Deus: o tempo e o templo
Extraído de Giussani, Luigi. Il tempo e il tempio. Milano: Bur, 1995, pp. 11-35Notas de um diálogo de Luigi Giussani com um grupo de Memores Domini. Riva del Garda, 26 de novembro de 1994
A palestra desta manhã é um diálogo que quero instituir entre mim e vocês, que vão fazer a profissão esta noite. Mas, mais profundamente, mesmo existindo o perigo de que seja surdamente, é um diálogo de chamado de atenção com aqueles que, por dom de Deus chamados como vocês, já passaram anos e anos, e muitos anos, na grande possibilidade daquelas quatro paredes da casa; por rudez de espírito, que produz ininteligência e insensibilidade, o tempo pode ter sido passado em uma distração, o que não é todavia uma objeção tão radical a ponto de instituir uma traição, que é a palavra exatamente contrária a profissão.
“Profissão” é afirmar diante do mundo e “traição” é negar diante do mundo. O “diante do mundo” é sinônimo do “diante de Deus”, porque é no mundo que conhecemos a Deus, é no mundo que nós caminhamos para Deus, é no mundo que nós glorificamos a Cristo, é no mundo que nós construímos o reino de Cristo. O mundo não é Deus, mas é o lugar de Deus: este mundo.
Eu gostaria que aquilo que diremos esta manhã começasse lentamente a gotejar na sua alma, originalmente árida, de uma aridez que tem sede, e despida, porque tem de ser revestida de frescor, desta “casa” à qual acenamos ontem à noite, como o pedaço de tempo e de espaço, o pedaço de mundo, o pedaço de história que lhes interessa, que atravessa e entra no seu ser, exatamente como o lugar onde se demonstra, expõe-se como em uma mostra, mostra-se Cristo como Rei do universo.
Ora, qual é a lei desta casa, que antigamente era indicada com o termo morada ou templo? A lei é a descrição de um mecanismo estável, de um dinamismo estável, como eu dizia há tantos anos, quando dava aulas de religião; se existe uma vida, a lei é a descrição do dinamismo da vida, assinala o por que a vida cresce, assinala quando a vida cresce e quanto a vida cresce.
A lei. Qual é a lei dinâmica para que a casa seja casa? Qual é a lei dinâmica para o desenvolvimento da casa? Tudo o que Deus permite é para um desenvolvimento, para uma vida, para uma história, para um destino; das Suas mãos tudo sai como semente, como promessa. Qual é a lei dinâmica do ser e do desenvolvimento da casa? Espero que seja clara a pergunta.
Existe um livro escrito para chamar a atenção da humanidade justamente para este acontecimento, para o acontecimento do organismo inteiro que Deus despertou para que seja e permaneça no mundo o ponto de chamado de atenção e a meta de desenvolvimento, o ponto de partida e o objetivo de tudo. Existe um livro escrito para chamar a atenção da humanidade para o acontecimento deste grande organismo do qual buscamos a lei, a lei gerativa, a lei que o protege de todo o resto e que faz com que todas as resistências sejam vencidas, que não elimina as resistências, mas faz com que todas as resistências sejam vencidas para levá-lo a cumprimento, para levá-lo até o dia da justiça, no grande dia de Cristo, o dia do Apocalipse. Este livro – é claro – é a Bíblia. De fato, toda a história do povo hebreu é o pré-aviso daquilo que iria acontecer a toda a humanidade. Por isso, lendo com inteligência e humildade – e afeto para com o mistério do Ser, para com o mistério do Pai – a história do povo hebreu, podem muito bem ser observadas estas linhas de desenvolvimento, estes sinais de um rumo. São Paulo chama a história do povo hebreu “o grande pedagogo”, o grande mestre que Deus criou, formulou, assistiu, destinou para preparar a humanidade.
Reparem que a preparação que o povo hebreu é para o grande Acontecimento, esta pedagogia que ele representa, vale mais para nós, que viemos depois, do que para o povo de então, que não conheceu e não reconheceu o significado do povo hebreu. Mas o povo hebreu com a sua história foi tornado por Deus como que uma pedagogia, como que uma introdução iluminadora da natureza da Sua intervenção no mundo, da natureza da Sua intervenção na história. Esta preparação é mais feita para nós do que para aqueles de então. É feita para todos, mas para aqueles de então foi como um relampejar nas trevas da névoa; para nós é a verificação de um dia sereno, de um dia em que a luz já apareceu e o sol já caminhou bastante, talvez traçando o seu sulco no espaço da nossa distração – mas o percurso ele o fez. A qualquer momento você pode se redimir e se dar conta daquilo de que nunca havia se dado conta. E a palavra “casa” é central para este se dar conta, para esta descoberta, para este seu retorno.
Bem, o reino de Cristo é como um grande organismo que teve uma lei de ser e de desenvolvimento: uma lei criativa de si, do seu princípio e, portanto, do seu crescimento, até alcançar o seu destino, o seu fim, que é a glória total de Cristo. Esta lei nós a podemos chamar lei da escolha ou da eleição.
Para que Cristo seja tudo em todos, para que Cristo apareça todo em todos, para que a glória de Cristo apareça como a forma e o conteúdo de todas as coisas – “tudo nEle consiste” –, para que isto apareça, há, operada por Deus, pelo Mistério, pelo Pai, uma escolha ou eleição. Fora desta escolha ou eleição não pode acontecer senão a realidade de uma multidão de mendigos, de mendicantes, que recolhem as migalhas que caem da mesa dos filhos, exatamente como dizia a cananéia: até os cães podem se alimentar das migalhas que caem da mesa dos filhos.
