Indomável vontade de tornar o mundo mais humano

Palavra entre nós
Luigi Giussani

Pontos essenciais para a formação de uma personalidade cristã

Propomos este trecho do livro de Luigi Giussani Em busca do rosto do homem (Companhia Ilimitada, 1996, pp. 155-166), pois descreve perfeitamente as características de uma vida cristã madura e suas possíveis conseqüências para a vida do mundo


Premissa
Testemunhar a fé é a tarefa da nossa vida. Pois o cristão tem uma tarefa específica na vida, que não é o exercício de uma determinada profissão, mas sim a fé: testemunhar a fé e fazê-lo dentro de seu próprio estado de vida.
Existe a família, existe a profissão, mas "a" tarefa é testemunhar a fé. Para isso é que fomos escolhidos.
João Batista, em sua obra de profeta, proclamou que a salvação já estava presente e assim mostrou-a aos homens: podemos comparar a sua atitude com a que nos é exigida em nossa tarefa de cristãos.
Deste modo é que expressamos a nossa personalidade, não de padres, nem de freiras, não de operários ou de profissionais, ou de pais de família, mas de cristãos, qualquer que seja a atividade com a qual nos ocupamos: afirmando que a salvação já está presente e mostrando-a, testemunhando-a a todos.
Então, parece-me que os pontos essenciais do tipo de experiência cristã que nos caracteriza poderiam ser os seguintes:

1. Cristo é a salvação presente na história e na existência
Uma fé sem a vida resulta inútil e se perde. Assim como uma vida sem fé é uma vida árida e sem finalidade, sem objetivo total. E a fé é reconhecer que Jesus Cristo é a salvação presente na história e na existência. Presente como o são a mulher ou o marido, a mãe ou o pai, os amigos, os colegas de trabalho e os acontecimentos de que falam os jornais mesmo que nenhum jornal fale dessa Presença.
A salvação não diz respeito apenas ao além, mas ao homem todo, do aquém e do além, na terra e no céu. Tanto mais porque o céu significa a verdade da revelação tornada manifesta. E a verdade da terra é Cristo, como diz São Paulo na Carta aos Colossenses: dado que nEle "tudo tem consistência".
Cristo é o significado exaustivo, por exemplo, do céu límpido e ventoso desta noite, da minha pessoa, de nossas pessoas, do mundo inteiro. Afirmar que Cristo é a salvação significa delinear um caminho no qual tudo deve se realizar e cumprir.
O tempo nos foi dado para que amadureça essa fé, para amadureça essa consciência e para que amadureça o reconhecimento da sua Presença.
Cristo na história é como o sol no dia que começa, é como o alvorecer. Um homem que jamais tivesse visto o sol, tendo vivido sempre na noite, ficaria cheio de estupor ao ver surgir a aurora. As coisas começariam a adquirir sua forma, ainda que de modo orvalhado e ainda pouco claro. E um homem como esse, mesmo se não pode imaginar o sol no esplendor do meio-dia, começa, todavia, a intuir que algo de novo está acontecendo, que a aurora é um início: o início do dia.
Para o cristão, a terra, a existência, a história são como o início, a aurora daquele dia pleno ao qual Deus nos destinou.
Na experiência cristã da noite, na qual os homens se encontram mergulhados e conhecem as coisas como que às apalpadelas, tem início algo pelo qual tudo começa a ter um significado. E a prova mais evidente é que isso acontece também para as coisas mais banais e quotidianas. Assim, até mesmo a "rotina" adquire uma dimensão de grandeza e letícia.
Isso é resumido pelo gesto cristão que na linguagem da Igreja se chama oferta. Na definitividade desse gesto, já não existem mais coisas grandes ou pequenas, mas tudo tende a converter-se na imensidão do relacionamento com Cristo. Verificar que isto não são apenas palavras, mas experiência de vida, significa começar a compreender em que coisa consiste a ressurreição, o mundo novo que já teve início.
Isto não quer dizer que as fraquezas e o pecado desapareçam, mas sim que se elimina o desespero e que o homem pode caminhar em meio a todos os seus males superando-os continuamente.
Quando os discípulos foram até Cristo e perguntaram: "És tu o Messias ou devemos esperar por outro?", Ele respondeu com a profecia de Isaías: "Os cegos vêem, os surdos ouvem". Era uma mensagem para ser compreendida pelos humildes de coração, e não feita para os espertos, para os inteligentes, apesar de ser uma mensagem aberta a todos. Tinha começado o Ano da Graça do Senhor: a Sua mensagem era uma esperança, uma possibilidade de festividade dentro de toda a vida terrena.
Assim, o primeiro ponto que dá o tom fundamental a uma personalidade cristã é este: a consciência viva de que a salvação, a libertação – palavras que se equivalem – têm uma resposta numa realidade já presente na vida do homem: Cristo.

