Cristo ressuscitado, a derrota do nada
Página UmNotas de uma palestra de Luigi Giussani no retiro de Ascensão dos Memores Domini. Riva del Garda, 16 de maio de 1992
Como me observaram com razão ontem à noite, é e ao mesmo tempo não é verdade que o “mistério” é uma realidade visível, pois essa é a característica do conceito de Mistério cristão. Já dissemos isso muitas vezes, na Escola de Comunidade também.
O Mistério não é o desconhecido; é o desconhecido na medida em que se torna conteúdo de uma experiência sensível. Esse é um conceito muito importante: é por isso que se fala do mistério da Encarnação, do mistério da Ascensão, do mistério da Ressurreição.
Deus, enquanto Mistério, seria uma imagem intelectual se nós nos detivéssemos na frase da maneira como ela é dita: “Deus é Mistério”. O Deus vivo é o Deus que se revelou na Encarnação: na morte e na Ressurreição de Cristo. O Deus verdadeiro é Aquele que veio habitar entre nós, que se tornou sensível, tangível, visível, audível.
Seja como for, é bem verdade que o Mistério não pode ser possuído: é objeto de experiência, mas não pode ser possuído, ou seja, medido, esgotado, abraçado em sua totalidade. Mas é igualmente verdade que é possuído. O Verbo de Deus, feito semente no seio de Nossa Senhora, era possuído por Nossa Senhora; feito criança, jovem, homem, era possuído por Nossa Senhora como mãe, como mulher que era sua mãe. É uma posse inesgotável e, por isso, só pode ser vivida na humildade. Essa humildade que deveria reverberar depois – e é a única fonte a partir da qual ela pode reverberar – entre o “eu” e o “tu” humano: entre uma pessoa e outra, pois o outro brota de Deus.
Mas não quero voltar, agora, à palavra principal de ontem à noite, que é a que mais nos falta, ou seja, a palavra elementar, o “senso religioso”, o conteúdo do senso religioso, o senso religioso como autoconsciência, a consciência da presença do Mistério. Nós somos, como dizer, surrounded, circundados e penetrados, envolvidos e penetrados, envolvidos por algo que nos penetra (do contrário, é como sermos cercados e aprisionados, se formos envolvidos sem sermos penetrados; a pessoa é envolvida quando é penetrada; quando alguém abraça você, envolve-o se o abraço o penetra): é assim que estamos diante do mistério do Ser – é assim que deveríamos estar diante do mistério do Ser, de manhãs ou em qualquer momento do dia.
Enquanto rezávamos o Benedictus, eu pensava – como muitas vezes me acontece quando rezo o Benedictus, pois é a oração mais intensa, mais expressiva da nossa espera segura, da posse ainda sem posse, da posse ainda incompleta, na medida em que é incompleta –, antes, enquanto rezávamos os salmos, eu pensava na idéia, presente na oração, de que o Senhor possa iluminar o seu povo: “O Senhor iluminou o seu povo, ilumina o seu povo”; ou melhor, “iluminou os seus eleitos, ilumina os seus eleitos”; eu penso sempre que nós estamos entre esses eleitos! Que o Senhor possa iluminar esse povo sem o qual eu não sou eu! Mas – como eu poderia dizer? –, é uma impaciência que a vida do dia deve demarcar, na humilde espera que é medida pela oração.
De qualquer forma, enfrentemos o tema desta manhã, que é o aprofundamento da palavra Mistério usada ontem à noite. O Mistério, como dissemos há pouco, é o Mistério na medida em que se torna experimentável, na medida em que se tornou experimentável, em que se tornou presença na história do homem. Procuremos pensar no que dissemos nas Laudes: “Deus agora notifica aos homens que todos e em toda parte se arrependam, porque ele fixou um dia no qual julgará o mundo com justiça por meio do homem a quem designou, dando-lhe crédito diante de todos, ao ressuscitá-lo dentre os mortos”1. A ressurreição é o ápice do mistério cristão. Tudo foi feito para ela, porque ela é o início da glória eterna de Cristo: “Pai, chegou a hora: glorifica teu Filho”2. Tudo e todos temos um sentido neste acontecimento: Cristo ressuscitado. A glória de Cristo ressuscitado é a luz, o colorido, a energia, a forma da nossa existência, da existência de todas as coisas.
A centralidade da ressurreição de Cristo é diretamente proporcional à nossa fuga, como que de um desconhecido, à nossa falta de memória dela, à timidez com que pensamos nessa palavra e somos como que repelidos por ela: o caráter decisivo da ressurreição é diretamente proporcional a isso, na medida em que é proporcional ao fato de Cristo, como conteúdo supremo da mensagem cristã, em cujo conteúdo se torna realidade essa salvação, essa purificação do mal, esse renascimento do homem, para o qual Ele veio.
Está no Mistério da ressurreição o ápice e o cume da intensidade da nossa autoconsciência cristã, portanto da autoconsciência nova de mim mesmo, da maneira como olho para todas as pessoas e para todas as coisas: está na ressurreição a chave da novidade da relação entre mim e mim mesmo, entre mim e os outros homens, entre mim e as coisas. Mas essa é a coisa que nós mais evitamos. Se vocês quiserem, é como que a coisa até respeitosamente mais deixada de lado, respeitosamente deixada à sua aridez de palavra compreendida intelectualmente, compreendida como idéia, justamente porque é o ápice do desafio do Mistério à nossa medida.
De fato, é o conteúdo da primeira mensagem cristã. O conteúdo de todos os primeiros discursos dos Atos dos Apóstolos, no primeiro contato que os apóstolos tiveram com os judeus e com os pagãos, com o povo, foi exclusivamente esse, soberanamente esse. Quando Pedro curou o aleijado em Jerusalém e foi preso por isso, perguntaram a ele: “‘Com que poder ou por meio de que nome fizestes isso?’. Então Pedro, repleto do Espírito Santo, lhes disse: ‘Chefes do povo e anciãos! Uma vez que hoje somos interrogados judicialmente a respeito do benefício feito a um enfermo e de que maneira ele foi curado, seja manifesto a todos vós e a todo o povo de Israel: é em nome de Jesus Cristo, o Nazareu, aquele a quem vós crucificastes, mas a quem Deus ressuscitou dentro os mortos, é por seu nome e por nenhum outro que este homem se apresenta curado, diante de vós. É ele a pedra rejeitada por vós, os construtores, mas que se tornou a pedra angular [ponto de reconstrução do mundo]. Pois não há, debaixo do céu, outro nome dado aos homens pelo qual devamos ser salvos [porque Deus o ressuscitou dentre os mortos]’”3.
