O jorro da obediência

Palavra entre nós
Luigi Giussani

Notas de uma palestra de Luigi Giussani a um grupo de Memores Domini. Salsomaggiore (Itália), 21 de fevereiro de 1999


O que peço ao Senhor neste momento é que nos ajude, ou que me ajude a ajudá-los, a entender o significado mais verdadeiro do que estamos compartilhando nestes tempos. Por que temos sublinhado e sublinhamos certas coisas? Realmente, não é fácil aceitar com tranqüilidade – como um velho como eu aceita – a verdade das palavras que dizemos e que nos dissemos, especialmente nas duas últimas vezes1, mesmo que essa verdade seja inconfundível e irresistível.
“O homem novo.” O que se diz, o que se tenciona dizer, o que se pretende dizer com “o homem novo”? “O homem novo” poderia ter também como sinônimo “o homem verdadeiro”. Mas isto pode aparentemente diminuir a clareza da proposição. Por quê? Porque muitos podem se sentir “homens verdadeiros”, ao passo que, do ponto de vista do Senhor, podem ser objetivamente pouco “verdadeiros”. O homem novo, o homem verdadeiro – este é o ponto de vista particular que foi injetado em nós pelo Senhor – é o início da eternidade na experiência do homem comum neste mundo; é a experiência de um homem que cultiva o eterno, que percebe a aurora do eterno em si, que entende como na sua existência a verdade eterna ou a felicidade completa e eterna são tangíveis, são conteúdo real da experiência.
Por isso sublinhei muito a importância daquela magnífica poesia que é o hino Antes que nasça o dia2. “Antes que nasça o dia, vigiamos esperando”: há uma espera no homem, quanto mais ele é simples e transparente, há uma espera que supera qualquer meta a que se chegue, qualquer objeto do desejo que se alcance, qualquer companheiro alcançado, qualquer satisfação alcançada.
Pode até mesmo haver um pagão, um poeta pagão, o poeta mais pagão que a história literária já nos tenha dado a conhecer, que, a certa altura, tenha uma intuição que descreva geneticamente esta impressão que o homem tem, que o homem pode ter, do não-eterno: o não-eterno, o efêmero, o passageiro, como uma demonstração, por contrário, do eterno, do eterno para o homem, de uma verdade eterna para o homem, de uma felicidade eterna para o homem; pois pode ser traduzido também nestes termos o fato de que as coisas, todas as coisas, pessoas ou coisas, todas as coisas – momentos ou períodos ou a vida inteira – não são. “Não são”: não são suficientes para afirmar e para definir. “Medio de fonte leporum surgit amari aliquid quod in ipsis floribus angat3, diz Tito Lucrécio Caro, que é o mais obstinado materialista da antigüidade: bem no âmago da satisfação há uma fonte amarga que estrangula, sufoca, estrangula em meio ao prazer.
Seja como for, o eterno tem um início no tempo. O tempo do homem não é como o tempo da pega4 ladra ou do bichano, do gatinho: dentro dele há algo verdadeiro, que é verdadeiro, dentro dele está a verdade (caso contrário, nem poderia falar dela). Dentro dele está a verdade. É o eterno que tem início no tempo. Se o eterno é amor e felicidade, verdade e felicidade, o eterno está presente no tempo como verdade e como felicidade, como satisfação, como realização, como experiência de realização plena. O que Deus lhes pede, o que Jesus lhes pediu, por meio de nós, é uma diferença de vida. O Senhor pediu vocês e, portanto, pede-os, pois não pode vir ao mundo e à sua vida e cometer o erro (seria ir contra a natureza, para Ele) de pedi-los “momentaneamente”: só pelo eterno navega o Senhor, ou seja, o Deus feito homem, o homem que é Jesus Cristo.
Pensei, ruminando esta coisa, que, mesmo para quem não acredita em Deus, esta é uma plataforma perene da insuficiência da forma da nossa vida, da forma “terrena” da nossa vida.
Gostaria de tentar fazê-los entender o valor, o valor real da temática sobre o trabalho. Que havia antes da questão do trabalho? Que tema meditamos nos Exercícios antes do trabalho?