O oposto a este primeiro ponto é procurar a salvação, isto é, o significado do próprio agir e do agir dos outros, o significado do tempo e do trabalho, firmando-a sobre algo feito pelas próprias mãos do homem. Isso acontece em nossa vida pessoal, por exemplo, quando nos lamentamos de que os nossos sonhos, as nossas pretensões não se realizam. Decepcionamo-nos porque colocamos a esperança somente nas forças do homem. Durante o nazismo, por exemplo, muitos realmente estavam apegados a Hitler como se poderia estar apegado a Deus. Poder-se-ia dizer que o adoravam. O mesmo acontece aos que puseram, ou põem a sua salvação em Lenin ou em qualquer outro líder. O líder é, de fato, a encarnação da ideologia como proclamação de uma esperança colocada na obra das mãos do homem.
Esta é a alternativa ao cristianismo e é a posição do "mundo". Não é a posição do cristão, porque este, por natureza, vive em polêmica com as esperanças "mundanas".

2. A realidade de Cristo encontra-se na Igreja
Esta presença, que é a realidade de Cristo, coloca-se, "está dentro" da unidade dos que crêem, portanto, dentro da Igreja. Dentro da Igreja assim como Cristo a fundou: com a autoridade, os bispos e o gesto misterioso do sacramento, gesto esse que envolve a vida inteira, pois o sacramento é o lugar formativo da vida inteira.
Colocar, então, a própria esperança, a própria salvação em Cristo implica em julgar a própria esperança na comunidade cristã: no pedaço de Igreja que surge dentro do ambiente em que vivemos, talvez pequeno e mesquinho, pequeno e cheio de defeitos, posto que é feito de gente como nós, porém – se se mantém fiel à autoridade constituída – sempre função da Igreja como um todo e sinal do caminho.
Por isso, exteriormente, o método da fé é suscitar e viver uma comunidade, e esta é um conjunto de pessoas que reconhecem Cristo como salvação e, portanto, são imanentes a toda a Igreja guiada pela Autoridade. Cristo como salvação: não da alma, mas da vida presente e futura, como caminho e como objetivo: como destino.

O oposto a este segundo ponto, essencial para uma personalidade cristã, seria reduzir o relacionamento com Cristo ao relacionamento com a imagem que dEle fazemos: um relacionamento individualista com uma imagem abstrata cuja ligação concreta seriam unicamente as palavras do evangelho segundo a interpretação de cada um, ou segundo a interpretação escolhida entre os vários métodos dos exegetas.
Ao contrário, a presença de Cristo manifesta-se através da experiência da Igreja dentro da comunidade à qual pertencemos, cujo valor, portanto, consiste em ligar-nos e abrir-nos a toda a Igreja. É a experiência de viver a Igreja no lugar em que nos encontramos: seja a casa, a paróquia, a universidade, a fábrica, o bairro ou o escritório.

3. A consciência da fé como fruto de um encontro
A consciência existencial do que é a fé, e, portanto, do que é Cristo; a descoberta viva do valor de nossa unidade, de nossa comunhão, ou seja, do que é a Igreja, não são fruto de um raciocínio e nem mesmo de um estudo. São, sim, fruto de um encontro.
Encontro significa o acontecer do relacionamento com uma pessoa ou com uma realidade comunitária, para nós tão ricas de autenticidade, que nos sentimos atingidos como que por uma luz e atraídos a uma vida diferente e mais verdadeira.
Nesse encontro, o valor de toda a fé e da realidade histórica da Igreja começam a aparecer de maneira concreta, não abstrata ou teórica, de maneira real, a tal ponto que provoca a nossa pessoa a dar uma resposta total. Porque quando a pessoa é realmente provocada, sente a totalidade de sua vida posta em jogo.
Se não for assim, se não se tratar da totalidade, não se trata ainda da descoberta da fé, mas simplesmente de um conhecimento e de uma prática de formas religiosas.
Pode-se dizer, paradoxalmente, que o cristianismo não é uma religião, mas uma vida.

O oposto a esse fator, que caracteriza a formação de uma personalidade cristã, é identificar os próprios relacionamentos com Cristo e com a Igreja em alguns gestos preestabelecidos, e não em uma adesão global. Como se Cristo e a Igreja fossem estranhos a certos interesses e exigências da vida, ao passo que, na realidade, quando o meu eu é atingido e envolvido, sou influenciado e determinado em todas as coisas que faço.
Isso é o que chamamos de inteireza e integridade, enquanto, opostamente, a parcialidade vive um ritualismo ou um excesso de burocracia administrativa e associativa.
Cristo é, de fato, o tudo da minha pessoa e a experiência da Igreja é a experiência do meu sujeito por inteiro. Cristo e a Igreja são a salvação para mim, e eu sou sempre o mesmo que come, bebe, vigia e dorme, vive e morre, como diz São Paulo; que estuda, trabalha e faz todo o resto. Cristo e a Igreja são a inspiração profunda que incide até na estrutura das minhas ações e em todas as coisas que faço. Por isso, o encontro é um "evento" que tende a influir de maneira nova em todos os relacionamentos, com as coisas e com as pessoas, e mesmo na maneira de olhar para os próprios pecados.

