistério que viera ao seu encontro era justamente a origem do eu de Abraão.
Mas demos um outro passo. Esse início de salvação, em Abraão e no povo de Israel, levou-os a perceberem que Aquele que entrara na história para despertar o seu eu era o mesmo Mistério que os criara, que os fizera, que estava na origem deles e de tudo. O povo de Israel primeiro fez a experiência da salvação e depois se deu conta - aprofundando aquela experiência - de que Aquele que o salvava era quem o havia criado. Por isso, indo até o fundo do seu eu, podiam entender que dizer “eu” com toda a consciência significava dizer: “Eu sou Tu-que-me-fazes” 8.
A salvação revela e ajuda a reconhecer o que todos nós somos: somos feitos por um Outro. Quem não se dá conta de não se fazer por si, de que é um Outro quem o faz, não toma consciência de todos os fatores do real, considera óbvio, quando diz “eu”, o fato mais elementar: que não se faz por si e, portanto, pertence.
Nesse sentido, ainda mais radical, origem e pertencer coincidem: eu existo porque sou feito, porque pertenço a um Outro. Por isso ninguém pode dizer - a não ser eliminando a evidência mais elementar - que está sozinho, que a origem é a solidão: a origem é o pertencer. Se eu existo, um Outro me faz. Por que, quando olha para a realidade e para si mesma, a pessoa tem a certeza de pertencer, tem a certeza de que existe um Outro? Porque ela existe. Se ela existe, existe um Outro que a faz.
O pertencer é próprio da ontologia do eu, não é uma decisão; o pertencer é um reconhecimento amoroso, não uma decisão. Reconhecimento amoroso, e não decisão, no mesmo sentido com que padre Giussani fala do “sim” de São Pedro, que cito sobretudo para contrapô-lo ao conceito de decisão voluntarista. Como dizia padre Giussani na introdução de L’attrattiva Gesù, o “sim” de Pedro, “aquele ‘sim’ [aquela adesão] não era o resultado de uma força de vontade, não era o resultado de uma ‘decisão’ do jovem Simão: era o aflorar, o vir à tona de todo um fio de ternura e adesão que se explicava pela estima que sentia por ele - portanto, era um ato da razão -, pela qual não podia deixar de dizer sim” 9. Aquele reconhecimento era como ser vencido por uma evidência que o assaltava. “Aquele ‘sim’ era o resultado, a definição de uma relação cheia de estima, que nascia como avaliação, como juízo, como gesto da inteligência que arrastava consigo o coração, um gesto praticado existencialmente, à luz do sol, por uma ternura, tanto que ele e os outros prefeririam deixar arrebentar suas cabeças a traí-lo” 10.
A relação com o infinito, portanto, não é um ato de bravura do homem, não está na esfera da ética ou da moral: é o dado no qual aparece com clareza que o homem pertence ao Mistério. Assim, a primeira atividade é uma passividade: acolher, aceitar, reconhecer. Não é algo voluntarista, mas simplesmente reconhecer, reconhecer que se pertence. Esse reconhecimento se chama fé. Abraão realizou esse ato de fé, de reconhecimento, que nada mais é que lealdade com a experiência que se viveu no encontro com o Mistério presente. Ele reconhecia que nunca tivera uma consciência de si, uma clareza sobre si mesmo, sobre o seu destino, uma avaliação de si mesmo como a que tivera quando o Mistério veio ao seu encontro. Essa lealdade fez de Abraão um homem realmente grande: essa é a sua grandeza, que no fundo é uma submissão da razão à experiência. Este é o sacrifício que nós temos de realizar: permanecer na experiência. Parece simples, mas sempre o deixamos de lado: permanecer na experiência.
Por isso, como diz padre Giussani em Affezione e dimora, é o aprofundamento desse Tu ao qual a pessoa pertence que a faz entender o eu. “Uma vez que nosso eu é feito do pertencer ao Tu [que veio ao nosso encontro], o que nos faz entender o eu, o que aprofunda o eu não é o aprofundamento do eu, mas o aprofundamento do Tu. [...] O homem conhece a si mesmo mediante o aprofundamento do conhecimento de Ti. [...] Este é o equívoco do antiquíssimo ‘conhece-te a ti mesmo’: o ‘conhece-te a ti mesmo’ dos gregos, que era o ápice da sabedoria grega, o ‘conhece-te a ti mesmo’, essa descoberta da autoconsciência, carece completamente da percepção da sua origem e, portanto, do seu destino, que é um Tu11.
