O contragolpe do Ser...

CL - La Thuile
Julián Carrón

Anotações da síntese, ao final da Assembleia internacional dos responsáveis. La Thuile, 23 de agosto.

“Quando nos encontramos juntos, por que o fazemos? Para arrancar os amigos e, se fosse possível, o mundo todo, do nada em que cada homem se encontra metido. Nossa relação é ‘vocacional’. Relação vocacional é também isto: que quando encontramos alguém, pode ser a mãe – ou melhor, antes de tudo a mãe –, uma mulher ou um homem, um colega de infância ou um amigo mais recente, é normal que sintamos uma impressão profunda, somos arrancados da nossa aparente nulidade, fraqueza, maldade ou confusão, e repentinamente convidados para as núpcias de um príncipe. Maria é o convite do príncipe! 1”.
Somos chamados a viver a nossa vida e a nossa fé num contexto histórico especial, no qual está em jogo o eu, a pessoa: não um aspecto da vida, não um aspecto do eu, mas a minha, a tua pessoa, o eu como um todo. E por isso não é exagerado dizer que a luta é contra o “nada”, no sentido real do termo, isto é, contra a destruição do nosso eu, a perda do eu. Um eu que é tão “pequeno”, como o descreve Leopardi 2: “Quando ele [o homem], considerando a pluralidade dos mundos, sente que é a infinitésima parte de um globo, que, por sua vez, é a mínima parte de um dos infinitos sistemas que compõem o mundo, essa consideração o leva a assustar-se com a sua pequenez, e sentindo-a profundamente e observando-a intensamente, quase que se confunde com o nada”.
É o que somos: algo que quase se confunde com o nada. E ao sentir profundamente isso – frente a essa pequenez, a esse “quase nada”, ressaltado também quando recitamos os salmos (“O que é o homem, para te recordes dele?”) – não podemos deixar de nos comovermos.
Mas se somos esse “quase nada”, se somos pecadores, seres necessitados, então se entende bem qual é o drama do nosso eu. Não se trata de organizar uma pequena parte de nós, de mudar algum detalhe na pequena sala da nossa vida, não é uma questão de decoração: o que está em jogo é nosso eu como um todo. Porque nós somos gente com as coisas em desordem, mas gente que foi alcançada pelo Ser. Gente em desordem: somos iguais a todos, pobres como todos, pecadores como todos! Por isso, como responsáveis, não estamos aqui para melhorar o discurso [...], mas porque somos necessitados, “gente em desordem”; a necessidade primeira é a nossa mesmo.
Dom Giussani dizia: “Os cristãos (...) se iludem de serem bons porque compreenderam uma vez, e fazem referência como se pudessem ser salvos com o discurso e a coerência. Prefiro muitas pessoas que, embora não sendo cristãs, têm consciência do mal e da própria incapacidade de seguir o bem que pressentem. Por isso, prefiro certos temperamentos que se agitam no mundo e esperam uma paz que não vem, do que aqueles católicos que constroem para si mesmos um sistema em que possam repousar, na suposição da própria fé e da própria caridade. Neles, Cristo vive mumificado, e ainda acham que o conhecem 3”. Prefiro os pecadores! (...) Como diz Jesus: “Depois disso, ele saiu e viu um publicano de nome Levi, sentado na banca de impostos, e lhe disse: Segue-me! Este, largando tudo, levantou-se e o seguiu. Depois, Levi lhe preparou um grande banquete em sua casa. Havia uma multidão de publicanos e outras pessoas que estavam à mesa com ele. Os fariseus e os seus escribas murmuravam e diziam aos discípulos: Por que comeis e bebeis com os publicanos e pecadores? Jesus respondeu: Não são os saudáveis que precisam de médico, mas os doentes; eu não vim para chamar os justos, e sim os pecadores à conversão 4”.
Só quem tem a consciência de “estar em desordem”, ser pecador, necessitado, como Mateus, entende o que significa ser olhado nos olhos e receber o convite: Segue-me! Podemos imaginar a comoção de Mateus, que Caravaggio captou muito bem e colocou para sempre diante dos nossos olhos (“Eu? Tem certeza de que sou eu?”, parece responder Mateus, com o gesto da mão). Mas Mateus possuía uma consciência muito forte do próprio eu, do próprio nada, do próprio ser pecador, diante daquele homem. Essa é a comoção do eu diante do Ser (algo que não se confunde com emoção sentimental!): é uma vibração do eu, tão pequeno, tão “quase nada”, tão necessitado, ao se encontrar com o Ser. Todas as outras comoções são mera imagem, sombra, da única e verdadeira comoção, que é essa do homem diante do Ser, no encontro com a presença terna e plena de misericórdia de Jesus. É a única e verdadeira comoção, a única que corresponde à necessidade humana, que fica para sempre, aconteça o que acontecer.