É a primeiríssima catequese, o primeiríssimo conteúdo dos discursos cristãos, primeiríssimo; e está refletido no capítulo 15 da Primeira Carta aos Coríntios de São Paulo: “Lembro-vos, irmãos, o evangelho que vos anunciei [a boa notícia que vos anunciei], que recebestes, no qual permaneceis firmes, e pelo qual sois salvos, se o guardais como vo-lo anunciei; doutro modo, teríeis acreditado em vão [se tivésseis acreditado de acordo com a vossa cabeça: como é verdade que, a partir daquele momento, essa é a alternativa oculta e decisiva!]. Transmiti-vos, em primeiro lugar, aquilo que eu mesmo recebi [em primeiro lugar, diz São Paulo, eu o recebi e a isso aderi]: Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras. Apareceu a Cefas, e depois aos Doze. Em seguida, apareceu a mais de quinhentos irmãos de uma vez, a maioria dos quais ainda vive, enquanto alguns já adormeceram. Posteriormente, apareceu a Tiago, e, depois, a todos os apóstolos. Em último lugar, apareceu também a mim como a um abortivo. Pois sou o menor dos apóstolos, nem sou digno de ser chamado apóstolo, porque persegui a Igreja de Deus. Mas pela graça de Deus sou o que sou: e sua graça em mim dispensada não foi estéril. Ao contrário, trabalhei mais do que todos eles; não eu, mas a graça de Deus que está comigo. Por conseguinte, tanto eu como eles, eis o que pregamos. Eis também o que acreditastes. Ora, se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou [este é o ponto último, supremo, de toda a dialética cristã, de toda a verificação cristã, de toda a demonstração cristã], vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé. Acontece mesmo que somos falsas testemunhas de Deus [do Mistério], pois atestamos contra Deus que ele ressuscitou a Cristo, quando de fato não ressuscitou, se é que os mortos não ressuscitam. Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé; ainda estais nos vossos pecados. [...] Se temos esperança em Cristo tão-somente para esta vida [se Cristo é um partido nosso, no fundo um conteúdo nosso, ideológico ou mesmo prático], somos os mais dignos de compaixão de todos os homens. Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram. Com efeito, visto que a morte veio por um homem, também por um homem vem a ressurreição dos mortos. Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos receberão a vida”4.
É por isso que aquele instrumento insubstituível que foi Il Sabato, em tantos momentos, retomou com razão este primeiro anúncio, este coração da mensagem inicial: “Cristo ressuscitou” (antes da Revolução, os ortodoxos, especialmente na Rússia, costumavam cumprimentar-se assim: “Cristo ressuscitou”).
“Vale a pena, portanto”, começa o cardeal Ruini num artigo, “procurar enfocar os termos dessa questão. Em primeiro lugar, o que está em questão é um fato: Jesus ressuscitou ou não? Há muitos testemunhos, e alguns chegaram até nós de forma direta e pessoal, dados pelos próprios protagonistas, como, por exemplo, e incontestavelmente, o testemunho do apóstolo Paulo em suas cartas. Nesse plano dos fatos, nada que seja igualmente crível, ou mesmo apenas comparável, pode ser alegado para negar a ressurreição de Jesus”5. Nenhum fato da antiguidade é tão certificado.
“Numa antiga homilia pascal, o cardeal Albino Luciani segue a mesma linha ‘realista’ [realista, exatamente da maneira como fala O senso religioso, na primeira premissa]. Lembra como São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios, emprega quatro vezes o verbo ‘apareceu’, insistindo sobre a percepção visual. ‘Ora, o olho não vê algo interno, mas externo a nós, uma realidade distinta de nós, que se impõe a nós de fora.’ Lembrando que os apóstolos não eram pessoas inclinadas a misticismos refinados, mas gente ‘sã, robusta, realista, alérgica a qualquer forma de alucinação’, Luciani acrescenta: ‘Com um material humano como este, era também extremamente improvável [altamente impossível] passar da idéia de um Cristo merecedor de reviver espiritualmente nos corações para a idéia de uma ressurreição corporal [era impossível fazer essa passagem, forçar essa interpretação] à custa de reflexão e de entusiasmo [para isso seria preciso buscar os amantes das novidades ou determinados filósofos]. Não, eles só se renderam diante da evidência dos fatos’”6.
Eles só se renderam diante da evidência dos fatos, e – repito – não existe nada mais crível do que o que nos tem sido transmitido há dois mil anos, desde o primeiríssimo início. O primeiríssimo início trouxe esta palavra como um troféu de vitória: Cristo ressuscitou. O cardeal Ratzinger responde a uma certa interpretação dos jornais: é preciso traduzir “carne”, “ressurreição da carne” e não “ressurreição dos mortos”. É preciso sublinhar que Cristo é a ressurreição da carne7.
Introduz-se, assim, aquilo a que queremos chegar, e que deve ser o tema da nossa meditação.