Ora, esse pertencer ao Tu é a origem da positividade. “Normalmente”, dizia um universitário, “para a nossa mentalidade, para a nossa experiência e a de todos os jovens, esse reconhecimento da inexorável positividade do real coincide com um estado de espírito, por isso há quem seja naturalmente positivo e, igualmente, quem seja naturalmente pessimista. Parece-me ser muito diferente o que padre Giussani nos diz”. De fato, é muito diferente! Tanto é verdade que ele nos fala da positividade do real ao mesmo tempo em que fala da violência que pesa sobre os nossos dias. “O que pode garantir a um homem de hoje a possibilidade de caminhar com segurança, quando a violência parece corroer os relacionamentos e as ações? A consciência da inexorável positividade do real” 12. Como padre Giussani pode falar dessa inexorável positividade? Vejamos o que diz logo em seguida: “É aqui, precisamente, que a Igreja identifica Deus como autor e afirmação da vida humana; que não abandona a vida depois de tê-la chamado a existir” 13. É o Mistério presente que permite viver tudo com a consciência da inexorável positividade do real. “Com efeito, diante da invocação de Moisés, o Senhor responde: ‘Eu caminharei contigo’. ‘Deus não está apartado do mundo’, escreveu o Papa ao Meeting de Rímini, ‘mas intervém. Ele se interessa por aquilo que o homem vive, dialoga com ele, cuida dele. Tudo isso é testemunhado pela história de Israel’, da qual nos sentimos descendência: caminhando todos os dias, dentro e através da floresta dos erros e contradições” 14.
Como pode existir, então, a consciência da inexorável positividade do ser, do real? Ela existe porque a pessoa vive a experiência de que Deus, o Mistério, não abandona a vida depois de tê-la chamado ao ser. Se não fazemos a experiência do fato de que Deus não está apartado do mundo, de que Ele vive dentro do mundo, cedo ou tarde somos vencidos. Ao contrário disso, a vida, com tudo o que nela acontece, quando vivida na companhia do Mistério presente aprofunda o reconhecimento daquele Tu que é a origem última da positividade do real.
Este ano tive um encontro com um de nossos grupos de Fraternidade na Espanha, do qual participo com freqüência, e, quando pensava em qual poderia ser o tema do encontro, ocorreu-me fazer uma pergunta. Como nesse grupo tínhamos vivido uma experiência dramática (uma amiga muito querida havia morrido, e com isso surgiram muitos problemas, como os filhos, etc.), eu disse: “O que nos permitiu não sermos vencidos por tudo isso que aconteceu?”. Não podíamos dar outra resposta além desta: a única coisa que permite não sermos vencidos não é um raciocínio, é a Sua presença na história, uma Presença tal que nem mesmo uma realidade tão perturbadora como a morte de uma pessoa querida (que é uma ameaça, pois a pessoa sente como se errasse o caminho, sente-se perdida), nem mesmo todo o mal, todos os desastres que acontecem conseguem eliminar o apego a esse Mistério bom, presente, familiar, a essa Presença amada.
Somente a certeza da Sua ação hoje, agora, aqui, em meio a tudo o que acontece na vida, nos permite não sermos vencidos. Portanto, não é como conseqüência de um raciocínio que a pessoa afirma a positividade do real, mas em razão desse Tu presente, aqui, agora, em razão desse Mistério presente. Padre Giussani afirma em L’autocoscienza del cosmo: “A realidade é positiva quando você reconhece o tu que está por trás dela, caso contrário a realidade é no mínimo enigmática e, num segundo instante, horrível (horreo, tenho medo, como a criança dentro da floresta), horripilante” 15. No reconhecimento desse Tu, ao qual a pessoa se apega exatamente em razão de uma história, está a fonte da consciência da inexorável positividade do real.

2. Não é por meio de uma reflexão que se entende o eu como pertencer, mas num fato histórico
Como podemos entender hoje o que aconteceu a Abraão? Refletindo sobre Abraão? Não. Fazendo a mesma experiência que ele fez. Podemos entendê-lo somente em um fato presente, histórico, porque só podemos partir do presente, sempre. E como se chama o presente? Acontecimento, é um acontecimento.
Perceber a realidade como ela é chama-se experiência. O acontecimento está presente de fato quando é conteúdo de uma experiência. Quando foi que o nosso eu despertou, quando foi que reconhecemos que o nosso eu começou a ter uma clareza sobre seus fatores constitutivos que nunca tivera antes? Quando foi que se revelou aos nossos olhos completamente o que significa dizer eu? Aqui ninguém pode fazer o trabalho pelo outro: cada um deve olhar para a sua experiência, se quer entender que a origem do seu eu e o pertencer coincidem. Somente poderemos entender o que aconteceu a Abraão se fizermos, no presente, a mesma experiência que ele fez, se a experiência de Abraão se tornar conteúdo de uma experiência para nós.