“É a simplicidade do coração que me fazia sentir e reconhecer o Cristo como excepcional”, testemunhou Dom Giussani diante de toda a Igreja 5. É preciso essa simplicidade frente à excepcionalidade de Cristo, quando do encontro com essa presença terna e misericordiosa.
Também Mateus podia dizer – usando a expressão de Dom Giussani – que recebera o convite de um príncipe. O banquete de Mateus era a celebração da comoção diante do Ser, enquanto os outros murmuravam: “Por que comeis e bebeis com os publicanos e pecadores?”.
O que aconteceu com Mateus ocorre também hoje. Um de vocês me dizia que quando foi convidado para vir a La Thuile, para este encontro, depois de um ano difícil, sentira esse gesto como o convite do príncipe. Mas em muitos percebemos também a sensação de serem “convidados do príncipe”! Talvez hoje, depois deste gesto em comum, todos possamos dizê-lo. Nós, como Mateus, somos convidados do príncipe, começamos a entrever o que quer dizer a vibração do Ser.
De fato, o que vimos e experimentamos nestes dias? Que o Ser, através de uma forma, a forma desta realidade que nos envolveu a todos, alcançou cada um de nós. Ao participarmos deste gesto, deste “turbilhão de caridade” – que tem uma forma precisa, concreta, histórica, feitas de rostos, de cantos, de testemunhos –, todos vimos acontecer, diante dos nossos olhos, a exaltação do nosso eu. Porque através desta forma, através deste gesto, foi o Ser quem nos alcançou.
Também nós devemos fazer – com o cego de nascença – a trajetória da fé. Se nós fazemos toda a trajetória da razão, da liberdade e da afeição, até chegar ao reconhecimento dAquele que está na origem do que aconteceu conosco (o Ser), permanecemos na aparência, numa emoção sentimental; isto é, não vivemos até o fim aquilo que aconteceu. “Como está claro no Evangelho de João – diz Dom Giussani –, Jesus não concebia a atração que exercia sobre os outros como uma referência última a si, mas ao Pai: a si para que Ele pudesse conduzir ao Pai, como conhecimento e como obediência 6”.
Por isso, antes da vocação de Mateus, depois da cura do paralítico, o Evangelho diz: “De repente, ele se levantou, colocou nos ombros a esteira sobre a qual estava deitado, e partiu para casa glorificando a Deus. Todos ficaram admirados e louvavam a Deus; cheios de temor, diziam: Hoje vimos coisas maravilhosas 7”. Mas na origem dessas coisas maravilhosas está Deus, o Pai. Por que pensam em Deus, se o que viram foi apenas um homem curado, e curado por um outro homem? Porque não podiam estar profundamente diante de um fato como esse sem pensar em Deus!
Se nós ficamos na aparência, perdemos o melhor: o melhor é que, através desta forma, deste nosso estar juntos aqui, é o Ser que nos alcança. Porque amanhã não estaremos mais aqui, depois de amanhã estaremos trabalhando, mais tarde talvez nem tenhamos trabalho ou estaremos doentes: mas ele está, ele que é a origem daquilo que vivemos aqui; amanhã, está; depois de amanhã, está; sem trabalho, ele está; doentes, ele está; quando chegar a morte, ele está!
Participando deste gesto, começamos a entender, a entrever, o conteúdo da carta que Dom Giussani nos escreveu, porque fizemos mais uma vez a experiência do Ser-Caridade, a experiência do Ser que, através de uma forma concreta, nos “agarra”, desperta em nós a atração para que todos permaneçamos juntos.
Não somos nós que geramos a unidade com o Ser; é Ele quem a gera: é a Sua presença, através de uma forma, que gera em nós essa unidade. “Ninguém – dizia ainda Dom Giussani na entrevista para Libero – se salva sozinho, pelos propósitos que faz, porque é um Outro que o salva, a ele e ao mundo; através de um coisa nova que plantou na história. O Ser! Tudo floresce a partir do fluxo do Ser! (...) Sem Cristo, o homem se sente perdido em si mesmo, inédito, incapaz de focalizar a realidade, incapaz também até de perceber com clareza qualquer beleza duradoura8”.