O cristianismo é a exaltação da realidade concreta, a afirmação do carnal, tanto que Romano Guardini diz que não existe nenhuma religião mais materialista do que o cristianismo8; é a afirmação das circunstâncias concretas e sensíveis, graças à qual a pessoa já não sente falta da grandeza quando se vê limitada naquilo que é obrigada a fazer: aquilo que é obrigada a fazer, mesmo que seja pequeno, é grande, pois dentro daquilo vibra a Ressurreição de Cristo. “Imersos no grande Mistério.”9 Estaremos desperdiçando alguma coisa do Ser, dilapidando o Ser da sua grandeza, da sua força e da sua soberania; lentamente o esvaziaremos de conteúdo, e faremos murchar o Ser, Deus, o Mistério, a Origem e o Destino, se não nos sentirmos imersos neste Mistério, no grande Mistério: a Ressurreição de Cristo. Imersos como o eu está imerso no “tu” que pronuncia com todo o seu coração, como a criança, quando olha para a mãe, como a criança quando ouve a mãe. É preciso que a inteligência da criança seja recuperada em nós. Chama-se “fé” a inteligência humana quando, permanecendo na pobreza da sua natureza original, ela é toda preenchida por uma outra coisa, uma vez que, em si mesma, é vazia, como braços escancarados que ainda estão por abraçar a pessoa que esperam. A única maneira de me conceber é imerso no Teu grande Mistério: a pedra rejeitada pelos construtores deste mundo, ou por todo homem que imagina e projeta a sua vida, tornou-se pedra angular, a única sobre a qual é possível construir10. Esse Mistério – Cristo ressuscitado – é o juiz da nossa vida; Ele, que a julgará por completo no fim, julga-a dia após dia, hora após hora, momento após momento, sem solução de continuidade. Quero sublinhar que esse “vê-Lo” como o Ressuscitado, esse reconhecer o que aconteceu com Ele, com Ele morto, é um juízo: ressuscitaste, ó Cristo. “Cristo ressuscitou” é um juízo, por isso é um gesto, um ato do intelecto que rompe o horizonte normal da racionalidade e abraça e testemunha uma Presença que ultrapassa por todos os lados o horizonte do gesto humano, da existência humana e da história. Esse juízo é dado pela nossa inteligência pobre, a inteligência original, a inteligência que por sua natureza é afirmação da positividade do real que vier a aparecer à sua frente, que vier a se propor a ela; é afirmação amorosa da realidade segundo a natureza original da consciência do homem, pela qual o eu é impelido por natureza a aderir de modo afetivo – e por isso positivo, afirmativo – à realidade que se apresenta a ele. Chama-se “fé” esse rompimento das fronteiras da razão natural que acontece por graça e que representa uma continuidade estranha e excepcional da inteligência. É essa potencialidade – como dizem os teólogos – “obediencial”11, é essa disposição de obediência à força do Criador que realiza a inteligência humana fazendo-a superar a si mesma.
A fé é a inteligência humana que supera a si mesma. E tudo isso é apenas graça, esse crer como afirmação de uma inteligência sustentada pela amorosidade pelo real, por uma afetividade aberta ao que vale de verdade, ao que realmente existe, ao que realmente “é”. Para a criança, fragilmente, isso é inevitável; por isso, “se não vos tornardes como crianças...”12: mas quando se é adulto é preciso ser como as crianças!
A minha imersão no Teu grande Mistério de Ressuscitado é um juízo; começa como juízo da minha inteligência da realidade, que age na sua pobreza original, quando ela é estruturalmente escancarada à afirmação positiva, porque amorosa, de toda e qualquer realidade que venha a se apresentar a ela e, por isso, está afetivamente aberta ao que vale de verdade, ou seja, ao que é realmente. A fé em Cristo ressuscitado é o ato supremo da inteligência humana ao captar a realidade com lealdade e afetividade, afirmando-a amorosamente. Essa afirmação amorosa do real é condição pela qual a inteligência do homem, diante da proposta de Cristo ressuscitado, se torna fé. A proposta de Cristo ressuscitado e o reconhecimento de fé não são obra do homem, não são o produto de uma hipótese de trabalho da mente humana, não são uma força do intelecto, mas, sim, uma possibilidade da nossa inteligência, na medida em que – como criatura – ela é uma potencialidade de obediência ao Criador: é por graça.
É por graça que podemos reconhecê-lo ressuscitado e que podemos imergir em seu grande Mistério; é por graça que podemos reconhecer que, se Cristo não tivesse ressuscitado, tudo seria vão, vã seria a nossa fé, como dizia São Paulo, vã seria a nossa afirmação positiva, segura, jubilosa, vã seria a nossa mensagem de felicidade e de salvação, e “ainda estais nos vossos pecados”13, ou seja, na mentira, no não-ser, no não conseguir ser.
Sem a ressurreição de Cristo, só existe uma alternativa: o nada. Nós nunca pensamos nisso. Por isso passamos os dias com essa vileza, com essa mesquinhez, com esse estouvamento, com essa instintividade obtusa, com essa distração repugnante na qual o eu – o eu! – se dissipa. De forma tal que, quando dizemos “eu”, o dizemos para afirmar um pensamento nosso, uma medida nossa (chamada também “consciência”) ou um instinto nosso, uma vontade de ter nossa, uma nossa pretensa e ilusória posse. Fora da ressurreição de Cristo, tudo é ilusão: tudo joga conosco. Ilusão é uma palavra latina que tem como sua raiz última a palavra “jogo”: somos envolvidos num jogo, somos enganados dentro de um jogo, iludidos. É fácil para nós olhar para todo o infindo rebanho dos homens na nossa sociedade: é a grande, infinda presença das pessoas que vivem na nossa cidade, das pessoas que vivem perto de nós na paróquia, na Igreja, das pessoas mais estreitamente próximas de nós, vizinhas de nossas casas. E nós não podemos negar experimentar essa mesquinhez, essa estreiteza, esse estouvamento, essa distração, esse desvio total do eu, essa redução do eu a afirmação obstinada e presunçosa de qualquer pensamento que tenha (chamando-o “voz” ou “verdade da minha consciência”) ou do instinto que pretende agarrar e possuir uma coisa que a pessoa decide lhe ser agradável, satisfatória, útil. É que tudo é ilusão. Afastem-se dois metros da sua casa e olhem para a maneira como todas as pessoas vivem muitas vezes; normalmente, nós vivemos assim. Olhem para as pessoas, saiam de sua casa e fiquem ali, olhando para elas, dois metros do lado de fora: digam-me se o ambiente não é assim, se a humanidade não é essa!
É por isso que a liturgia nos faz dizer: “Preserva a tua família, ó Deus [a tua família é o conjunto daqueles que chamaste, daqueles que elegeste, daqueles que designaste], com a fidelidade do teu amor [ao menos Tu és fiel a ti mesmo, Tu, que nos amaste porque nos designaste; não podemos mais arrancar de nós mesmos o fato de termos sido designados, de termos sido amados; podemos trair-te bilhões de vezes mais que São Pedro, mas a fidelidade do Teu amor se mantém e preserva a nossa família], e sustem sempre a fragilidade da nossa existência [portanto, a Igreja, que recompõe a cada instante para nós o olhar, a palavra julgadora e o coração amante de Cristo, sabe muito bem que somos frágeis] com a tua graça, único fundamento da nossa esperança”14. A Tua graça é o único fundamento da nossa esperança: essa é a premissa da fidelidade à vocação nas circunstâncias concretas, banais, obtusas, repugnantes, nas quais Deus nos pôs.