Procuremos, portanto, acenar ao progressivo enriquecimento do conteúdo objetivo deste gesto do Pai, do Mistério, que se chama escolha, eleição ou chamado. É disto que tudo parte. De fato, o grande chamado, a grande eleição, a grande escolha que Deus fez por meio do seu desígnio no mundo é o chamado, a eleição de Cristo, do homem que dizia: “Aquilo que vejo o meu Pai fazer, eu o faço sempre. Eu não faço outra coisa senão aquilo que vejo o meu Pai fazer”. Releiam a respeito disto os capítulos 5, 6, 7 e 8 de São João: “Para isto fui enviado”: escolha, eleição, missão.
Mas, anteposto este aceno, quase tímido e furtivo, ao grande chamado que tudo reúne e tudo explica – o mundo, a vida de cada homem e de todos os homens, de todos os povos, os próprios movimentos dos povos, as próprias grandes migrações dos povos têm como objetivo, diz São Paulo no Areópago de Atenas, a busca do desígnio de Deus, a busca de Deus, isto é, a busca do desígnio que Deus tem sobre o seu existir, o seu mover-se –; tendo-o deixado à parte, isto é, deixada inscrita dentro da abóbada do céu, que ilumina os nossos passos, esta misteriosa e eterna eleição de Cristo, vejamos na história, naquela história que leva o nome do mês e o número do ano em que você nasceu, em que eu nasci, nesta história, na história dos homens, na história do mundo, na história-história, vejamos como esta eleição, este chamado, que depois irá se tornar, como diremos, missão, pode traduzir-se em um elenco, no sentido grego da palavra.
Primeiro. A eleição de Nossa Senhora, a escolha desta jovem mulher de 15-17 anos, para que fosse e criasse a primeira morada de Deus no mundo, o primeiro templo de Deus no mundo, do Deus verdadeiro e vivo; para que fosse a primeira casa de Deus no mundo. Maria, tu és a primeira casa de Deus no mundo, o primeiro contexto, o primeiro âmbito, o primeiro lugar em que tudo o que havia era de Deus, de Deus que vinha para viver entre nós. Tudo o que tu és – tudo! – é para Deus, morada Sua. Não há nenhuma falsidade em ti: “Gratia plena”. O dom de Deus, a escolha de Deus tornou-te toda pura; aliás, mais que tornar-te, fez-te toda pura: “Gratia plena”. Por isso és a belíssima, porque a beleza é o esplendor da verdade: belíssima!
Em Nazaré, a casa de Nazaré – que é a coisa que mais toca em uma peregrinação à Palestina; de todas as coisas, parece-me que esta seja a que toca mais: quando alguém, pouco mais acima, lê em baixo: “O Verbo aqui se fez carne” (Verbum caro hic factum est); aqui, aqui!, “casa” –; a casa de Nazaré é o primeiro desenvolvimento daquela casa que é o seio de Maria, que é Maria. É o primeiro desenvolvimento daquela personalidade investida totalmente, que era totalmente para Cristo, feita, existente, viva, vivente, criativa, cheia de graças: para que Cristo seja reconhecido. A casa de Nazaré é o primeiro desenvolvimento da casa que é Nossa Senhora.
E pensar – rapazes – que três amigos nossos fizeram uma casa em Nazaré este ano! Não é este um sinal que deve nos sacudir? Não é um sinal de Deus, para o qual nada acontece em vão – estas coisas, então, imaginem! –, não é um sinal que quer que todos despertemos, que despertem todos os Memores Domini, para que cumpram a sua missão no mundo com mais inteligência, com mais afeição, com mais criatividade, com mais presença e não com a opacidade em que afogam a maior parte dos seus dias? Toda frase que em mim pareça recriminação, meus amigos, hoje, por respeito a vocês, é um chamado de atenção a vocês, são votos que faço a vocês! Não fica como recriminação feita aos seus companheiros mais velhos e a mim mesmo, portanto.
Segundo. Reparem que estes pontos são quadros para serem meditados, pedaços de história para ser meditada, com os quais se identificar, porque o que vive hoje vive como desenvolvimento daquilo a que acabamos de chamar a atenção, que está presente, portanto, e está para o hoje como a raiz está para a sua planta. Falamos desta realidade da casa de Nazaré, desta morada em Nazaré, realidade de tempo e de espaço em que tudo é para Cristo. E quem é o mediador, o demiurgo, que torna cada coisa que existe em seu âmbito toda para Cristo? O homem, o homem chamado! Este renova o mundo, este participa da redenção do mundo, este é o redentor do mundo, em ação, que se vê; o homem chamado, o homem eleito, você que responde.
Esta realidade da casa de Nazaré difundiu-se em todo o mundo. Difundiu-se: nós já podemos dizer isto! São Paulo dizia: “difunde-se”, “está se difundindo”. Nós podemos dizer que “difundiu-se” em todo o mundo – temos duas casas na Sibéria, uma casa em Moscou, duas casas em Nova York, casas e casas na América do Sul, no Quênia e na Uganda.
Esta realidade da casa de Nazaré difundiu-se em todo o mundo através da eleição de homens colocados todos juntos como uma forma única – a Igreja –, como uma realidade única: como o corpo de Cristo que se dilata no tempo e no espaço, como Aquele que nasceu de Nossa Senhora, no seu contínuo nascimento dentro do mundo. É a Igreja: o acontecimento que se torna presente no mundo, presente para o mundo, em todos os momentos, anos, meses, dias, horas, minutos, da sua história: a Igreja, corpo misterioso de Cristo.