Falamos da memória, ou seja, de Cristo. De Cristo e depois do homem. E, falando-lhes do homem depois de ter falado de Jesus Cristo, repetimos que o homem é homem se imita a Cristo, como havíamos dito nos Exercícios da Fraternidade dois anos atrás e também no ano passado5: Deus é tudo em tudo: esta é a observação suprema que, mesmo quando não a desejamos, acompanha-nos todos os dias, todo o tempo, persegue-nos sem falhar um minuto; e, dizia-se depois, o homem é homem só na medida em que é memória de Cristo, “Cristo tudo em todos”. “Deus é tudo em tudo”, mas “Cristo é tudo em todos”, ou seja, Cristo – a sua concepção de Deus e do homem – deve ser imitado, isto é, deve refletir-se na consciência de todos: “Cristo tudo em todos”.
Na medida em que é consciente e sincera, esta tentativa de identificação ou este seguimento implica algo que parece carregar em si uma sugestão altamente anômala para as nossas experiências normais (tanto que o espírito devoto fica ali esperando, cheio de curiosidade e depois de desejo; mas o espírito – como dizer? – não reflexivo, que não liga para si mesmo, que nunca pensa em si mesmo, recusa as coisas com a mesma instintividade com que estas chegam ao alcance de suas mãos, recusa-as com a mesma instintividade): “Factus oboediens usque ad mortem6. São Paulo, falando de Jesus, usa essa expressão terrível, clara e terrível: terrível ao homem pequeno; mas para o homem que é como criança ou como adulto, com grande consciência de si, torna-se um alívio e uma fonte de paz, de equilíbrio e de paz. Jesus – vocês se lembram do trecho importante da carta aos Filipenses? –: “Feito obediente até a morte, e morte de cruz”. Feito obediente.
Sem mais demora, digo que o homem novo é o homem verdadeiro, e é o homem feliz, com a felicidade que é letícia, com a felicidade que pode ter, como tantas vezes experimentamos em nós e vemos nos outros, em tantos outros (tantos outros sem as pretensões que nós temos). O homem novo é o homem feliz, que tem essa satisfação – satisfeito –, uma satisfação que é cheia de gratidão (o homem intelectual como nós, que sabe bem disso; mas é mais maravilhosa a gratidão que tem a pessoa pacata, pacificada, sem demasiados impedimentos de palavras e de relacionamentos!).
O homem novo é o homem verdadeiro. E o homem novo (ou verdadeiro) tem como sua definição a obediência (não há afirmação mais ridícula do que esta no homem que acredita ter consistência em si mesmo, que tem uma qualquer consistência em si, ou um espaço que acolha essa presunção, essa posição presunçosa): a obediência como norma da vida, como dinâmica descritível da existência de um indivíduo. Pois Cristo é o homem: “Ecce homo”, “Eis o homem”. Pôncio Pilatos falou assim quando apresentou Cristo esbofeteado, com a coroa de espinhos e todo ensangüentado: “Eis o homem”. Mas aquele homem estava assim por obediência. E qualquer coisa que se possa dizer de Cristo, foi por obediência: “Eu faço sempre a vontade do meu Pai” 7.
A obediência é pensar, fazer todas as coisas tendo o motivo e o critério de um Outro ativo e determinante no presente, ou seja, de uma Presença; a obediência é realizar isto – experiencialmente, também de acordo com a posição que se assumiu ou que Deus faz assumir –, a obediência é postura, comportamento – comportamento e postura, pois tudo em nós se torna ponta aguda, imprevista (ou mesmo pontas agudas normais do dia) ou se torna fonte plácida, uma virtude espontânea; mas a coisa mais bonita são as duas coisas juntas, quando há uma simplicidade de crianças e um olhar e um comportamento de adultos. A imitação de Cristo parece-me conduzir a estes (como se chamam na montanha?) sulcos estreitos –. Seja como for, a obediência, para a modalidade humana nova, é a palavra que enche o coração. Um homem novo, uma vida nova, uma postura nova, tem como paradigma transparente uma modalidade nova no olhar para todas as coisas. Esta modalidade nova é que o olhar para as coisas aumenta, faz ser mais abundante uma esperança, a esperança que não pode manter-se se não é verdadeira, verdadeiramente entendida. Mas a esperança é todo o ventre do homem; o ventre do homem (para fazer uma comparação que pode parecer válida somente para a mulher) é a esperança.