“Sustem sempre a fragilidade da nossa existência com a tua graça, único fundamento da nossa esperança”: isso significa que sem o Mistério de Cristo ressuscitado, o Mistério supremo do cristão, a fé seria vã e estaríamos ainda no nosso pecado, ou seja, numa realidade que está destinada a dissolver-se e a homologar-se nas cinzas do fim, no nada – e tudo o que vibra na vida e parece excitar os nossos nervos, os nossos desejos e os nossos pensamentos seria ilusão, jogaria conosco. Não há outra alternativa senão entre o Cristo ressuscitado e essa ilusão da vida, “o hórrido poder/ que para geral dano, oculto, impera,/ e a vaidade infinita que há em tudo”, como termina a breve poesia A si mesmo, de Leopardi15. Não há alternativa a Cristo ressuscitado, a não ser essa frase de Leopardi.
Mas nós somos frágeis, e essa afirmação amorosa do real, com a qual somos criados, essa afetividade aberta ao que vale de verdade, ao verdadeiro real, como a que existe na criança, em razão da nossa fragilidade se corrompe, apodrece, torna-se cheia de vermes, se desfoca e desaparece. Por isso, a Igreja, que nos traz a mensagem de Cristo ressuscitado, que faz com que Cristo ressuscitado seja presente para nós, na qual Cristo ressuscitado está presente, reza assim: “Preserva a tua família, ó Deus, com a fidelidade do teu amor [porque nós não temos um amor fiel] e sustem sempre a fragilidade da nossa existência”. Ou seja, é preciso pedir! Nunca, como diante de Cristo ressuscitado, a nossa insistência sobre o rogar, sobre o rezar, sobre o pedir (usemos a palavra que é a essência da oração: pedir), o nosso pedido deve se intensificar tanto. Nunca até hoje rogamos, pedimos a fidelidade na afirmação da tua ressurreição, ó Cristo! Por isso, como aconteceu num recente debate cultural, diante de uma cineasta, não soubemos responder; ela não encontrou entre nós alguém que dissesse: “Ressuscitaste, ó Cristo”, “Cristo ressuscitou”, “Um homem ressuscitou da morte”. Do ponto de vista humano, ela – como Camus, diga-se de passagem – é mais inteligente do que nós16. A palavra rogar, ou rezar, pedir, nunca se torna tão decisiva como diante do Mistério de Cristo ressuscitado. Para mergulharmos no grande Mistério, devemos suplicar, pedir: pedir, essa é a maior riqueza. Tal como a maior inteligência é afirmá-lo, assim também a afetividade mais rica é pedi-lo, o realismo mais intenso e mais dramático é pedi-lo.
Além do mais, o último instante já foi embora, o próximo instante ainda não existe: a nossa liberdade está na decisão do instante. Se a nossa liberdade está na decisão do instante, o que é que a nossa liberdade possui, o que é que ela é capaz de criar? Apenas o revelar-se como pedido. De fato, ela é exigência de plenitude e de felicidade, de ser. A nossa liberdade é exigência; o coração, se quisermos usar a comparação bíblica, é exigência, ou seja, desejo; o instante é desejo. Então a verdade do desejo está apenas em se tornar pedido. A liberdade é o desejo original que se torna pedido. No pedido está o reconhecimento do positivo do desígnio de Deus; no pedido está o reconhecimento – imperfeito e timidamente iniciado – do Mistério que está entre nós. “Caminhemos, portanto, e cantemos para nos animar no desejo. De fato, quem deseja, ainda que cale com a língua, canta com o coração; quem, porém, não deseja, ainda que fira com seus gritos os ouvidos dos homens, é mudo diante de Deus, do Mistério”, diz Santo Agostinho17. Como poderemos falar hoje à tarde das nossas casas18, se elas não forem o lugar onde esse desejo faz o coração cantar de tal forma que uma pessoa, entrando nelas, sinta como que o eco desse canto, e não entenda – se for estranha – o seu porquê?
Permitam-me que leia a vocês este outro comentário de Santo Agostinho aos salmos, ainda que seja um pouco longo: “Diz o profeta: ‘Meu coração grita e geme de dor’. Há um gemido secreto do coração que não é percebido por ninguém. Mas se o tormento de um desejo toma conta do coração de modo que o sofrimento íntimo seja expresso e ouvido, então perguntamos qual pode ser a sua causa. Quem escuta diz consigo: ‘Talvez gema por isto, talvez lhe tenha acontecido aquilo’ [o desejo se exprime em pedido, e o pedido, por sua natureza, tende a fazer-se ouvir, faz-se ouvir]. Mas quem pode entendê-lo, senão aquele a cujos olhos, a cujos ouvidos se eleva o gemido? Os gemidos que os homens ouvem, se alguém geme, são na sua maioria gemidos do corpo, mas não se percebe o gemido do coração. Quem, portanto, entenderia por que o coração gritava? Acrescenta o salmo: ‘Conheceis meu desejo, Senhor’ [imersos no teu Mistério]. Não são os homens, que não podem perceber o coração, mas sois vós que conheceis cada desejo meu [os homens ouvem o eco deles, sem entender o porquê]. Se ele [o Mistério] conhece o teu desejo, ele, que vê o que é secreto o atenderá [não podes pedir, ó Cristo ressuscitado, que eu mergulhe no teu Mistério: dá-me a graça de crer em ti! O Pai, que vê o que é secreto, atenderá o meu desejo]. O teu desejo é a tua oração [o teu pedido]; se o teu desejo é contínuo, contínua é também a tua oração [compreendemos que esta é uma investigação que tende a definir como é a nossa vida: se caminha numa direção ou está parada, se é moral ou imoral]. De fato, o Apóstolo, não por acaso, afirma: ‘Rezai sem cessar’ (1Ts 5,17). Acaso devemos entender que é preciso estarmos sempre de joelhos ou prostrados ou com as mãos levantadas para obedecer à ordem de rezar sem cessar? Se entendemos que rezar é isso, considero que não possamos fazê-lo sem longas interrupções. Mas há uma outra oração [um outro pedido], a oração interior; e essa é sem interrupção [é uma posição do coração], e é o desejo. Seja o que for que tu faças, se desejas aquele sábado [que é o grande dia de Cristo], nunca deixas de rezar. Se não queres interromper a oração, não deixes de desejar. Teu desejo é contínuo? Contínua é a tua voz. Calar-te-ás se deixares de amar [ou seja, de desejar]. Calaram-se aqueles dos quais foi dito: ‘Pelo crescimento da iniqüidade, o amor de muitos esfriará’ (Mt 24,12). A frieza do amor é o silêncio do coração, o ardor do amor é o grito do coração [o pedido]. Se o amor continua sempre vivo, tu gritas sempre [pedes sempre]; se gritas sempre, desejas sempre; se desejas, tens o pensamento voltado para a paz [“e no caminho da paz guiar nossos passos” (Lc 1,79)]. ‘Conheceis meu desejo, Senhor.’ Se ele conhece o desejo, como pode não conhecer também o gemido, que é a voz do desejo [como pode não conhecer também o pedido, que é a expressão do desejo]? Por isso o salmo continua: ‘Meus gemidos vos são manifestos’. Mas às vezes vemos também a pessoa rir: significa que aquele desejo morreu em seu coração? Se o desejo existe, existe também o gemido; este nem sempre chega aos ouvidos dos homens, mas não cessa de chegar aos ouvidos de Deus [e esse desejo está também no riso]”19.