Podemos entrever o que aconteceu com Maria, porque nós também, como ela, ficamos comovidos. Esse é o método como Deus nos salva, como aconteceu primeiro com Maria: “comovida pelo Infinito”. Precisamos de pessoas, de amigos “comovidos”, que nos arranquem do nada. Por isso, a nossa relação é vocacional: nós somos amigos por isso.
“Como fazer – pergunta-se Dom Giussani – para comunicar aos outros? Com discursos? É impossível! O contágio só é possível pela doença grave da experiência que fazemos [é o contágio dessa doença, dessa comoção]. Você está em função do todo [podemos colaborar para o bem de todos, para o bem do mundo], através do contágio daquilo que você vive, da emoção que vive, da experiência que vive, do sentimento de si mesmo que você vive. [Algo bem diferente de um discurso correto e limpo!]. Uma pessoa serve aos outros na medida do sentimento que tem de si mesma9”; do contrário, não se comunica.
Mais recentemente, durante os Exercícios do Grupo Adulto, Dom Giussani interveio para responder a uma pergunta: “Você disse que não há vibração frente ao Ser, como podemos nos ajudar?”. E ele: “Comunicando-nos, só nos comunicando. E o comunicar-se não é apenas com a língua como instrumento da palavra, mas é antes de tudo o instrumento de uma presença que se comunica”, dessa emoção que a gente vive, desse sentimento que a gente vive. Não existe outro modo de comunicação, de comunicar a verdade, a não ser o testemunho, porque o evento cristão é um evento feito de palavras e de fatos, tudo junto.
Então, o verdadeiro amigo, o único que nos arranca do nada, é a testemunha: testemunha é aquele que me permite ser familiar do Ser, que me faz participar dessa Presença, da comoção dessa Presença, do evento dessa Presença na história.
O testemunho maior do Ser, de Cristo, é a unidade entre nós. O maior reflexo dessa presença de Cristo é a unidade: nada é mais impossível ao homem do que a unidade. É dela que devemos ser filhos, é a ela que devemos obediência. É preciso seguir essa unidade, como nos ensina Dom Giussani desde o início: “Eu pertencia, não a eles mas à unidade com eles”, com aqueles três do início. “Eu sou teu filho”, disse ontem a um de nós. “Eu sou filho dessa unidade, que o Pai gera diante de nós”. Seguir Dom Giussani é algo que faz um Outro: ele é gerador, é pai, porque gerado permanentemente por um Outro, porque segue aquele que gera o Outro, o Pai.
Podemos ser todos gente muito boa, mas sozinhos nos perdemos. Fora da comunhão, podemos ser “postos para fora” num minuto. Por isso, a questão é o apego à carne de uma unidade, a obediência à carne de uma unidade; do contrário, é o triunfo da própria interpretação.
A consistência da nossa vida não está na nossa força. Chega de dizer que não temos força, porque a força é a simplicidade! Como o cego de nascença: tinha mais força, mais inteligência, do que os fariseus que procuraram colocá-lo em dificuldade, porque teve a simplicidade de aprovar o que lhe tinha acontecido, de aderir a quem lhe havia dado de volta a vista. Essa é a nossa força: aceitar a mão do outro, aderir à mão que o outro estende para salvar a nossa vida.
E de novo em primeiro plano a importância de uma forma, do reconhecimento de uma forma: uma unidade que constantemente nos abre para o Ser. A caridade do Ser nos alcança através de uma forma, através da forma dessa unidade. Os que, nestes dias, obedeceram a essa forma, quem teve a simplicidade de seguir, experimentou a exaltação do próprio eu. E volta para casa diferente, participa mais do Ser, é mais ele próprio. Como escreve Montale, “o sinal estava correto; quem o viu não pode deixar de te encontrar”.
É o início de uma memória. Precisamos dEle, de reconhecê-lo todos os dias. Não podemos abrir mão dele, não podemos viver sem isso, não podemos levantar da cama, de manhã, por menos do que isso; não somente quando as coisas estão difíceis, mas também quando tudo brilha. Se Ele não está na vida, não há nada a fazer, mesmo que estejamos na Costa Esmeralda, nas Bahamas, ou no Caribe, porque a diferença é Ele, é a Sua presença. Se insistimos nas situações difíceis, é porque nas situações normais vivemos como se não precisássemos dEle.