4. A construtividade como afirmação de um "Outro"
Essa inspiração profunda tende a criar um conjunto diferente de relações humanas com todas as pessoas, mas, antes de tudo, com aquelas que reconhecem tal inspiração, isto é, com as pessoas da comunidade cristã.
A comunidade, então, dentro das características do ambiente em que é colocada, torna-se o lugar de uma humanidade diferente, mais humana, cuja regra fundamental é a caridade.
Caridade significa que, nos relacionamentos, a dinâmica tende a afirmar o outro e não a si próprio. Pois afirmar o outro é crescer. E, na prática, a caridade se desenvolve como atenção à pessoa do outro, como intenção de adequar-se à sua situação, para tomar sobre os próprios ombros, junto com ele, as suas exigências e necessidades.
Isso faz com que a comunidade que surge seja uma fonte de iniciativas, de iniciativas sem limite. Estas produzem um pedaço de sociedade humanamente mais desejável, no qual, por exemplo, o nascimento do filho de uma pessoa é, sinceramente, motivo de alegria para todos, no qual o casamento de duas pessoas da comunidade é igualmente um motivo de festa para os outros. Ou, então, onde os doentes são socorridos, ou o despejo de uma família cai sobre os ombros de toda uma comunidade, nos limites do possível e da liberdade de cada um. Não estou apenas falando de um ideal, mas de coisas que, na comunidade cristã, acontecem.
O mundo, a sociedade mudam por meio de realidades humanas já mudadas. É preciso lembrar, no entanto, que uma mudança realmente nova não pode vir do próprio homem, mas somente de um “Outro”, radicalmente diferente. Esta é a Graça da Presença de Cristo reconhecida e amada no mistério da sua Igreja, que, cotidianamente, toma forma na comunidade eclesial vivida no próprio ambiente.

O oposto deste quarto ponto é o moralismo.
É pensar que se possa ser justos aplicando leis de comportamento, fazendo o bem segundo o próprio instinto ou a própria concepção, passando por cima dos que nos estão mais próximos.
O próximo é, em primeiro lugar, aquele que Cristo colocou ao nosso lado. Não existe próximo maior do que aqueles que, como nós, reconhecem Cristo como salvação: ou seja, os nossos irmãos na comunidade.
Através deles, através da experiência humana da comunidade, tal como se desenvolve, a pessoa torna-se capaz de converter-se em alguém mais humano, mais justo, mais cheio de iniciativas também para com aqueles que estão fora da comunidade, para com toda a sociedade, na qual os pobres exigem de modo preferencial a nossa dedicação. É como uma pedra que cai em um lago e produz círculos concêntricos que vão se alargando e se multiplicando sempre mais. Porém, não se pode evitar o ponto de partida. E esse ponto de partida são aqueles que Cristo coloca ao nosso lado, próximos de nós: os nossos irmãos na fé.
Na atitude moralista, o ponto de partida é a opinião ou o projeto da própria consciência.

5. A comunidade, lugar da fé dentro do mundo
Como já disse, a comunidade cristã, que é o lugar da fé, está inserida no corpo da sociedade: está no mundo, é uma parte desta sociedade e deste mundo, e vive toda a sua problemática.
E pode fazê-lo diretamente, intervindo unida, compacta, em certos problemas, ou amadurecendo seus membros para que, responsavelmente, intervenham pessoalmente.
Desse modo, a marca de uma comunidade cristã viva é que, tendo consciência da sua fé em Cristo, e a consciência de seu pertencer à Igreja, ela enfrenta todos os problemas da sociedade, diretamente ou através do empenho de cada um de seus membros.
Neste empenho, é preciso assinalar dois aspectos fundamentais:
O primeiro é que a solução de um problema é falsa, é ilusória, se não respeita os valores da comunidade eclesial, os valores dos quais ela vive: a concepção de homem que a Igreja tem, o sentido da história que a Igreja propõe.
O segundo é que a consciência de pertencer à comunidade, a consciência da nossa unidade, da nossa comunhão é um fator determinante da própria consciência com a qual o cristão enfrenta, mesmo individualmente, os problemas grandes ou pequenos da sociedade. A comunidade é um ponto de referência ideal, que ilumina a consciência do cristão na dedicação com a qual ele enfrenta os problemas que se lhe apresentam, ou na maneira como compartilha as tentativas dos outros homens de boa vontade.