O que acontece diante da graça que torna a nossa inteligência e a nossa afetividade capazes de experimentar a imersão no Mistério de Cristo ressuscitado? O que acontece quando imergimos no grande Mistério de Cristo ressuscitado? O que acontece, fundamentalmente, quando a graça nos é dada como inteligência e como afetividade, quando a graça nos torna homens de fé (afirmação amorosa do real, afetividade aberta ao que vale de verdade, atravessando toda a fragilidade com um desejo incessante, com um pedido)? O que acontece “fundamentalmente” – pois a pedra que nos é dada por essa graça é a pedra angular, sobre a qual tudo se constrói –, creio que possa ser expresso por uma palavra (“Ilumine a noite que avança”20): é a palavra “luz”. Imaginemos, portanto, a noite; uma noite profunda, sem lua e com as estrelas encobertas pelas nuvens, uma noite escura. Imaginemos, de repente, o sol. Comparemos as duas coisas: o mundo apareceu, não estava ali e apareceu, definido em seus mínimos detalhes, nas folhas da relva, na florzinha do campo, no passarinho que cai – como no Benedicite21: o céu e a terra, o vento e a chuva, o sol e o calor; releiamos atentamente o Benedicite nas Laudes. O mundo nasce nessa luz lançada sobre a nossa experiência da realidade, nessa luz que se irradia, que irradia todo o nosso viver, ou seja, toda a nossa relação com o real: o real se regenera, o real renasce, é gerado, se regenera. Não é para menos que o Batismo era dado na Páscoa, e o Batismo é “nascer de novo”, um nascer diferente, uma “nova criatura”, a verdadeira protagonista da história, ainda que esteja sozinha e seja assassinada: Cristo.
Como é interessante reler toda a literatura litúrgica do tempo pascal, onde a palavra “gerar”, “regenerar”, é citada constantemente, citada repetidas vezes! Eu queria escolher uma frase, mais expressiva do que as outras: “Concedei que, celebrando a ressurreição do Senhor, renovados pelo vosso Espírito, ressuscitemos na luz da vida nova”22. “Ressuscitemos na luz”: um ser humano que nasce é uma consciência da realidade, uma inteligência da realidade e uma afetividade precisa perante a realidade, uma adesão à realidade, um abraço da realidade, uma imersão na realidade; exatamente da mesma forma como se imerge no Mistério de Cristo ressuscitado, se imerge na realidade. O que, então, caracteriza esse renascimento ou essa regeneração? Há alguma coisa à qual possamos reduzir, como característica essencial, o acontecimento dessa regeneração, o acontecimento desse renascimento (eu sou um outro, eu não sou mais eu, mas alguma coisa diferente de mim que vive em mim23, sou um eu novo)? O que caracteriza o eu novo é a verdade das coisas, é a verdade da realidade, é uma inteligência da realidade na sua verdade, é um amor à realidade na sua verdade, é uma imersão na realidade como verdade, é uma imersão na verdade da realidade.
Em primeiro lugar, a liturgia pascal nos lembra como nós normalmente estamos mergulhados ou demasiadamente propensos a estar mergulhados numa falsidade na maneira de entender e amar a realidade. “Ó Deus, que pela humilhação do vosso Filho reerguestes o mundo decaído [a nossa posição diante da realidade é uma queda; a minha posição diante de você é uma queda; se eu não sou recuperado, reerguido por algo diferente de mim que está em mim, se não sou imerso no Mistério de Cristo ressuscitado, a minha posição diante de você é uma queda, tanto assim que você me aborrece, ou então eu sou estranho a você. Se, em vez disso, eu o ouço, como de fato o ouço, é por uma outra coisa, que não é um pretexto para entender você e amá-lo; é por uma outra coisa que está em você da mesma maneira como está em mim: a verdade de você; vejo e amo você na sua verdade, e mergulho, colaboro e caminho com você como verdade, na sua verdade], enchei os vossos filhos e filhas de santa alegria, e dai aos que libertastes da escravidão do pecado [essa queda é um pecado, existe uma conivência: é o estouvamento e a distração de que falamos antes, e isso gera escravidão, opressão; não existe uma só pessoa que, salvo nas largas pausas da distração total, quando a pessoa não é homem, não seja oprimida por isso, como um velho que – eu sei disso por experiência – não consegue mais respirar livremente. Mas o problema é que um jovem, é que vocês sejam assim! Porque pode haver um velho oprimido, na sua respiração, que não seja de forma alguma oprimido enquanto espírito, e, vice-versa, um jovem que tenha o espírito oprimido] o gozo das alegrias eternas”24.
E ainda: “Ó Deus, que restaurais a natureza humana dando-lhe uma dignidade ainda maior [porque o homem foi feito digno, mas não é capaz de manter a dignidade antiga; a dignidade antiga se perdeu, desviou-se, decaiu; o homem é oprimido, e tu, ó Cristo ressuscitado, restauras minha dignidade antiga, me dá uma dignidade ainda maior: de fato, a dignidade antiga não sabia, a dignidade antiga não entendia, a dignidade antiga pôde equivocar-se até a culpa clara, destruidora], considerai o mistério do vosso amor, conservando sempre os dons da vossa graça naqueles que renovastes pelo sacramento de uma nova vida”25. “Fazei- passar da decadência do pecado [“decadência”: tem um significado estético, objeto de uma visibilidade, é uma coisa que se corrompe; aquela opressão se torna decadência] à plenitude da vida nova”26.