A este segundo ponto segue um nota bene. Amigos meus, de quanta emoção, de quanta comoção, de quanto remorso, de quanto arrependimento, de quanta dor e de quanta alegria é conscientemente feita cada palavra que digo! Em tantos anos de vida! Não apenas para mim, mas também para os seus companheiros mais velhos que têm a responsabilidade de conduzir a pessoa e a companhia de vocês. Cada palavra que digo quer ser a última palavra sobre as coisas a que aceno, sobre o tempo a que aceno, sobre a realidade do homem que caminha, sobre o mundo e sobre a história; quer ser a definição do destino de vocês, do destino de vocês neste mundo e no fim deste mundo, quando Cristo será, finalmente, tudo em todos, e todos o verão e dirão: “Vocês tinham razão!”. Mas já o dizem, já muitos o dizem. Vocês também talvez os tenham ouvido, e a carta que lerei no final, se sobrar tempo, será um exemplo – entre mil – admirável. Estas coisas que lhes parecem só palavras são coisas imensas, para serem olhadas e descobertas, para serem abraçadas, para serem amadas, nas quais penetrar como em uma longa viagem (que é muito melhor do que todas as viagens turísticas que vocês sonham e também do que todas as peregrinações que substituem, como pretexto, desejos turísticos).
Eis, portanto, o nota bene. Qual é a força que permite este contínuo desenvolvimento, o contínuo desenvolvimento daquele organismo, o contínuo permanecer e renovar-se e multiplicar-se daquelas moradas, daquelas casas, isto é, que permite o dilatar-se da Igreja? O que permite este contínuo desenvolvimento é o Fato, o Hóspede desta casa que foi o seio de Nossa Senhora. Este Hóspede, Rei do Universo, “cunctorum dominator alme”, este Hóspede da casa que foi o seio de Nossa Senhora, morreu na cruz para que assim acontecesse, e ressuscitou para que todos compreendessem que Ele é o Rei do universo. E depois de poucas semanas subiu ao céu, isto é, desceu à profundidade onde as coisas nascem, onde tudo é gerado, onde tudo é criado, instante após instante, tudo. E de lá envia o seu Espírito para o mundo, que é o Espírito criador: “Veni, creator Spiritus”. O ponto culminante e o sentido desta criação do seu Espírito que como um vento investe a realidade mundana, a realidade do tempo e do espaço, investe-a transformando-a continuamente, este ponto culminante é o dilatar-se da Sua Igreja e o multiplicar-se das Suas casas, das Suas moradas. Esta é a história que traz o sentido do mundo, é a história que traz o sentido da história do mundo. E nós estamos entre aqueles que foram chamados: não está aqui nem mesmo um que não o tenha sido, nem você, mesmo que estivesse quase para ir embora. Vale mais isto, esta minha palavra é muito mais decisiva, julgadora, geradora, criadora do que qualquer verbo de mulher ou de homem.
Terceiro. A grande morada da Igreja encarna-se – para usar o termo com o qual é definido o grande Acontecimento original pelo qual tudo nasceu e do qual tudo nasce: o Verbo encarna-se no seio de uma jovem mulher –, a grande morada da Igreja encarna-se, realiza-se; encarna-se, isto é, realiza-se, torna-se existente em terminais capilares (assim como as veias terminam em finíssimos capilares), por meio dos quais se torna presente em cada ambiente particular, em cada ambiente escolhido pelo desígnio de Deus: o Tibete é prometido, não ainda escolhido.
A grande morada da Igreja encarna-se, realiza-se em terminais capilares dentro de cada ambiente particular, escolhido. E, sobretudo, dentro das casas, das moradas. Tomemos estas casas, estas moradas em que os terminais são verdadeiramente terminais e definem, fazem compreender, o tecido do ambiente em que se está, do povo a que se pertence. Estas casas, ou moradas, podem ser de duas espécies:
a) a casa daqueles que são chamados a fazer família e portanto (atenção!) a plasmar o instrumento – a família é instrumento –, a plasmar o instrumento gerador do qual sai o sujeito de toda a ação histórica, o protagonista do desígnio de Deus, que é o homem. Esta é a vocação normal, sem a qual acabaria a história: a família, raiz do perene desenvolvimento da história, casa de Jesus, morada do Filho do Homem;
b) o mosteiro, que é a palavra etimologicamente mais significativa entre todas, porque mosteiro deriva de monos, só, sozinho, solitário, só. Porque a relação da humanidade com Deus, com o Mistério, torna-se consciência, liberdade e amor no indivíduo: torna-se um “eu” novo. Mas “mosteiro” quer dizer muitos “eu” que estão juntos. Mesmo o exemplo do eremita tem uma proviso-rie¬dade que não cria uma lei: todos estes monoi, de um modo ou de outro, exprimem e documentam o seu ser uma só coisa entre si na Igreja de Deus: colocam-se juntos. Eis a segunda palavra, análoga à palavra mosteiro: “convento” – colocar-se juntos –, ou companhia, ou família, ou casa.
Mosteiro, convento ou casa, segundo a diferente modalidade do chamado: quem for com padre Emmanuel vai para o convento, quem for com madre Rosy vai para o mosteiro, quem for com Dario vai para uma casa.
Mosteiro, convento, ou casa: feitos, criados, construídos, gerados por quem foi escolhido como pedra viva. Escolhido para quê? Escolhido como pedra viva para formar, para gerar uma existência experimentável por todos, com a qual se demonstre, pela sua própria forma visível, que só Ele é. No mosteiro, no convento ou nas casas, estas pedras vivas, aqueles que foram chamados e escolhidos, foram chamados para demonstrar com a própria forma visível da sua vida – você, que faz a profissão hoje, é chamado a demonstrar com a forma visível da sua vida, só com a própria forma visível da sua vida – que só Ele é; ou seja, que Cristo é o Rei do universo: “Christe cunctorum dominator alme”, “omnia in ipso constant”: tudo tem consistência nEle, por Ele.