O oposto deste quinto ponto é dúplice.
De um lado, pode-se conceber a vida cristã como retraída e fechada sobre si mesma, sem nenhuma incidência nos problemas sociais, isto é, sem referência ao contexto no qual se vive.
De outro lado, pode-se reduzir a influência da fé e da Igreja sobre a própria ação sócio-política a um impulso extrínseco, a uma simples inspiração, como se a experiência eclesial levasse o homem a interessar-se pelos problemas sociais, inculcando-lhe um impulso ético em direção aos mesmos, mas sem poder influir na maneira de enfrentar os próprios problemas.
Hoje, isto é muito importante. Pode-se dizer, por exemplo: "o Evangelho me leva ao interesse pelos pobres", e isto é certo. Mas se pararmos por aqui, o Evangelho tende a ser somente um impulso ético, moral. Pelo contrário, o Evangelho tem algo a dizer também sobre o modo, sobre a estrutura de juízo e de comportamento com os quais uma pessoa enfrenta o problema da pobreza.
Houve em certa cidade uma conferência com o seguinte tema: "O cristão e o marxista". Quem é o verdadeiro cristão? Alguém que quer a justiça para os pobres. Quem é o marxista? Alguém que quer a justiça para os pobres. Portanto, o cristão de hoje deve ser marxista. Tal foi o esquema desenvolvido, aliás, como comumente se vê nestes últimos anos. Uma velhinha que assistia à conferência levantou a mão e timidamente perguntou: "Mas, então, qual é a diferença?". O conferencista, após uns instantes de perplexidade, respondeu: "O cristão vê Cristo no pobre e o marxista não". Levantou-se então um amigo que estava no plenário e disse: "Então eu poderia dizer que o cristão é um visionário".
Deveríamos refletir muito sobre esse episódio porque a resposta é significativa. Se Cristo não modifica o modo como enfrentamos os problemas humanos, Cristo é uma fantasia. Por isso, o dualismo, que divide o homem em religioso ou cristão, de um lado, e em civil ou político, de outro, é, a meu ver, um dos maiores erros da atualidade. Muitos batizados vivem essa posição dualista, pela qual o cristão é "cristão" em determinados momentos, para determinadas atividades, fundamentalmente religiosas, mas sua fé permanece o resto do tempo, na melhor das hipóteses, como um vago impulso ético. Nas outras atividades, o cristão é "um homem igual aos outros".
Pelo contrário, a novidade do mundo que é a fé, alimentada por uma autêntica experiência de vida comunitária, preenche a vida inteira, cria um sujeito diferente, uma "nova criatura". E a globalidade da atividade desse homem, o seu juízo sobre as coisas, a sua visão do homem e da história, os seus relacionamentos e o seu comportamento não podem deixar de ser determinados e qualificados por esta fé.
A fé preenche a vida inteira e é uma proposta para a vida de cada dia.

Conclusão
Creio que estes cinco pontos, juntamente com os seus opostos, possam ser objeto de trabalho para a descoberta de uma vida cristã viva e incidente, capaz de assumir, por um lado, a nossa condição de homens pecadores, e, por outro, a de filhos do nosso tempo.
Para uma vida nova é necessário somente graça e pobreza de espírito. Ou seja, é preciso reconhecer a Presença que está no mundo.
Na verdade, os santos são aqueles que reconhecem o plano de Deus, ou seja, a presença de Cristo, e através do seguimento dessa presença procuram cooperar para o bem da humanidade segundo o seu autêntico e profundo destino. Enquanto todas as ideologias constroem-se sobre o escândalo e a violência, a novidade é o milagre pacífico da vida de cada pessoa que arrisca tudo no interior de uma vida eclesial.
Há mil anos, o homem viajava no dorso de mulas e podia ser mais humano e feliz que o homem de hoje que rasga os céus a bordo de um jato. O "progresso" é desejável, mas o bem do homem não se identifica necessariamente com o desenvolvimento da civilização técnica, a qual pode se apresentar até mesmo contraproducente como civilização do humano. E, de fato, ela construiu uma grande quantidade de meios para alienar o homem dentro do poder.
O principal problema é a humanização do homem, a verdade do sujeito. A tarefa da comunidade cristã para colaborar neste sentido consiste no amadurecimento da sua fé. Esse é o melhor instrumento para criar sujeitos que utilizem a civilização técnica "para" o homem. Ao dizer "venha a nós o Teu Reino", nós pedimos a salvação da totalidade do fato humano no mundo.
Assim é o ideal, que é o contrário do sonho ou da utopia, imagens construídas pelo homem. O ideal acaba por modificar, muito ou pouco, cada passo do caminhar humano. Por isso, o ideal é o que existe de mais concreto.
Tal ideal encontra-se na fé, que é toda a nossa vida.