“É um acontecimento”, diz padre Giussani, “- o irromper de uma novidade - o que dá início ao processo por meio do qual o eu começa a tomar consciência de si, a tomar nota do destino para o qual se encaminha, do caminho que está fazendo, dos direitos que tem, dos deveres que deve respeitar, da sua fisionomia inteira” 16. É um acontecimento o início dessa consciência do eu. Quando foi que isso aconteceu a você? É preciso tomar consciência dos fatores reais, históricos, que o fizeram viver essa experiência, caso contrário você será sempre um uma marionete, um escravo da mentalidade comum. Quando foi que nós, todos nós, fizemos essa experiência? No encontro com o carisma.
A maioria de nós já havia recebido o Batismo, já pertencia à Igreja, mas quando foi que isso começou a se realizar de verdade? No encontro com o carisma. “Da mesma forma para mim a graça de Jesus, na medida em que pude aderir ao encontro com Ele e comunicá-Lo aos irmãos na Igreja de Deus, tornou-se a experiência de uma fé, que na Santa Igreja, ou seja, no povo cristão, revelou-se como chamado e desejo de alimentar um novo Israel de Deus” 17. Podemos das testemunho dessas palavras que padre Giussani disse em Roma 18: sua experiência de fé de fato revelou-se para nós como chamado, não encontramos nenhuma outra coisa que tenha chamado nossa vida como essa experiência, a ponto de estarmos aqui e não podermos entender nossa vida sem esse chamado. Não é algo a mais, um acréscimo à vida! É para nós a origem de uma maneira de dizer eu!
Como aconteceu esse encontro? O que encontramos ao encontrar o carisma? Encontramos pessoas, foi o encontro com uma realidade humana, integralmente humana, um grupinho de pessoas, rostos, fatos, que ninguém pode pôr em dúvida. Como, afinal, esse encontro foi capaz de despertar nosso eu? Tivemos tantos encontros na vida, encontramos tantas pessoas ao longo de nosso caminho, mas nada despertou nosso coração como esse encontro; com o passar do tempo, ele não ia desaparecendo como todas as outras coisas, mas continuava e continua a revelar a sua profundidade diante dos nossos olhos. Portanto, o que encontramos? Foi Cristo que nos alcançou mediante o carisma: o carisma é a maneira como Cristo nos alcança hoje.
“Para aprofundar a reflexão sobre onde o Mistério de Cristo se faz presente, prossigamos”, escreve padre Giussani comentando palavras de João Paulo II, “a leitura do discurso do Papa aos sacerdotes de CL: ‘A graça sacramental encontra sua forma expressiva, sua concreta incidência histórica mediante os diversos carismas que caracterizam um temperamento e uma história pessoal’” 19. Esses carismas, esses temperamentos são a maneira pela qual Cristo se torna concreto. “Sem a sua concretude física”, continua padre Giussani, “Cristo permaneceria abstrato, abandonado à nossa imaginação e ao nosso estado de espírito, ou identificado com a obscuridade do nosso niilismo, ou trocado pela euforia fácil suscitada por fazer coincidir o ideal com aquilo que nos agrada. Ao passo que Cristo nos alcança como alcançou Zaqueu, que subira no sicômoro, curioso por vê-lo passar” 20. Ele nos alcançou assim, hoje, no presente. Foi Cristo que nos alcançou por meio do carisma.
“Ora, aquele Fato, o acontecimento daquela presença humana excepcional, coloca-se como o método escolhido por Deus para revelar o homem a si mesmo [é o primeiro efeito do encontro], para despertá-lo para uma definitiva clareza em relação aos seus próprios fatores constitutivos, para abri-lo ao reconhecimento do seu destino e sustentá-lo no caminho em direção a ele, para torná-lo, na história, sujeito adequado de uma ação que carregue o significado do mundo. É esse acontecimento, portanto, o que põe em movimento o processo através do qual o homem toma completamente consciência de si, da sua fisionomia inteira, e começa a dizer eu com dignidade” 21. Começamos a dizer eu com dignidade quando encontramos a presença de Cristo mediante a modalidade suscitada pelo Espírito de Cristo na Sua Igreja, que se chama carisma.