Mosteiro, convento ou casa são, por isso, aquele lugar criado para que aqueles que ali moram gritem diante de todos, a todo instante – toda a sua vida é feita para isto – que Cristo é a única coisa pela qual valha a pena viver, que Cristo é a única coisa pela qual valha a pena que o mundo exista. Mas isto é verdade como dois mais dois é igual a quatro: que Cristo é a única coisa pela qual valha a pena que o mundo exista, que Cristo é a única coisa pela qual valha a pena que se realize a história.
Como vocês fazem? Escutaram aqueles mais velhos do que vocês que estão em casa, ouviram-nos gritar diante de todos, a todo momento? “Devem ser loucos, devem ser loucos!”. Não, não são loucos: são loucos se não têm consciência disso, quando não têm consciên¬cia disso. Mas toda a sua vida é feita disto: gritar diante de todos a todo instante que Cristo é a única coisa pela qual valha a pena viver é a própria forma da vida deles. É a própria forma da sua vida, prescindindo – vou voltar a dizê-lo ainda duas vezes –, prescindindo até da coerência que a sua existência produz. Quase apesar deles.
Este é o valor objetivo da vocação: a forma da sua vida entra em jogo no mundo por Cristo, luta no mundo por Cristo. A própria forma da sua vida! Por isso, quanto fizeram a profissão, fizeram um gesto grandioso, o maior da sua existência. Se os seus dias, os seus instantes, todos os seus instantes, os seus passos, se todo o seu caminho não se mantém atrás desta dedicação, se falta a ela – que é o conceito de “pecado” –, se falta a esta dedicação, lutam do mesmo modo por força da forma objetiva da sua vida: é uma vida consagrada a Jesus. É uma vida que como forma grita: “Jesus é tudo”. Gritam isto diante de todos, de todos aqueles que os vêem, de todos aqueles que com eles se deparam, de todos aqueles que os ouvem, de todos aqueles que olham para eles.
Aqueles que moram no mosteiro, no convento ou na casa foram chamados a ser profetas. É a profecia no mundo, porque ser profetas quer dizer gritar diante de todos (pro-femi), gritar diante de todos que Cristo é tudo. E dizer “Cristo é tudo” é ser profetas do futuro: porque se Cristo é tudo, que será das suas traições de hoje e de ontem? Por isso, a vida de hoje tende a mudar para que não aconteça o inferno de amanhã, o não sentido de amanhã.
Profetas. Como Moisés, do qual vocês vão ler, no capítulo 3 do Êxodo, o momento em que Deus o chamou e ele logo respondeu: “Mas quem sou eu para ir fazer isto? Quem sou eu para fazer isto no mundo?”. No mundo: porque se trata da história do mundo. E o protagonismo de cada um de vocês é tal que, se não existisse, faltaria alguma coisa na história do mundo – na história do mundo! Ou então como Isaías, que no capítulo 6 responde: “Eis-me aqui, enviai-me a mim”, com a espontaneidade, a vivacidade, a riqueza, o esplendor de um adolescente. Ou Jeremias, no capítulo 20, que representa bem os amigos mais velhos e não tão mais velhos de vocês, que representará talvez vocês mesmos dentro de poucos meses, se a vivacidade não é implorada todos os dias, se não vibra todas as manhãs, quando vocês se levantam da cama, se não é oposta a todas as tentações. Se, pelo contrário, é implorada, entra no mal de um erro que se fez para escavar nele e dar novamente vida à carne: a sua carne será como erva fresca. Jeremias, capítulo 20, diz: “Quando é que entrei nesta ordem de idéias! Mas quem me chamou? Por que me chamou? Quase maldigo o dia em que minha mãe me fez nascer! Mas olha em que batalha acabei! Que escolha contínua devo fazer! Que renúncia!”. E parece ser isso mesmo: quando você descobrir, cedo ou tarde, que “parece” ser renúncia aquilo que não é renúncia, mas posse mais profunda – não renúncia, mas posse mais profunda – então não terá vergonha de você: ficará maravilhado com o Altíssimo, ficará maravilhado com Cristo, e irá se sentir inundado de ternura para com o seu corpo, o seu coração e o seu espírito. De uma ternura que em volta de você não existe, senão como cobertura do instinto, fórmula da instintividade. A ternura é a grandeza do olho escancarado diante do infinito, é a dilatação do coração que abraça o infinito, que abraça tudo. “Cristo todo em todos”: é uma fórmula que se torna através do tempo cada vez mais experiência – cada vez mais experiência!
Profeta você é, você que faz a profissão hoje, “a dirigir os nossos pés – os pés de nós, pobres homens – em um caminho de paz”. Somente você poderá verdadeiramente, conscientemente, augurar, saber augurar aos seus irmãos homens que passam ao seu lado, que vão com você no metrô, que você encontra pela rua, que o hostilizam ou o apóiam ou são indiferentes a você, somente você poderá augurar: “Sint dies laeti placidaeque noctes”, segundo a expressão do “Christe cunctorum dominator alme” (que poderia ser um hino de Santo Ambrósio, letra e música; a sua maneira suprema de pregar, de evangelizar, era o canto: letra e música; poderia ser de Santo Ambrósio, porque é uma obra grande, é uma poesia grande, grandiosa e grande). A todos os homens devemos levar este augúrio: “Sint dies laeti placidaeque noctes”. Noctes placidae, pacatas, em paz, não subvertidas pelo veneno da tentação, pelo aproximar-se da queda, pelo tormento do medo dos acontecimentos. Dies laeti, alegres como um dia de sol, mesmo que o dia fosse frio: mas é ardente, como os dias de março descritos por Maria Barbara Tosatti nas suas poesias. Bem, a profecia é esta.
Quarto. Os chamados à virgindade são a figura do profeta, sobre os quais antecipei as reflexões que acabei de desenvolver.