A fé, a esperança e a caridade são três virtudes, nós as aprendemos como três virtudes, mas são um pequeno esboço no qual o ponto fundamental é a certeza, uma certeza. É como ter uma certeza em todos os campos, para todo o horizonte (incluindo também a fé, tem de se chegar até a fé; por isso os termos cristãos “isolam” essa fé como fonte de sabedoria).
A obediência é uma palavra que enche o coração da modalidade nova de uma esperança verdadeira: a esperança como certeza de que o homem tem um caminho; um caminho que é definido pela certeza da fé e que se documenta, sendo revigorado continuamente por aquilo que faz, com a caridade.
É justamente essa obediência que suscita esperança, é justamente essa obediência que estabelece o ventre materno para o homem novo e faz sentir, ver e sentir, faz viver, como em um crepúsculo da manhã ou como em uma alvorada, a realização do homem novo. Pois o homem que procura seguir a Jesus nunca está na posição em que Jesus está, nunca está sempre tendendo a segui-lo, mas na medida em que, mesmo assim, isto é feio de alguma forma, a pessoa se dá conta de que algo aconteceu! Por isso, o aspecto mais importante da vida de um homem deste tipo é a oração, é pedir a alguém. Pensem em Pedro ou em João e André, quando o seguiam pelas trilhas dos campos: seguiam-no sem perdê-lo de vista nenhuma vez, nenhum momento. Mas, a certa altura, o olhar de Jesus sobre eles, e o olhar deles sobre eles mesmos, não podia deixar de se dar conta de algo que neles estava mudando.
Quem está fora desse ventre materno da obediência está fora de qualquer giro de coisas. Mas, para saber quem está fora, digamos de que forma a obediência é fonte, nascente da certeza, da certeza que dá fé e caridade, e da certeza que se chama esperança, porque diz respeito ao futuro, diz respeito ao amanhã, a daqui uma hora. Obedecer significa – basta ler especialmente São João: o último discurso de Jesus8 ou o sexto e o sétimo capítulos (a primeira discussão pública de Jesus com todos os figurões do povo judeu de então) –, obedecer significa que, para chegar ao juízo e à decisão aos quais o homem é levado ou aos quais é solicitado, o homem segue alguém que é Outro em relação a si, e apóia toda a sua pessoa, identifica-a, como inteligência das coisas e como juízo sobre as coisas e como afetividade pelas coisas, com uma outra pessoa: encontram-se em uma outra pessoa, em um Outro, em uma outra Presença (em um Outro, enfim, na medida em que está acima e fora, mais dentro de mim do que eu mesmo) 9.
Se, ao contrário, não se está nessa posição, se a pessoa é determinada pelo que os outros dizem, se a nossa posição não é determinada por Cristo, pelo seguimento de Cristo, se é determinada por outra coisa, é uma posição de escravos (a carta aos Romanos de São Paulo e a carta aos Gálatas falam bem destas coisas10). A não-obediência é o prevalecimento de um abandono de Cristo, de uma “demissão” de Cristo: Cristo desaparece do nosso juízo e o homem se governa com uma medida própria, ou seja, o homem escolhe ele mesmo de quem depender (pois é evidente que a pessoa não se faz toda por si, por isso depende de algo). O homem se enrola em torno do seu não que pega a maçã; o homem se governa com esta medida. E a maçã de Eva, se é uma metáfora hiperbólica, toma depois nos homens toda a consciência de maneira precisa, com uma precisão que não sabemos ter nos nossos atos, públicos ou privados, mesmo quando feitos com atenção. É aquele não de Eva que se traduz – como diz Eliot – em “usura, luxúria e poder” 11, dos quais o que é mais sentido e, pode-se dizer, geral, é o poder, por causa de uma posse que parece mais adequada ao próprio desejo.