“A força de Cristo presente no mundo dentro da Igreja alcança a pessoa mediante um carisma, um dom particular (Graça) com o qual o Espírito reveste a energia expressiva, operativa, incidente de um temperamento, de uma pessoa, de uma história. Para que serviria tudo o que existe na Igreja como realidade estável, institucional, se não alcançasse você com uma energia que ilumina, comove, incide em sua vida e na vida dos outros?” 22. É isso que nos faz amar a Igreja, é isso que nos faz amar Cristo. É por isso que sou sempre mais apegado a Cristo e à Igreja: porque, pertencendo a esse povo - como padre Giussani diz de si em Roma - “Tudo em mim se tornou realmente mais religioso, até chegar à consciência propensa a descobrir que ‘Deus é tudo em tudo’” 23.
É o encontro com o carisma que nos faz descobrir o que significa pertencer historicamente à Igreja e a Cristo, que nos faz entender a importância única do Batismo, que é o fundamento estável e seguro do pertencer. Pois o Batismo é para valer, não é um estado de espírito: é o fato de Cristo que se liga a mim para sempre. Mesmo que eu vá embora, que eu faça o que quero, nada do que eu fizer poderá mudar a atitude de Cristo para comigo: posso sair da Igreja e o Batismo não se perde, é para sempre, eu pertenço para sempre. “Pois todos vós, que fostes batizados em Cristo, vos vestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus. E se vós sois de Cristo, então sois descendência de Abraão, herdeiros segundo a promessa” 24.
Fazemos parte da descendência de Abraão e entendemos o que significa ser filhos de Abraão porque somos de Cristo. Por isso, o que nos une não são os bons sentimentos. “Os outros”, diz padre Giussani em Affezione e dimora, “[...] se são batizados e foram chamados à mesma vocação, pertencem - ontologicamente mesmo - à minha raiz, são um pedaço da minha raiz [do meu eu]. Para definir a mim mesmo, é preciso que existam [os que são chamados conosco]. É preciso que existam! Mas é totalmente secundário que me tratem bem (que eu esteja bem), que me tratem mal (que eu esteja mal), que me compreendam, que não me compreendam. Não é que tudo seja igual, mas é tudo secundário, por definição” 25.
Não podemos fazer nós o acontecimento que desperta continuamente o nosso eu; ele não nos é dado por nós, nós só podemos pedir, pedi-lo permanentemente.

3. A vida como vocação
Foi-nos dada essa consciência, fomos chamados por meio desse carisma, Deus nos chamou, de uma maneira incisiva, fascinante, por meio desse carisma: é preciso responder. Para a pessoa que responde, a vida se torna vocação, ela entende a vida como resposta a esse chamado. Tudo isso é desenvolvimento, continuidade daquilo que aconteceu. Assim, a pessoa percebe a vida como vocação de Deus.
Se o eu é vocação, cada momento da vida faz parte dessa vocação. Por isso, tudo o que se faz é divino: a vocação nos permite entrar em tudo, descobrir Deus em tudo. Respondendo a esse chamado, vivendo essa vocação, o eu se torna sujeito da história da Sua presença no mundo. É Deus quem a faz, mas a faz por meio do meu frágil sim: será frágil o quanto quiserem, mas sem esse sim não acontece o que o Senhor quer fazer com esta história. E, ao mesmo tempo, é pertencendo a esta história que o eu amadurece, torna-se mais si mesmo: nosso eu nasce, renasce mediante essa predileção de Deus, mediante a Sua misericórdia que não se detém diante do nosso mal, diante da nossa incapacidade, mediante a misericórdia que sempre nos chama. O povo, pertencer a esse povo, torna-se o instrumento para realizar a vocação do eu. “Tudo em mim se tornou realmente mais religioso” 26.
Assim a pessoa começa, pertencendo, a mudar de mentalidade. Pois a mentalidade nova nada mais é que o pertencer total, totalizante, ao que nos aconteceu. “A cultura nova [a mentalidade nova] é uma visão do mundo - desde o eu até o Eterno - que parte de um encontro que se fez, de um acontecimento do qual se participa, de deparar com uma Presença, não de livros que se lêem ou de idéias que se ouvem. Esse encontro tem um valor genético, uma vez que representa o nascimento de um sujeito novo, que nasce num lugar determinado e num momento da história, e lá é alimentado e se incrementa como personalidade nova, com uma concepção única e irredutível a qualquer outra, recebe um noûs novo, um conhecimento diferente. Quando essa Presença se joga em todas as relações da vida [quando a pessoa entra na vida com essa Presença no olhar], quando a ela são ‘suspensas’ todas as relações, quando estas são salvas, julgadas, coordenadas, avaliadas, vividas à luz dessa Presença, tem-se uma cultura nova” 27. Não é preciso ter feito uma universidade. Vejam o que nos contam nossos amigos da Nigéria: “Nosso amigo Fidelis havia morrido. Uma grande dor, um grande mistério. Quando fomos ao funeral no seu vilarejo, nossos amigos nos disseram que haveria um encontro demorado entre as famílias de seu pai e de sua mãe para esclarecer a causa da morte, pois na cultura deles a morte prematura não tem sentido, e por isso é preciso identificar algum culpado dentro das famílias e estabelecer-lhe uma punição. Está exatamente aqui a diferença entre a cultura da qual os nigerianos provêm e a que encontramos com o movimento de CL: a cultura deles percebe o Mistério, mas como inimigo; nós também percebemos o Mistério, mas na sua natureza verdadeira, como amigo, e isso explica mais a realidade”.