Ora, a figura do virgem é a figura do profeta. A figura do virgem é a figura do profeta por sua natureza: não se preocupe em sê-lo, você o é; se faz a profissão o é, se decide ser de Cristo, na virgindade é profeta. Não coloque a profecia como tema de reflexão, senão para tomar consciência daquilo que você é, e não para descrever uma meta à qual chegar. Os chamados à virgindade são a figura do profeta.
Esta figura do profeta, ou a figura do virgem, é o milagre dos milagres. A partir de que os homens reconhecem Cristo, que Cristo é Deus? A partir de que começam a tremer, a duvidar, e a dizer: “Mas você, de onde vem? Quem é?” – e sabiam tudo dEle, estava inscrito nos registros de Belém, conheciam todos os particulares de sua casa porque muitas vezes tinham estado ali –. A partir dos milagres. O profeta e o virgem são o milagre dos milagres.
O milagre, de fato, como vocês vão estudar na Escola de Comunidade, se já não estudaram (se já trabalharam aquelas páginas sobre o milagre e não se lembram delas são tolos), o milagre é um acontecimento que obrigatoriamente chama a atenção para Deus. Obrigatoriamente: é um acontecimento pelo qual a pessoa é obrigada a chamar a própria atenção para Deus. Mesmo que não creia – depois continuará a dizer não –, mas ainda que não creia é obrigada a pensar em Deus. A Escola de Comunidade distingue três casos, três níveis do milagre.
O primeiro nível é a criação, como diz São Paulo aos Romanos: olhando para a criação todos os homens compreendem que há algo de Outro. O segundo nível é o milagre enquanto fato emergente na minha vida, na minha existência, através do qual Deus quer chamar a mim, quer me mudar, convida-me a tornar-me diferente, dizendo-me: “Eu te favorável. Tu és meu e eu te sou favorável. Por que tens medo?”. Ou então: “Por que me trais?”. Neste segundo sentido, o milagre é um acontecimento da minha vida que me obrigou a pensar em Deus, que me obriga a pensar em Deus. O milagre, em sentido lato, é uma excepcionalidade de acontecimento que me obrigou a chamar a minha atenção para Jesus e, voltando a pensar nele, obriga-me a voltar a pensar em Jesus e não tenho outra explicação; e, comigo, também todos os amigos, todos aqueles que me querem bem, os próximos, compreendem; e compreendem também os meus próximos de agora, a quem eu o conto; se não são superficiais, eles também ficam tocados, menos do que eu, mas também eles ficam tocados. Enfim, o terceiro nível é quando o acontecimento é tão evidente, chama a atenção para Deus com uma tal objetividade de grandeza, de força, de ausência de “explicabilidade” em outros termos, que pode se produzir em todo o mundo, aos homens de todos os tempos, também aos cientistas de todos os tempos, como certos milagres de Lourdes ou de Fátima. Mas a Igreja de Jesus, a casa de Jesus – analogamente, as nossas casas – não vive nunca um ano sem experimentar a presença destes milagres grandes.
Seja como for, por que os chamados à virgindade representam o milagre dos milagres? Porque não existe nenhum milagre maior do que um homem que dedique toda a sua vida a Cristo, sacrificando instintos e tendências naturais que Deus colocou nele, que ele atravessa e supera dando a sua vida a Cristo. “Que bonita menina você é, mas já se casou?”, diz ele com uma certa esperança. “Não”. “Ah!”. “Mas eu não me caso”. “Como é?! Por quê?” “Porque Jesus Cristo é maior do que todos: faz com que eu ame a todos, faz com que eu me sinta amada como nenhum outro poderia, faz com que eu valorize tudo, até você, amigo”. E este vai embora um pouco, digamos... com o rabo entre as pernas, para nos aproximar da imagem que se deveria usar. Não há nenhum milagre maior: é o milagre humano por excelência, em que o homem se torna fator do milagre, sujeito e objeto do próprio milagre. E depois aquele homem tem esta menina ali todos os dias no escritório. E então, talvez, tente de novo. E aqui “se mostrará a sua nobreza”, aqui se coloca à prova a nobreza da menina, isto é, a sua fidelidade. A vocação de que ela falou na primeira vez é um acontecimento que obrigatoriamente diz “Deus” ou “Jesus”, para explicar-se; e o outro, vendo-a, continua a pensar em Jesus e em Deus, obrigatoriamente, mesmo que, cheio de raiva, queira inverter a questão.
Para que esta figura, porém, realize a sua vocação profética – para que você, amigo meu, realize a sua vocação profética – é preciso:
1) Que viva a fé mais do que os outros (esperemos que, em É possível viver assim?, que é o relato de todo o diálogo de um ano inteiro com os noviços do primeiro ano, vocês repassem o que quer dizer fé e como nasce a fé). A fé é afirmar uma Presença cuja origem não se vê, cuja consistência não se vê: vêem-se os terminais dos seus gestos, certos dados, certos resultados – os terminais dos seus gestos.
Êxodo 2. Moisés era uma assassino: foi chamado a guiar o seu povo. Você é profeta porque é chamado à virgindade, é profeta porque virgem, ainda que você tivesse os seus dias inchados de erro.
É mais ou menos o raciocínio que fazem os escritores do Antigo Testamento, especialmente nos Salmos, quando dizem: Senhor, sê fiel. Tu és fiel à Tua aliança. Pelo Teu nome, isto é, pela dignidade do Teu desígnio, pela Tua dignidade que se revela no Teu desígnio, pela Tua dignidade de triunfante, de vencedor, de dominador de tudo, de Rei do universo, mesmo se eu erro, mesmo se errei, não me abandones. Castiga-me por quanto fiz, mas não suspende a Tua aliança, mantém-me no caminho.
