Assago 1987. Senso religioso, obras, política
O pronunciamento no congresso do partido italiano Democracia Cristã da Lombardia. Assago, 1987; in O Eu, o Poder, as Obras, Cidade Nova, São Paulo 2001, pp. 161-165A política, enquanto forma mais completa de cultura, não pode senão trazer como preocupação fundamental o homem. No discurso à Unesco (2 de junho de 1980), João Paulo II disse: "A cultura situa-se sempre em relação essencial e necessária com o que é o homem".
1) A coisa mais interessante a ser observada é que o homem é uno na realidade do seu eu. Naquele mesmo discurso, o Papa observa: "É preciso sempre, na cultura, considerar o homem integral, o homem todo inteiro, em toda a verdade da sua subjetividade espiritual e corporal. É preciso não sobrepor à cultura - sistema autenticamente humano, síntese esplêndida do espírito e do corpo - divisões ou oposições preconcebidas".
O que determina, ou seja, o que dá forma a esta unidade do homem, do eu? É aquele elemento dinâmico que através das perguntas, das exigências fundamentais em se exprime, guia a expressão pessoal e social do homem. Em poucas palavras, eu chamo senso religioso este elemento dinâmico, este fator fundamental que se exprime no homem através de perguntas, insistências, solicitações pessoais e sociais.
A forma da unidade do homem é o senso religioso.
Lembro o capítulo 17 dos Atos dos Apóstolos, onde São Paulo explica a grande e incontível migração dos povos como busca de Deus.
O senso religioso parece-me, assim, a raiz da qual brotam os valores. Um valor, em última instância, consiste na perspectiva da relação entre algo contingente e a totalidade, o absoluto. A responsabilidade do homem, através de todos os tipos de solicitações que lhe vêm do impacto com o real, empenha-se na resposta às perguntas que o senso religioso (a Bíblia diria: o "coração" do homem) exprime.
2) No jogo desta responsabilidade diante dos valores, o homem tem que lidar com o poder. Entendo por "poder" o que em um livro seu - assim intitulado - Romano Guardini definia como delineamento do escopo comum e organização das coisas para a sua obtenção.
O poder, ou é determinado pela vontade de servir a criatura de Deus no seu desenvolvimento dinâmico (ou seja, servir o homem, a cultura e a práxis que dela deriva), ou então tende a reduzir a realidade humana àquilo que previamente decidiu como imagem própria das evoluções do real, isto é, da história.
Tem-se, assim, um Estado que se coloca como fonte de todos os direitos e que, portanto, reduz o homem, como diz a Gaudium et Spes, a "pedaço de matéria ou cidadão anônimo da cidade terrena".
3) Se o poder visa exclusivamente a realização da própria imagem que tem sobre o real, tem de procurar governar os desejos do homem. O desejo, de fato, é a marca da liberdade, porque abre o horizonte da categoria da possibilidade. Ao passo que o problema do poder é o de garantir o máximo de consenso de uma massa sempre mais condicionada nas suas exigências.
Assim, os meios de comunicação e a secularização se tornam instrumentos para a indução cruel de determinados desejos e para a obliteração ou supressão de outros. E os desejos do homem, e portanto os valores, sofrem uma essencial e sistemática redução. Como observa o Papa na encíclica Dives in Misericordia: "Esta é a tragédia do nosso tempo: a perda da liberdade de consciência por parte de povos inteiros obtida com o uso cínico dos meios de comunicação social por parte de quem detém o poder".
4) O panorama da vida social torna-se sempre mais uniforme, cinzento: é a grande "Homologação" de que falava Pasolini. Uma situação que poderia ser descrita com uma fórmula: o P (poder) em proporção direta com um I (impotência). O poder tornar-se-ia prepotência diante de uma impotência perseguida, justamente, com a redução sistemática dos desejos, das exigências e dos valores. (…)
No encobrimento do desejo tem origem o desnortea¬mento dos jovens e o cinismo dos adultos. E na astenia geral, qual é a alternativa? Um voluntarismo sem fôlego e sem horizontes, sem genialidade e sem espaço. Um moralismo de sustentação para o Estado entendido como fonte última de consistência do fluxo humano.
5) Uma cultura da responsabilidade deve manter viva aquela posição original do homem da qual brotam desejos e valores. Uma cultura da responsabilidade não pode deixar de partir do senso religioso. Isto impele os homens a colocar-se juntos, não na provisoriedade de uma vantagem pessoal, mas subs-tancialmente. Impele a colocar-se juntos na sociedade segundo uma inteireza e uma liberdade surpreendentes: o nascimento de movimentos é o sinal de tal vivacidade, responsabilidade e cultura, que tornam dinâmica toda a ordem social.
É preciso observar que os movimentos são incapazes de permanecer no abstrato. Não obstante a inércia ou a falta de inteligência de quem os representa ou de quem participa deles, os movimentos tendem a mostrar a sua autenticidade enfrentando as necessidades em que se encarnam os desejos; imaginando e criando estruturas operativas fundamentais e oportunas que chamamos "obras" ("formas de vida nova para o homem", como disse João Paulo II no Meeting de Rimini de 1982). As obras constituem verdadeira contribuição a uma novidade do tecido e do vulto social. (…)
6) A política deve, por isso, decidir favorecer a socie-dade exclusivamente como instrumento de manipulação do Estado, como objeto do seu poder, ou, então, favorecer um Estado que seja verdadeiramente leigo, isto é, a serviço da vida social segundo o conceito tomista de "bem comum" retomado vigorosamente pelo grande e esquecido magistério de Leão XIII (cf. Rerum novarum, em particular nn. 26-28).
Fiz esta última observação, mesmo sendo óbvia para todos, para lembrar que é um caminho em nada fácil, mas duro, como de resto é o caminho de toda verdade na vida. Mas é preciso não ter medo, também aqui, daquilo que dizia o santo Evangelho: quem guardar a sua vida, perdê-la-á, e quem der em nome de Cristo a sua vida, ganhá-la-á (cfr. Mt 10,39; 16,25; Mc 8,35; Lc 9,24; 17,33).