Se o Ser é caridade, se está aqui, isso quer dizer que eu não estou sozinho com o meu nada, com a minha carência, com a minha fraqueza, com a minha incapacidade, com o meu pecado. Podemos então entrever o que Dom Giussani quis dizer com o termo “êxtase da esperança”. Nós todos podemos voltar para casa com esperança, porque vimos que o Ser se interessa por nós: a nossa vida importa ao Ser!
A memória não é uma lembrança, mas o reconhecimento presente do Ser que me alcança agora. Essa é a positividade, como lemos no folheto da Páscoa 2003: “Qualquer coisa que nos aconteça jamais teria uma resposta adequada se não fosse o Cristo: Ele marca a última vitória de Deus sobre a realidade humana; qualquer coisa que aconteça, é a ‘misericórdia’, que lê tudo o que é humano. A misericórdia: Deus realiza a vitória sobre o mal dentro da história como positividade, é isso que explica o que acontece”.
Sem o reconhecimento de Cristo em todos os instantes, não temos a explicação para o que acontece. Somos amigos por isso, para reconhecer isso: estamos unidos para nos ajudarmos mutuamente a reconhecer a explicação do que nos acontece, que não é algo abstrato, mas uma pessoa, Cristo. Por isso cresce a nossa afeição por Ele, por isso nos levantamos de manhã.
Tudo isso tem o seu reflexo em Maria. “Tu és a fonte vida da esperança”: é a positividade última que vence. Ela, alguém como nós, pôde dizer: “O Senhor olhou para o nada da sua serva”, o “quase nada” da sua serva. Essa é a positividade última que vence. Ela está diante de nós, e desafia o nosso ceticismo. Na dor, na situação difícil, na doença, temos Maria diante de nós.
Dizia Dom Giussani aos noviços: “Peço-lhes que sempre partam de Maria, dessa presença suprema na história do universo. Imaginem os dias de Nossa Senhora, os dias de Maria com esse Mistério, que ela sente, percebe, reconhece, que a abraça completamente, que está dentro dela. No tempo que passa, a multiplicação infindável do horizonte implicado nele, o que devia representar para Maria! Não só quando pensava nele, mas sempre, porque para uma mãe ter por perto, carregar o filho, é como amar a presença de todas as coisas, é amar a Presença! De fato – isso devemos descobrir, ajudar-nos uns aos outros a descobri-lo –, é um amor totalmente desconhecido dos outros, um amor pelo qual os outros foram feitos, como fomos feitos nós, um amor sem limite, como as anotações nos dizem a respeito da atitude do Pai em relação ao seu Filho Jesus. Temos a paciência do tempo, não uma paciência irritada ou escandalizada, porque as palavras não expressam imediatamente o seu significado, ou, como foi dito e citado, não nos permitem encantar-nos com o infinito. O tempo que passa nos leva a enamorar-nos do infinito em cada coisa finita que encontramos! Devemos pedir a Maria a graça de fazer parte da sua maternidade, porque para isso fomos feitos. Uma criança no coração de sua mãe. Que dominação! 10”.
Que Jesus domine, que seja o pensamento dominante do nosso coração! Podemos começar a jornada, toda manhã, com a oração do Angelus, deixar entrar no nosso nada essa dominação. Toda manhã acontece isso comigo, com você: no nosso nada, na nossa distração, no nosso mal, nos é dada a graça de Maria, nos é dada a graça, o anúncio, nos é comunicado o anúncio de que o Verbo se fez carne. E se estivermos atentos, nos comoveremos com isso. Essa é a razão de nos levantarmos todo dia: para que Cristo domine cada vez mais nossa vida, pela vida do mundo.

Notas:

[1] Mensagem de Luigi Giussani por ocasião da peregrinação a Loreto, dia 14 de junho de 2003, cf. Passos n. 41, julho/ 2003.
[2] Cf. Zibaldone 12, VIII, 1823.
[3] Entrevista ao jornal italiano Libero, de 22 de agosto de 2002; cf. Passos n. 33, outubro de 2002, p. 87.
[4] Lc 5,27-32.
[5] L. Giussani, encontro com o Papa na Praça de São Pedro, 30 de maio de 1998, cf. Litterae Communionis n. 63, maio-junho/1998, p. 7.
[6] L. Giussani, Livreto dos Exercícios da Fraternidade 1998, p. 30.
[7] Lc 5,25-26.
[8] Entrevista ao jornal Libero, op. cit.
[9] L. Giussani, Affezione e dimora, Bur 2001, p. 267.
[10] Cartaz de Páscoa de Comunhão e Libertação 2003.


(Texto publicado em Passos n. 43, setembro/2003)