Por isso, todo tempo é bom. Todo tempo é bom porque todo tempo é ocasião de retomada, de dor e de retomada. E o passado se torna fonte de riqueza para o presente; o passado enquanto erro é como se não tivesse existido: nunca existiu. Como Milosz faz Miguel Mañara dizer: “Todas estas coisas jamais existiram. Só Ele é”. Esta é a única força, a única fonte de plenitude e de alegria para o homem sobre a terra: “Só Ele é”.
2) Que saiba dar a razão da sua fé mais do que os outros. Justamente porque o seu chamado o faz ser capaz de dar mais razão, de descrever mais, mais amplamente, mais densamente os efeitos da Sua presença na vida, a mudança da vida: “É, se opera”; “É, se muda”; “É, quando muda”, dizia-me um de vocês. É, porque muda, melhor ainda. A pessoa é pecadora por toda a vida e muda toda a vida: que coisa infinita!
3) Que, sobretudo – fiquem atentos às palavras –, torne a sua fé forma das suas ações: quer coma quer beba, quer vigie quer durma, quer viva quer morra. Que torne a fé forma das suas ações, de modo tal que tendencialmente toda ação sua seja tornada perfeita pelo objetivo que persegue, pela consciência que segue, como é perfeito o sentido último da história: Jesus, o homem Jesus, Deus.
Nota bene a este quarto ponto (se vocês têm paciência, dentro de vinte minutos eu termino; porém, vocês que fazem a profissão de fé não encontrarão nada e ninguém que lhes dirá a verdade de vocês mesmos e da sua vida assim com tanta paixão e consciência como vocês ouvem ser dito por quem tem a responsabilidade pelos Memores Domini). Se a caridade é dom de si comovido, é amar o outro através do dom de si comovido (espero que vocês descubram isto no livro que citei), se a caridade é amar a outra pessoa com o dom de si comovido, se a caridade é afirmar o outro no seu destino – dom de si ao outro e amor ao destino do outro, portanto: dom de mim ao outro, a minha vida como serviço ao outro, ao caminho do outro, e afirmação contínua do destino que o espera como luz e paz (“a dirigir os nossos pés rumo a uma vida de paz”) – não há caridade maior do que a virgindade.
Não há caridade maior do que a virgindade (Madre Teresa de Calcutá, se estivesse aqui, bateria a mão na mesa, dizendo: “Sim, é verdade!”). Porque na virgindade eu dou a mim mesmo ao homem, até ao mais miserável que se aproxime de mim, mas não tem mais nada a ver a diferença entre miserável ou não-miserável: dou a mim mesmo pelo caminho do outro, afirmando continuamente, recordando-lhe continuamente o destino para o qual é feito, Jesus: recordando continuamente Jesus. Ou se é impostor ou, recordando Jesus ao outro, chama-se para Ele também a própria atenção.
Assim, a virgindade é o ponto culminante da regra moral para qualquer homem, que é chamado a realizá-la segundo um ou outro tipo de vocação. A virgindade é o ponto culminante da regra moral também para quem tem a outra vocação. Que Jesus seja tudo – cunctorum dominator alme –, que seja a fonte da paz e da alegria na vida, do equilíbrio, da construtividade, é verdade para meu pai e para minha mãe como para mim. Mas eu sou chamado pela minha própria forma de vida a chamar a atenção de meu pai e de minha mãe para isto. Por isso, os nossos pais, quando nos vêem, os pais de vocês, quando os vêem, mudam: mudam o olhar para vocês. Ainda que ficassem irritados e fossem contrários ao que vocês fazem, são tocados por aquilo que fazem.
A virgindade é o ponto culminante da regra moral para qualquer homem, chamado a realizá-la segundo um ou outro tipo de vocação, uma vez que a vida como vocação é a vida enquanto chamada a um certo modo de colaborar para a história do universo. A vida é chamada a colaborar para a história do universo, isto é, para o reino de Cristo; querendo ou não, conscientes ou inconscientes.
Assim se compreende também a diferença imediata, visível, sensível, sensitivamente perceptível entre os dois caminhos: a virgindade é mais significativa. Que uma pessoa seja pai ou mãe é justo, é naturalmente compreensível. Mas a virgindade é mais significativa. Um pai e uma mãe que buscam viver a virgindade no seu relacionamento – fala-se, de fato, de castidade matrimonial –, isto é mais significativo ainda do que o seu ser pai e mãe. São pai e mãe em nome de Cristo: é uma intenção que eles dão a si mesmos, a tudo o que fazem. Mas se isto obtém uma pureza nas suas relações, então verdadeiramente se torna mais significativo.
A virgindade é mais significativa e ecoa de imediato. O outro caminho é atribulado pela carne, dizia São Paulo: “Vós tereis tribulações na carne; eu gostaria que as evitásseis”. A tribulação da carne é mais impeditiva. Por isto falei – para escândalo de tantos – de “freio”: a carne se torna um freio. Como no Noli me tangere do Beato Angélico, naquele detalhe que representa a Madalena que vai na direção de Jesus: mal ela o vê, isto é, se apercebe de Jesus, que antes acreditava fosse o jardineiro, atira-se sobre Ele. E Jesus pára-a com a mão. Vêem-se as duas mãos da Madalena e a mão de Jesus que freia: que é a imagem que sempre demos da posse virginal, que tende para a totalidade. Mas enquanto este tender para a totalidade fica a um palmo da cara do outro, possui de verdade, muito mais do que se a pessoa se atirasse sobre o rosto: atirando-se sobre o rosto a mão se torna mais semelhante à pata do animal. O outro caminho terá tribulações na carne, isto é, terá como eterna contradição aquela sede de posse que é a constante material de um relacionamento não virginal.