Permitam-me destacar outros trechos da liturgia. “Ó Deus, nosso pai, que esta participação do mistério pascal de vosso Filho nos liberte dos fermentos do pecado antigo [uma vida que fermenta: algo que apodrece, o fermento do pão que mofa] e nos transforme em novas criaturas.”27 “Aos que renasceram pela água e pelo Espírito Santo...”28 é a geração de que falamos antes: nós, teus filhos. “...purificados de todo pecado, obtenham os bens que prometestes”29: purificados de todo o pecado, podemos obter a realidade tal como nos foi prometida, ou seja, na sua configuração original, na sua pureza original, na sua verdade. “Dai-nos sentir mais de perto o vosso amor paterno para que, libertados das trevas do erro [da vida obscura, fermentada, decadente], sigamos com firmeza a luz da verdade”30. “E já que o preenchestes com a graça destes santos mistérios, concedei-lhe que passe da natural fragilidade humana à vida nova”31. “Da natural fragilidade humana”: a dignidade antiga foi como um meteoro, como um desígnio ideal apenas indicado, pois o homem a enfrentou naturalmente, carregando uma fragilidade por dentro. O Senhor nos faz passar da natural fragilidade humana à vida nova.
Há uma palavra que já usamos e que agora devemos pôr no centro da questão da realidade criada, da nossa questão de criaturas, da minha criação, da nossa criação, da criação do mundo inteiro, da maneira como só pode nascer do renascimento que a fé em Cristo ressuscitado realiza, põe em prática. Leio um trecho de Dante: “Percebo como, intensa, já resplende/ em tua mente esta divina luz [no teu coração a divina luz resplende: é exigência de infinito, e a insatisfação tem esse termo de comparação],/ que, apenas vista, em nós amor acende [faz afirmar amorosamente o que vale de verdade, o real autêntico]./ Quando outra coisa aos vivos lá seduz [se alguma outra coisa os seduz: o juízo e a afetividade de vocês],/ é reflexo tão-só dela emanado [se “outra coisa aos vivos lá seduz”, essa outra coisa nada mais é que “reflexo tão-só” daquela divina luz, um sinal dela] e que confusamente [não entendido na sua natureza, pois não remete você a outra coisa: existe um ponto de fuga dentro de cada coisa, pelo qual ela está em relação com o infinito; você a toma, a possui, acredita possuí-la, exceto naquilo em que ela se torna realmente si mesma; por isso diz à mulher: “Eu amo você” e é mentira, ou diz: “Eu trabalho” e é mentira, mentira que se diz às coisas, mentira que se diz ao tempo que você dedica às coisas, mentira que se diz à companhia e ao povo ao qual você serve, ou deveria servir, com o trabalho] lhes transluz [que, dentro da coisa que atrai vocês, transluz]”32. “Percebo como, intensa, já resplende/ em tua mente esta divina luz,/ que, apenas vista, em nós amor acende./ Quando outra coisa aos vivos lá seduz,/ é reflexo tão-só dela emanado/ e que confusamente lhes transluz”: é a verdade, que transluz, resplandece, a verdade das coisas. “Quer comais, quer bebais, sois de Cristo; quer veleis, quer durmais, sois do Senhor; quer vivais, quer morrais, sois do Senhor.”33
Queremos arrancar as coisas daquilo que as constitui? “Tudo nele consiste.”34 Esse homem que ressuscitou, ressuscitou para gritar a todos, é o grito com o qual o Mistério eterno da Trindade grita a todo o universo, a todo o mundo, a toda a história que esse homem, o Verbo que se fez carne, é aquilo de que tudo é constituído. Se tudo é constituído dele, queremos arrancar pessoas ou coisas, tempo, espaço, projeto, daquilo de que são constituídos? Culpa, decadência, mentira, nada. Por isso, a liturgia destes tempos diz: “Deus eterno e todo-poderoso, que, pela ressurreição de Cristo, nos renovais para a vida eterna”35. Cada coisa tem um ponto de fuga para o infinito, o eterno, e é o que atrai você, porque tem a medida do coração. Queremos estabelecer relações com as pessoas e com as coisas sem esperança eterna? Se não há esperança eterna, nós as perdemos; tendo-as, nós as perdemos; abraçando-as, nós as arruinamos. Aos “que tirastes das trevas da descrença”36, ilumina a noite que avança. Tu nos tiraste das trevas da descrença com o dom da fé: é a luz, não as trevas; a verdade, não o que aparece a nós. A verdade é o que aparece aos anjos de Deus, ao coração da criança, à sua maneira e à sua medida, mas – mais precisamente – ao pobre de espírito, à inteligência pobre, como eu disse antes.
“Ó Deus, [...] fixemos os nossos corações onde se encontram as verdadeiras alegrias”37; não se trata de renegar nem mesmo um fio de cabelo da cabeça; trata-se de tornar verdadeiro o que vivemos, trata-se de afirmar o entendimento daquilo que é verdadeiro, trata-se de amar a verdade da afeição. Tudo isso é possível exclusivamente reconhecendo e imergindo no Mistério de Cristo.
“Sem dúvida, a ressurreição é, para o próprio Jesus”, escreve Inos Biffi, “um fato novo e original [identifiquemo-nos com esse homem que ressuscita: é um fato novo e original para ele, exatamente como é para nós], um fato certamente histórico [que aconteceu, ou seja, histórico] e que, por outro lado, o subtraiu à forma natural da experiência”. Jesus, quando ressuscitou, fez uma experiência nova da sua humanidade, do seu estar diante das pessoas, do estar no tempo e no espaço, do caminhar e do comer; é uma experiência subtraída à forma natural da experiência. A sua maneira de comer, de estar diante de Maria e dos Apóstolos, não era como a nossa maneira; era estar diante de tudo aquilo dentro da posse da perspectiva última, dentro da verdade, na verdade deles. Esse sermos “subtraídos à forma natural da experiência” é o que torna verdadeira também a nossa experiência de relação entre nós, de relação com a casa, de relação com as coisas, de relação com tudo. Se não é a forma natural da experiência, o que é? É a forma verdadeira, é a forma da experiência verdadeira, eterna – pois o que é verdadeiro é eterno: “Até mesmo uma palavra que se diz por brincadeira tem valor eterno”38, “até os vossos cabelos são contados”39 pelo eterno. A ressurreição é “um fato novo e original que o subtraiu à forma natural da experiência”. Chama-se virgindade o ser “subtraídos à forma natural da experiência”: uma relação dentro da qual há um desapego, que é a verdade do presente, uma relação na qual o ponto de fuga não é evitado, não é obstruído, não é eliminado pela consideração, não é bloqueado na pretensão de tomar tudo nas mãos, o que faz com que você perca tudo. Ser subtraído à forma natural da experiência, na experiência de Cristo ressuscitado, continua na história como virgindade, continua, na história do homem que Ele chama, como virgindade: uma posse dentro da qual há um desapego, dentro da qual existe um ponto de fuga ainda vibrante, ainda ferido, ainda escancarado, à espera, em busca, em atitude de súplica e pedido do Eterno.