Por isso, a obediência é o critério de vida, o critério último de vida do homem novo: “Feito obediente até a morte” (mas agora faço apenas uma alusão, tenho de me resignar a apenas fazer uma alusão a isto, pois deverá evidentemente ser retomado por nós). A obediência é pensar, fazer todas as coisas tendo o motivo e o critério de Outro, de Outro em relação a nós, ou seja, de uma Presença. Ao passo que a desobediência, a não-obediência cede aos critérios do outro, de algo que é outro, a critérios e decisões de outros, mas é uma escravidão, pois cede a toda a violência que tem um certo tipo de relacionamento, que se esquece sempre de Deus – sempre!
Por isso eu dizia que a obediência é a palavra que enche o coração, por causa da modalidade nova de caminho que Deus previu para o homem: uma esperança verdadeira. E atrás desse realização do homem novo que deriva dessa esperança, atrás desse obediente, em uma longa fila, serão confirmados muitos outros na mesma esperança. Pois é de alguém assim que nasce um povo; e o povo é em primeiro lugar o filho, o filhinho, os dois filhinhos.

Ora, o problema é que o homem novo se afirma sobre um homem velho. O homem novo é como um enxerto em um tronco velho. Por isso, exige uma mudança; tudo em nós deveria levar-nos a essa mudança, mas depois da interrupção de Eva... (que não confiou na presença, mas naquilo que nunca estivera presente na sua experiência: ela não sabia o que era satã, a serpente. Assim, para ser mais livre, tornou-se escrava. O que não depende de Outro nos faz sempre escravos: para aquele que não depende de Cristo, da presença de Cristo, a escravidão é inevitável).
O homem novo, o homem obediente, afirmando-se sobre o homem velho, exige uma mudança, uma mudança que é como se se criasse uma criação nova, uma criação literalmente nova: é um outro. Quem sentiu na sua carne essa mudança diz que é como um ser novo (os Padres da Igreja o disseram com mais de uma expressão).
A passagem que essa mudança implica torna-se difícil, torna-se problema, torna-se caso – torna-se problema e torna-se obstáculo –, pelo fato de que a novidade se enxerta em algo que é velho. Por isso, deve ser uma criação nova, pois o fato de que uma criança renasça no coração de um velho, no coração do velho, significa que muita sujeira, uma grande cobertura deste velho deve desaparecer, deve ser eliminada: é o coração que volta a ser novamente criado.
Por isso, essa mudança começa sempre como um crepúsculo da manhã, como uma aurora da manhã, uma realidade na qual o homem, quanto mais caminha, ou seja, obedece, mais vence qualquer reticência e qualquer nuvem; dilata-se o sol da verdade, da beleza e do amor. Assim, a totalidade daquele homem é revestida; pois, se uma parte de mim mesmo pede o sol, quando o sol vem me ilumina por inteiro: além daquela parte, todas as partes de mim.
Esse “homem novo” é a palavra que exprime o verdadeiro acontecimento cristão. O acontecimento cristão é a entrada de um homem diferente na história, como seu protagonista último. Só que a muda lentamente: a passagem de um para outro, enxertando-se esta novidade no tronco velho, transmitindo-se para o tronco, acontece lentamente. Acontece lentamente. Por isso sempre fiz que cantassem esse hino belíssimo, Antes que nasça o dia: porque é a descrição física, realmente perfeita, de como acontece, em um homem que é chamado, essa mudança. E, passo a passo, essa mudança é como “coisas que não se vêem”: não se vêem pelos olhos, não se vêem como concepção, como conceito, nem se vêem como sentimento. Entende-se o que nos é dito; ou, melhor, entende-se quanto sacrifício implica quando o passo deve ser dado; podemos até não entendê-lo antes, não sabê-lo antes, mas o passo tem de ser dado. O passo desta mudança é “lacerante”, arranca-nos alguma coisa – “Para afirmar essa presença, tenho de...” –: o homem velho, sentindo surgir em si um chamado de atenção novo, precisa, para realizá-lo, aceitar que algo lhe seja arrancado (como em qualquer tipo de operação: até o corte é arrancar algo).