A mentalidade que nasce do pertencer explica mais o real. A mentalidade nova nasce, portanto, não de cursar a universidade, mas “da posição que a pessoa assume diante dessa Presença excepcional e decisiva para a vida. Por isso São Paulo diz: ‘É esse o vosso culto espiritual’, é a nossa cultura, o ponto de vista novo do qual ver o mundo, a realidade inteira. Quando a pessoa tem um olhar de criança diante dessa Presença, sendo infantil ou madura (basta que o olhar seja despido dos ‘mas’, dos ‘se’ e esteja carregado do pedido que nutre o coração), ela penetra os relacionamentos, próximos e distantes, com uma luz que não é comum a ninguém, exceto a quem tem a mesma posição diante de Cristo, do Deus feito homem, do Verbo feito carne” 28. E assim a pessoa começa a querer bem aos outros, começa a entender a afeição e o trabalho, e até a política, à luz desse encontro. É a mentalidade nova que aqui se aprende.
Temos de nos ajudar mutuamente a nos mantermos neste caminho, pois nele está a possibilidade para cada um de nós de sermos realmente um eu; caso contrário, somos vencidos pelas circunstâncias.

Notas:

[1] Cartaz de Páscoa de Comunhão e Libertação. In: Passos nº 17, abril de 2001, capa.
[2] L. Giussani. “Com o infinito no coração”. Tradução de Durval Cordas. In: Passos nº 23, outubro de 2001, p. 24.
[3] Id., ibid.
[4] Id., ibid.
[5] L. Giussani, S. Alberto, J. Prades. O acontecimento cristão como encontro. Tradução de Neófita Oliveira. Suplemento da Passos nº 21, agosto de 2001, p. 13.
[6] Id., ibid.
[7] Gn 12, 1.
[8] L. Giussani. O senso religioso. Tradução de Paulo Afonso E. Oliveira. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000, p. 150.
[9] L. Giussani. L’attrattiva Gesù. Milão, Rizzoli, 1999, p. X.
[10] Id., ibid., p. XI.
[11] L. Giussani. Affezione e dimora. Milão, Rizzoli, 2001, pp. 420-421.
[12] L. Giussani. “Com o infinito no coração”. Op. cit., p. 24.
[13] Id., ibid.
[14] Id., ibid.
[15] L. Giussani. L’autocoscienza del cosmo. Milão, Rizzoli, 2000, p. 64.
[16] L. Giussani, S. Alberto, J. Prades. O acontecimento cristão como encontro. Op. cit., p. 9.
[17] L. Giussani. “O homem mendicante, no deserto da vida e da história”. Tradução de Durval Cordas. In: Litterae Communionis nº 63, maio/junho de 1998, p. 8.
[18] No encontro do Papa com os Movimentos e novas comunidades eclesiais, em 30 de maio de 1998; nde.
[19] L’idea di movimento. Suplemento da Litterae Communionis nº 3, 1987 [edição italiana], pp. 24-25.
[20] Id., ibid., p. 25.
[21] L. Giussani, S. Alberto, J. Prades. O acontecimento cristão como encontro. Op. cit., p. 10.
[22] L’idea di movimento. Op. cit., p. 25.
[23] L. Giussani. “O homem mendicante, no deserto da vida e da história”. Op. cit., p. 8.
[24] Gl 3, 27-29.
[25] L. Giussani. Affezione e dimora. Op. cit., p. 385.
[26] L. Giussani. “O homem mendicante, no deserto da vida e da história”. Op. cit., p. 8.
[27] L. Giussani. Generare tracce nella storia del mondo. Milão, Rizzoli, 1998, p. 152.
[28] Id., ibid., pp. 152-153.

(Texto publicado em Passos 24, novembro/2001