“A ressurreição subtraiu Cristo à forma natural da experiência – atenção! –, mesmo o deixando ainda mais profundamente na nossa história [eu já disse isso: nada é evitado], conosco até o fim do mundo [com a realidade inteira, até a última gota de sangue, até o último fio de cabelo]. O Ressuscitado pertence ao mundo celeste [aqui está a tragédia: para nós, o mundo celeste é um mundo abstrato, acima de nós, sabe lá onde, um outro mundo, ao passo que sempre dissemos que ele é a verdade deste mundo, que é a verdade de você aos meus olhos, perante a minha inteligência e o meu coração, é a verdade de você; podemos errar mil vezes todos os dias contra isso, mas já é impossível evitá-lo, é impossível não sermos fiéis à aliança de Cristo ressuscitado conosco, à unidade com ele: “Eu sou o caminho”]. A ressurreição e a soberania de Cristo: é um fato novo e original para os próprios discípulos. A partir da ressurreição, eles começam a ver Jesus e a história dele sob uma luz renovada, descobrem definitivamente a identidade dele [aquilo que ele é de verdade] e aderem a ele sem mais oscilações [talvez com traições, mas sem oscilações: que paradoxo! A traição é um embaraço causado pela fragilidade, a oscilação é abandonar o caminho], depois do desconcerto e da provação inquietante da Cruz”.
Eu fiz uma comparação nos últimos Exercícios Espirituais – e concluo com esta observação –, uma comparação que repito com freqüência: a experiência nova, o ter sido subtraído à forma natural da experiência, essa forma nova da própria experiência, implica uma coisa fascinante que pode ser entendida com relação ao tempo e ao espaço. O tempo e o espaço são os fatores que permitem ao espírito e à consciência que se exprimam e se tornem experiência visível, tangível, audível. O tempo e o espaço são os fatores que permitem à consciência que se expresse, que se realize na história, e, portanto, são instrumentos expressivos: se eu tenho o tempo, eu me exprimo; se tenho o espaço, eu me exprimo; onde tenho tempo e espaço, eu me exprimo, me afirmo e me torno completo, me realizo no momento, realizo o meu momento. Mas, exatamente no mesmo tempo, exatamente na mesma situação, tempo e espaço não são apenas fatores que me permitem a minha expressão e a minha realização, são também limites que não me permitem realizar-me fora desse tempo e desse espaço – eu sou escravo, sou prisioneiro. São fatores expressivos, que, porém, em última instância me aprisionam, pois, se eu estou aqui neste momento e neste lugar, falando com vocês, não posso estar em Milão numa reunião de amigos falando com eles, pois o tempo e o espaço me prendem aqui. A forma nova da experiência que Cristo ressuscitado, como homem, experimentou, viveu, vive, vive até o fim dos séculos, é que o tempo e o espaço não são mais um limite, são apenas fatores expressivos. Por isso, exatamente no mesmo tempo, ele podia estar no espaço de Jerusalém e no espaço da Judéia; exatamente no mesmo tempo, Cristo pode estar na eucaristia em Tóquio e na eucaristia na Catedral de Milão. O tempo e o espaço são para ele apenas fatores expressivos: é o que nós experimentaremos completamente no fim do mundo, quando tudo será expressão, instrumento expressivo, realização completa.
Então, já desde agora, se participamos da experiência nova que o homem Cristo, ressuscitado da morte, vive até o fim dos séculos, nós participamos inicialmente, incoativamente dessa sua soberania sobre o tempo e o espaço. É isso que exalta a vocação à virgindade: só na virgindade de uma vocação o tempo e o espaço começam a ser mais transparentes, mais flexíveis, não são mais muros ou grades de prisão. Quando a pessoa está estudando e oferece, em Cristo morto e ressuscitado, o seu momento de estudo pelo mundo inteiro, pelo povo pobre que vive na África ou na América do Sul, seu gesto chega até lá e – não sabe como – se inscreve no tempo e no espaço das pessoas que lá são prisioneiras, que lá vivem como prisioneiras. Você não sabe, mas, quando age assim, quanto mais cresce nisso, mais experimenta, vive a sua experiência de homem nesta hora como experiência de senhor do mundo, de conhecedor do destino do mundo, de amante do mundo. Vive cada vez mais o seu momento como afirmação amorosa de tudo: mas então vive assim também a relação com a pessoa a quem ama, a relação com as pessoas que o aborrecem, a relação com o peso do dia, a relação com a alegria de um divertimento, a relação com o que lhe é estranho e o pressiona de todos os lados durante o dia. E, também com aquilo que você não conhece, não sabe, cujos efeitos, porém, vive, também diante da floresta selvagem, da barbárie da política, diante de Chernobyl ou da Aids, diante de tudo, você vive uma experiência que lhe dá a soberania sobre tudo, participa da soberania de Cristo, como consciência da experiência que você faz, como consciência de você, de você em ação, ou seja, de você em experiência, de você existente.
Não há alternativa entre Cristo ressuscitado e a decadência total para o nada, para a fermentação que mata, altera e mata. Não há nada que possa tirar a diferença entre essa verdade e a mentira nos nossos relacionamentos: a adesão a essa verdade ou a mentira, nos nossos relacionamentos. Até a relação mais íntima e mais amada nos deixaria até fim com absoluto desinteresse. Ao passo que a relação mais amada se torna eterna, uma posse já eterna, como disse Dante, porque nela “transluz” algo que você reconhece. E por isso você abraça aquilo que ama com aquele desapego por dentro que o faz dizer: “Em você transluz o grande Outro, Cristo. Amo você como amo a Cristo, amo Cristo em você, amo você em Cristo”; mas é a mesma coisa, sem nenhum artifício e sem nenhuma abstração. “Carne”, disse o cardeal Ratzinger; não se deve traduzir “ressuscitado dos mortos”, “ressuscitado do mal”, dos pecados, mas “ressuscitado na carne”, nas coisas tal como são. E não existe mais o estranho, ainda que fosse o mais distante dos homens que vive em Kamchatka ou na Austrália: não existe mais o estranho, e tudo pertence a mim com aquele alívio e aquele repouso que me dá a percepção do ponto de fuga que está presente em tudo e que liga tudo e todas as coisas ao Destino último, ao Mistério último que se revelou em toda a sua potência, misericórdia e justiça: Cristo ressuscitado.