Nesta altura, portanto, espero que alguém, se cobrir de atenção as frases que digo, uma após outra, possa entender: “É neste sentido que você nos falou de trabalho, de homem e mulher, ou de justiça!”. Sim, é neste sentido! Por isso falei desses três pontos como documentos de uma mudança. Essas três coisas, cada uma dessas três coisas nas quais se documenta a mudança implica todos os outros aspectos da vida, pois é uma mudança do eu (não criativamente, pois a capacidade dada pode cobrir só um aspecto da questão, mas cada aspecto implica os outros dois, tudo! Não há nada tão desorgânico que possa ser concebido como isolado de um contexto. Seria abstrato).

A. Falei da justiça tal como é vivida na nossa época: como o lugar onde o homem é medida das coisas. Enquanto o homem for medida das coisas, enquanto o homem se considerar medida das coisas, a sua vida na sociedade vai experimentar e sofrer um domínio, uma escravidão – diz São Paulo na carta aos Romanos –, não conhecerá o que é a liberdade. Mesmo quem faz uma parceria entre grandes empresas, a faz para tomar posse de um poder maior – pois o dinheiro dá a possibilidade de fazer tudo, de sermos senhores de tudo, dá a ilusão disto; e quantos se demonstram iludidos com isto! Ou o jornal o escreve! –; a pessoa toma posse do poder e tenta tornar aqueles que a rodeiam seus escravos (mas esta tomada do poder não vale somente para as grandes empresas!). Assim, sob o pretexto da justiça, nós sentimos o golpe que nos dão, o desgosto que nos dão, este sentimento de sermos jogados dentro de um povo em ruína, pois todos se deixam jogar dentro. É um amargo documento o fato de que nós não possamos identificar a justiça com essas coisas. Pois a justiça implica sempre essas coisas, quando se esquece daquele que é Outro para todos e para tudo, ou seja, de Deus, e portanto de Jesus Cristo, e portanto de qualquer pessoa criada por Deus e salva por Cristo.
O que dizia Nietzsche é fantástico como juízo, mas fornece também o ponto, o fenômeno que responde a essa situação em que estão todas as pessoas: “Não me agrada a sua justiça fria, e no olhar dos seus juízes reluz sempre para mim o carrasco com a sua espada gélida. Digam-me: onde se encontra a justiça que é amor e que tem olhos para ver? Inventem-me, então, o amor que carrega sobre si não só todas as penas, mas também todas as culpas”. Entre outras coisas, essa frase é bela por isto: porque introduz também o conceito de amor justo. É a justiça que faz entender quando o amor é justo: se o amor produz justiça, é justo; se o amor não produz justiça, não é justo. Ora, o amor é afirmar o destino do outro; a pessoa não ama se não afirma o destino do outro, realmente. Pode escorregar cem vezes, se a pessoa está na velhice, como eu, ou se é como uma criança que não sabe onde está o caminho, ou se tem a cabeçuda e cornuda teimosia de quem é adulto, mas o amor é realmente uma afirmação do outro, de um outro: é como a obediência, a afirmação de uma presença como critério.
A obediência é amor, mas a justiça também implica isso, pois se a justiça não é amor, o que acontece? Acontece que todos os fatores em jogo dentro de um fato que um homem pode procurar, todos os fatores que estão em jogo – todos os fatores da experiência, responsáveis por essa experiência – não são perseguidos, não se dá um passo a mais a não ser depois de encontrá-los pela frente, não se demonstra nada; aliás, demonstra-se com os arrependidos, com os criminosos que se dizem arrependidos.
Desse ponto de vista, o amor é justiça não na medida em que elimina o juízo sobre o mal, mas porque implica a realização de um juízo adequado diante daquele que errou: só a caridade pode, diante de um assassino, fazer com que se compreenda o assassino, abonando o erro de todos os limites possíveis da sua responsabilidade. Ao contrário, para o eu que não é amor a justiça é violência: é chegar a agredir o outro tão logo dê um motivo, mesmo não verificado, ou, como vemos, até – como eu disse antes – verificado com a contribuição do testemunho de criminosos que se qualificam como arrependidos. É como acontece em todos os relacionamentos que não têm o desejo do destino do homem como fundo do olhar. Em todos os relacionamentos, o homem que não tem o amor como inspiração, como fator do seu olhar, em todos os relacionamentos, com qualquer companhia da criação, o homem sem amor é violento: com efeito, a violência é pretender que uma realidade inadequada possa substituir o real inteiro.