Quinto. O momento da profissão fixa a data em que Cristo, na Sua Igreja, coloca, diante de todo o povo crente e não crente, aqueles que Ele chamou, aqueles que Ele escolheu para serem enviados a todo o mundo. Vocês não são mandados para a rua tal número tal, para a cidade de vocês: são escolhidos para serem enviados a todo o mundo (o bonito vem agora!) para ser, como profissão de vida – vocês deveriam escrever livremente na sua carteira de identidade –, não pai ou mãe de família, não administrador ou arquiteto, não dirigente ou operário: a sua profissão de vida será a proclamação profética de todas estas coisas que dissemos com a própria forma da sua vida, isto é, a forma de quem não se casa para penetrar por um outro lado, para penetrar naquele fenômeno de esponsalidade total com todos e todas as coisas, que é a promessa da realidade de Cristo como aparece ao olho e ao coração dos que crêem.
Profissão de vida: não pai ou mãe de família, administrador ou arquiteto, dirigente ou operário, mas a virgindade. “O que você faz?”. “A minha forma de vida é a proclamação profética”, a proclama¬ção profética de todas estas coisas.
Então, como acontece este trabalho, esta profissão? O trabalho implicado nesta profissão não dá trégua a nenhu¬ma ação; toda ação é “oferecida-para” (toda ação verdadeira). Deus, apressa¬te a cumprir a promessa que fizeste dando-me a vocação. Este “apressa-te” será repetido dez anos, vinte anos, cin¬qüenta anos, setenta anos, cem anos se Deus lhe deixar, e no final todo o que tiver permanecido fiel no caminho ex¬perimentará a promessa, não obstante todas as tribulações da carne, que caso contrário permanecem nele como pre¬tensão totalmente mentirosa – não como no outro caminho, porque no ou¬tro caminho a pretensão da posse é uma constante material, é lei e conteúdo material da própria vocação.
Sexto. Há uma diferença significativa entre o Antigo e o Novo Testamento. No Antigo Testamento, o profeta podia estar ainda com dúvidas em responder a Deus, no sentido não de uma dúvida que acompanhe o dinamismo da adesão (esta todos nós temos), mas, inicialmente, de uma recusa da vocação: “Não sou capaz, quem sou eu? Mas eu cometi...”. Não há sinal de todas estas coisas, de todas estas objeções, no “sim” que Si¬mão diz a Jesus no capítulo 21 de João; e ele bem podia dizer-lhe estas obje¬ções: não há nem sinal delas. “Tu me amas?”. “Sim. Sim, o sabes”. No Novo Testamento O profeta diz “sim” a um acontecimento presente. Assim como Cristo não esteve incerto entre o sim e o não: a sua vida foi o sim ao Pai (2 Cor 1, 19ss).
É como Se no Antigo Testamento o homem fosse obrigado a servir a Deus, a servir Iahweh. No Novo Testamento, o homem ama uma Presença. “Simão, tu me amas?”. “Sim”. E os segundos que passaram entre a pergunta de Jesus e o “sim” de Simão não eram uma dúvida ou uma incerteza: era o tempo necessário para atravessar todas as re¬cordações, anular todas as recordações para dizer “sim”, que era a fórmula verdadeira do seu coração.
A escolha da virgindade é o chamado a dizer “sim” ultimamente e independentemente até dos próprios erros. A escolha da virgindade é o chamado a dizer “sim”: em última instância, este “sim” é independente até dos próprios erros, como o sim de Simão, que não lembraremos nunca suficientemente; todos os dias devemos imaginar diante de nós aquela cena: acontece em nós!
Pode-se viver esta inelutabilidade que a escolha da virgindade implica, pode-se viver esta inelutabilidade do “sim” com esquecimento, com reservas, com reticência, até com ceticismo, condenando-nos assim à eliminação da alegria. Ou então pode-se viver, mesmo que com um ritmo senoidal – pra cima e pra baixo, para cima e para baixo –, mas com a intensidade de memória, com tensão retomada, assegurando assim ao relacionamento que se estabelece com a realidade toda(com seu pai, sua mãe, os seus irmãos, os seus amigos, a sua antiga amiga, o seu antigo amigo), assegurando ao relacionamento que se estabelece com a realidade toda que faça ser a realidade colaboradora da própria alegria, obrigando a realidade mesma a colaborar com a própria alegria. A realidade se torna toda a colaboração à própria alegria. Até o mal se torna colaboração à própria alegria: ”omnia cooperantur in bonum”, tudo coopera para o bem. E é Santo Agostinho que acrescenta isto: ”etiam mala”; até o nosso mal é obrigado a se tornar colaborador da nossa alegria. É nesta alegria que se põe em ação, que se realiza plenamente a fórmula de criação, a glória do Pai. A fórmula da criação ”omnis creatura bona”, toda criatura é fonte de alegria. Até a morte: cupio dissolvi, desejo de morrer e estar com Cristo, diz São Paulo, porque na realidade a morte assim é destruída. A virgindade é contra a morte. A morte é destruída e Cristo reina totalmente. Christe cunctorum dominator alme” .