“Ex uno Verbo omnia”: de uma só coisa tudo, de uma só realidade tudo. E essa única coisa que tudo grita é o que fala também em você, que coincide com a atração última que constitui o seu coração. “Ex uno Verbo omnia et unum loquuntur omnia, et hoc est Principium quod est loquitur nobis.”40 Ou, como diz Jacopone de Todi: “Amor, amor, omne cosa conclama”41. O mundo inteiro grita: “Amor, amor”. O mundo inteiro, tudo.
Mas isso é o motivo pelo qual já levantamos todas as manhãs: é um horizonte e um destino, uma intensidade de vibração, é um viver e um possuir, pois somos possuídos. É de sermos possuídos que parte o possuir, que parte a vibração e a intensidade, que parte a catolicidade, a totalidade dos relacionamentos, com a cruz dentro (posse com um desapego por dentro). Tudo parte do fato de sermos possuídos por Cristo ressuscitado, “imersos no grande Mistério”. A manhã nos é dada para recuperar essa verdade elementar, original do nosso ser criaturas chamadas, eleitas. Pertencemos à “geração dos que o procuram, e do Deus de Israel buscam a face”42. Somos parte da história de Israel, somos parte da história do Benedictus, e diante do mundo somos como João Batista: “Serás profeta do Altíssimo, ó menino”43. Profetas: a nossa existência deve falar diante do mundo. Mas essa é uma outra questão, uma questão que vem depois.
_______________________________________________________________
Notas
1 At 17,30b-31.
2 Jo 17,1.
3 At 4,7b-12.
4 1Cor 15,1-17.19-22.
5 Artigo escrito para Il Messaggero, no domingo de Páscoa de 1992, retomado no Editorial de Il Sabato, edição de 2 de maio de 1992, p. 3.
6 Id., ibid.
7 Cf. Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé. Decisões sobre a tradução do artigo “Carnis resurrectionem” do Símbolo Apostólico, 14 de dezembro de 1983. In: Notitiae 20 (1984) 212, pp. 180-181.
8 Cf. R. Guardini. Studi su Dante. Brescia, Morcelliana, 1967, p. 231.
9 Hino das Laudes do Tempo Comum (Trapistas de Vitorchiano).
10 Cf. Sl 118(117),22.
11 Cf. Santo Tomás de Aquino. I Sent., d. 42. q. 2, a 2, ad 4; I-II, q. 114, a. 2.
12 Mt 18,3.
13 1Cor 15,17.
14 5º domingo do Tempo Comum no rito ambrosiano, oração do dia (coleta).
15 Leopardi, Giacomo. “A si mesmo”. In: Cantos. Tradução de Mariajosé de Carvalho. São Paulo, Max Limonad, 1986, p. 131, vv. 14-16.
16 Num encontro, realizado em 7 de novembro de 1991 no então Centro Cultural São Carlos de Milão (hoje Centro Cultural de Milão), a cineasta Liliana Cavani, depois de ter afirmado que o centro da figura de São Paulo é o grito “Cristo ressuscitou”, declarou que ficaria sacudida se encontrasse um cristão que dissesse seriamente: “Cristo ressuscitou”.
17 Santo Agostinho. Comentário aos Salmos, Salmo 86,1.
18 Trata-se, aqui, das “casas” dos Memores Domini.
19 Santo Agostinho. Comentário..., op. cit., Salmo 37,13-14.
20 Hino das Vésperas do Tempo de Páscoa, Pelo sangue do Cordeiro resgatados.
21 Cf. Dn 3,57-88.
22 Liturgia das Horas, oração da Hora Média do domingo de Páscoa.
23 Cf. Gl 2,20.
24 Liturgia das Horas, oração das Laudes do 14º Domingo do Tempo Comum.
25 Liturgia das Horas, oração das Laudes da quinta-feira da 4ª semana de Páscoa.
26 5º domingo de Páscoa, oração depois da comunhão. Usamos aqui uma tradução literal da versão italiana, pois o elemento comentado por Dom Giussani não se encontra na versão em língua portuguesa usada no Brasil: “Ó Deus de bondade, permanecei junto ao vosso povo e fazei passar da antiga à nova vida aqueles a quem concedestes a comunhão nos vossos mistérios”.
27 Quarta-feira da oitava de Páscoa, oração depois da comunhão. Cabe sobre a tradução o que observamos na nota anterior, pois a versão em língua portuguesa diz: “Purificados da antiga culpa, nós vos pedimos, ó Deus, que a comunhão no sacramento do vosso Filho nos transforme em nova criatura”.
28 Liturgia das Horas, oração da Hora Média da terça-feira da 3ª semana de Páscoa.
29 Terça-feira da 3ª semana de Páscoa, oração do dia (coleta).
30 Liturgia das Horas, oração das Laudes da quinta-feira da 3ª semana de Páscoa.
31 Quinta-feira da 5ª semana de Páscoa, oração depois da comunhão. Aqui também, traduzimos literalmente a versão italiana, pelo motivo observado na nota 26. No Brasil, usa-se na quinta-feira da 5ª semana de Páscoa a mesma oração do domingo.
32 Alighieri, Dante. Paraíso, V, vv. 7-12. In: A Divina Comédia, volume II. Tradução de Cristiano Martins. São Paulo/Belo Horizonte, Edusp/Itatiaia, 1979, p. 329.
33 Cf. 1Cor 10,31; 1Ts 5,10; Rm 14,8.
34 Cf. Cl 1,17.
35 Quinta-feira da 6ª semana de Páscoa, oração depois da comunhão.
36 Quarta-feira da 5ª semana de Páscoa, oração do dia (coleta).
37 21º domingo do Tempo Comum, oração do dia (coleta).
38 Cf. Mt 12,36.
39 Cf. Mt 10,30.
40 Imitação de Cristo, Livro Primeiro, 3, 8.
41 Jacopone de Todi. Como l’anima se lamenta con Dio de la carità superardente in lei infusa, lauda XC. In: Le Laude. Florença, Libreria Editrice Fiorentina, 1989, p. 318.
42 Sl 24(23),6.
43 Lc 1,76.