B. A relação homem-mulher é o indicador mais claro da necessidade da companhia para o caminho da vida, como disse Deus no Gênesis: “Façamos um ser que seja companhia para ele; este ser que criei não pode ficar sozinho, por isso faço uma companhia para ele”. Mas, se não é companhia, a mulher não é – não é! – sujeito do amor, sujeito ou objeto de amor! Não há amor entre os dois, pois, se não é companhia para o destino, o homem ou a mulher pensam no outro não segundo o destino, não com amor e preocupação pelo destino.
A relação amorosa entre pessoas, cujo símbolo original para o homem é a mulher, é falsa se o amor, que é afirmação do outro como destino, é queimado desde as raízes pelas exigências de um retorno da nossa doação ao outro. Se dar-nos ao outro precisasse, previsse, ou “apostasse em”, ou pretendesse um retorno do outro, não seria dom, mas um cálculo – sempre! –. Um cálculo cujo desenvolvimento surge e é determinado pelo instinto, que veicula, por meio de satisfações ou conveniências, uma sentimentalidade; de modo que o afeto não nasce de um juízo de inteligência, mas de uma onda precária de emoções e de decisões nas quais a violência escondida, inconsciente de si mesma, produz uma manhã sem sol.
Vejam, eu havia trazido algumas poesias com a intenção de poder lê-las a vocês, mas, em vez disso, peço-lhes que vão vê-las no livro Le mie letture, no capítulo sobre Ada Negri: leiam Minha juventude e depois a poesia que diz: “Não soube dizer-te o quanto te amo”, Ato de amor12. Leiam-nas novamente, por favor, pois não é sem um grande motivo e uma forte intuição que insistimos em certas coisas, que repetimos as coisas... É como o nosso caríssimo “piadista” Adriano: todas as piadas que ele conta são ouvidas por nós pela centésima vez! São realmente vivas, porque ele as conta com um tom e uma maneira de contar novos.

C. O trabalho. É realmente uma descoberta poder reconhecer o trabalho no sentido mais próprio do termo, no seu horizonte total: o trabalho como horizonte total é relação do homem com todos os outros seres; mas é uma relação que, vivida com qualquer outro ser, ilumina a consciência que o homem tem de si, em um pensamento, em uma lembrança do mistério do universo cuja natureza é a dinâmica do Ser que tem de operar. Assim, o trabalho é a obra enquanto chega a incidir sobre a obra do Espírito; é como o Mistério no aspecto original da criação. Cada instante de trabalho, qualquer gesto de trabalho – mesmo que fosse o de uma agulha que prega um botão na camisa ou no paletó – tem a dignidade própria do sujeito humano.
Se não se compreendesse isso, qualquer outra expressão a que uma mulher ou um homem fossem obrigados (por não poderem ter outra coisa para fazer, ou então por não serem capazes de fazer outra coisa) não teria dignidade: seria eliminar todos estes indivíduos da face da terra, eliminar tudo. Assim, aqueles que vão para a estação espacial Sojuz, no alto dos céus, fazem uma coisa que tem o mesmo valor do gesto de sua mãe, que os lavava quando eram pequenos. Que espécie de grande tranqüilidade teria alguém que, na Sojuz, pensasse que está fazendo a vontade de um Outro, que está fazendo pela intervenção de um Outro aquela coisa grande, como sua mãe, quando o lavava quando era pequeno. E é uma coisa grande alguém que não é mais capaz de falar – por isso não pode mais nem dar aulas, nem fazer nada – ou alguém que quer andar de bicicleta mas perde o equilíbrio, cai por terra e fica seis meses no hospital por causa das costas quebradas, depois não anda mais de bicicleta (mas pede para ser levado de carro!).
Como é em Cristo: Cristo, com um gesto seu, recriou o mundo, pois renovou a criação. É uma re-criação. O aspecto original da criação, ofuscada e alterada por um fato, que é o pecado original, é tocado por Cristo, mas a criação de Deus cabe também a cada pessoa que se identifica com Cristo – cada um de nós se identificou com Cristo –, e ela a torna diferente, ou desenvolve a maior coisa que pode ser realizada pela relação com as coisas, com todas as coisas e com todos os homens: a esperança. Reaviva a esperança.