Eliot, no drama A reunião de família (quem me deu este livro foi padre Giorgio), diz: “Em um mundo de fugitivos [todos de fato fogem diante da inevitabilidade de estabelecer um sentido para a vida, qual seja o sentido da vida, aquilo pelo qual em última instância fazemos tudo], a pessoa que toma a direção oposta parece estar fugindo”. Este é o virgem no mundo de hoje: aquele que se interessa pela natureza das coisas e pelo destino das coisas, pelo homem, pela alegria do homem e pela glória da verdade que é Cristo; dele não escapa, portanto, a aguda admiração pelas florzinhas do campo, pela folha da árvore, pelas folhas pontudas dos pinheiros que existem sobre a terra (“Quem saberá, mamãe, como Deus faz para conhecer todo o número de todas as folhinhas dos pinheiros que existem sobre a terra?” – era uma pergunta justa, feita por mim a minha mãe quando eu tinha cinco anos). De tudo se interessa o virgem, de tudo9, não há nada que não o toque, não há nada que escape da sua observação, e quanto mais cresce mais se torna criança na observação de tudo. A criança, na sua curiosidade, não deixa um só espaço, sem que o tente entender, de todos os aspectos da coisa que tem nas mãos, mesmo que seja pequena.
“Em um mundo de fugitivos, a pessoa que toma a direção oposta parece estar fugindo”. A nossa renúncia não é uma renúncia ao mundo: é o início de um caminho para a posse do mundo inteiro, para que a nossa vida seja protagonista do advento do reino de Cristo.
Quero ler, para concluir, a carta antes citada, que vocês vão ver no próximo número da Litterae entre as cartas dos leitores (a primeira). O diretor de Litterae a intitulou “O rosto bom do Mistério”: “Caro padre Giussani”... eu não conhecia este rapaz, nem ele me conhecia diretamente. Pensem na pessoa por meio da qual ele fez o encontro, pois de um modo ou de outro – não sei se era casada ou não casada –, de um modo ou de outro era alguém que vivia a virgindade diante dos olhos deste rapaz que está morrendo; dois dias depois de ter-me escrito esta carta, morreu. Tinha AIDS. “Caro padre Giussani, escrevo-lhe chamando-o 'caro', ainda que não o conheça, nunca o tenha visto, nem nunca o tenha ouvido falar. Ou melhor, para dizer a verdade posso dizer que o conheço enquanto, se entendi alguma coisa de O senso religioso e daquilo que Ziba me diz, conheço-o por fé e, acrescento eu, agora graças à fé. Escrevo-lhe somente para dizer-lhe obrigado; obrigado pelo fato de ter dado um sentido a esta minha vida árida. Sou um antigo colega de colegial de Ziba, com quem sempre tive uma relação de amizade, pois, mesmo não compartilhando da sua posição, sempre me tocou a sua humanidade e a sua disponibilidade não interesseira [que é o único modo como podemos gritar a um outro e a todo o mundo: “Cristo é verdadeiro”]. Penso ter chegado ao fim da linha desta vida atribulada levado por aquele trem que se chama AIDS e que não dá trégua a ninguém. Agora dizer isto não me dá mais medo. Ziba me dizia sempre que o importante na vida é ter um interesse verdadeiro e segui-lo. Este interesse eu persegui muitas vezes, mas nunca era o verdadeiro. Agora vi o interesse verdadeiro, encontrei-o e começo a conhecê-lo e a chamá-lo pelo nome: chama-se Cristo. Não sei nem o que quer dizer e como posso dizer estas coisas, mas quando vejo o rosto do meu amigo ou leio O senso religioso, que está me acompanhando, e penso no senhor ou nas coisas que Ziba me conta do senhor, tudo me parece mais claro, tudo, até o meu mal e a minha dor. A minha vida, que já se tornou monótona e estéril, que se tornou uma espécie de pedra lisa onde tudo escorre como a água, tem um sobressalto de sentido e significado que varre os pensamentos ruins e as dores, aliás, abraça-os e os torna verdadeiros, tornando o meu corpo cheio de larvas e apodrecido, sinal da Sua presença. Obrigado, padre Giussani, obrigado porque me comunicou esta fé ou, como o senhor o chama, este acontecimento. Agora me sinto em paz, livre e em paz. Quando Ziba rezava o Angelus na minha frente, eu blasfemava na sua cara, odiava-o e lhe dizia que era um covarde, porque a única coisa que sabia fazer era dizer aquelas rápidas orações na minha frente. Agora, quando balbuciando tendo rezar o Angelus com ele, compreendo que o covarde era eu, porque não via nem a um palmo do meu nariz a verdade que estava na minha frente. Obrigado, padre Giussani, é a única coisa que um homem como eu pode lhe dizer. Obrigado, porque, em lágrimas, posso dizer que morrer assim agora tem um sentido, não porque seja mais bonito – tenho um grande medo de morrer –, mas porque agora sei que há alguém que me quer bem e que talvez até eu possa me salvar e que eu também posso rezar para que os colegas de quarto encontrem e vejam como eu vi e encontrei. Assim me sinto útil, pense, somente usando a voz me sinto útil; com a única coisa que ainda consigo usar bem eu posso ser útil; eu, que joguei fora a vida, posso fazer o bem somente rezando o Angelus. É impressionante, mas ainda que fosse uma ilusão esta coisa é demasiado humana e razoável, como o senhor diz em O senso religioso, para não ser verdadeira. Ziba colou sobre a minha cama a frase de Santo Tomás: ‘A vida do homem consiste no afeto que principalmente o sustenta e no qual encontra a sua maior satisfação’. Penso que a minha maior satisfação seja a de tê-lo conhecido [eu nunca o vi!], escrevendo-lhe esta carta, mas a satisfação ainda maior é que na misericórdia de Deus, se Ele quiser, conhecerei o senhor lá onde tudo será novo, bom e verdadeiro. Novo, bom e verdadeiro como a amizade que o senhor introduziu na vida de muitas pessoas e da qual posso dizer 'eu também estava lá', eu também nesta vida suja vi e participei deste acontecimento novo, bom e verdadeiro. Reze por mim; eu continuarei a sentir-me útil durante o tempo que me resta rezando pelo senhor e pelo Movimento. Um abraço. Andrea, de Milão”.
(traduzido por Durval Cordas)