De onde nasce para nós essa relação com Cristo que chega até esses últimos capilares de toque e de mudança, até esse nível de desenvolvimento de interesse pelas coisas e até um equilíbrio tão maior que inesperadamente, depois de vinte anos de hábitos ruins, nos faz adquirir uma postura boa, equilibrada (com tudo o que se fazia antes)? Do Batismo. O Batismo é realmente o visível, misterioso mas pacificador e inquietante sinal do novo, da novidade que Cristo trouxe ao mundo. Pois Cristo no mundo é cruz e ressurreição. Por isso tem valor tudo o que dissemos antes: o sacrifício é arrancar alguma coisa para a mudança; sem arrancar alguma coisa não há, não existe nada, tanto é verdade que nós nos maravilhamos de que Deus tenha usado para consigo mesmo uma modalidade tão trágica.
Seja como for, “nenhum de nós vive para si mesmo, nenhum morre para si mesmo, pois se nós vivemos, vivemos pelo Senhor; se nós morremos, morremos pelo Senhor. Quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor” 13. Esta frase, que já lhes foi ditada, é obrigatório que a levem a sério. Lembrem-se desta frase para sempre; assim, vocês podem ser também capazes de realizar o que Igino, de Pádua, fez no mesmo dia em que quase foi destruído por aquela explosão14. Foi sua mulher quem me disse, logo depois: “Veja, ele leu em um livro esta frase e mostrou para mim: ‘Quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor’”.
Por isso, a obediência é a clareza e a tomada de consciência fundamental do que temos de fazer. É muito mais interessante se você obedece do que se tem sucesso (não em desobedecer, mas em fazer!).

Notas:

[1] Padre Giussani refere-se a palestras feitas aos Memores Domini (membros da Associação Eclesiástica Memores Domini, comumente denominada “Grupo Adulto”, uma experiência de dedicação total a Cristo que nasceu no movimento de Comunhão e Libertação). Cf. “Um homem novo”, publicado em Litterae Communionis nº 68, mar./abr. 99, pp. 17-32.
[2] “Antes que nasça o dia,/ vigiamos esperando,/ a criação se cala/ ao cantar do mistério.// O nosso olhar procura/ um Rosto em plena noite:/ no coração se eleva/ mais puro o desejo.// Enquanto a sombra leve/ cede ao clarão nascente,/ floresce a esperança/ do dia que não morre.// Logo a manhã no céu/ nos inunda de luz;/ a Tua misericórdia,/ ó Pai, dá-nos a vida.// E este novo dia/ que a aurora nos revela,/ dilate em todo o mundo/ o reino de Teu Filho.// A Ti, ó Pai santo,/ ao Teu único Verbo,/ ao infinito Amor,/ louvor em todo o tempo. Amém.” Hino das Laudes de quinta-feira. In: O livro das horas. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1998 [4ª ed.], p. 101.
[3] “Algo amargo surge do próprio íntimo de qualquer prazer, que angustia mesmo entre as flores” (T. Lucrécio Caro. De rerum natura, IV, vv. 1133-1134).
[4] Ave europeia (lê-se “pêga”); ndt.
[5] Cf. Tu, ou da amizade, Notas das Meditações de Luigi Giussani e Stefano Alberto nos Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação, 1997.
[6] Fl 2, 8.
[7] Cf. Jo 8, 29; 14, 31.
[8] Cf. Jo 14-17.
[9] Cf. “Intimior intimo meo, superior summo meo”. In: Santo Agostinho. Confissões, III, 6.
[10] Cf. Gl 4, 1-9; Rm 8, 12-21.
[11] Cf. T. S. Eliot. “Coros de ‘A rocha’”. In: Poesias. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
[12] Cf. Luigi Giussani. Le mie letture. Milão, Rizzoli, 1997. Os poemas de Ada Negri citados neste artigo foram publicados em português em Litterae Communionis, nº 46, julho/agosto de 1995, pp. 46-48.
[13] Rm 14, 7-8.
[14] Padre Giussani se refere à explosão que aconteceu em Pádua (Itália) em 5 de janeiro de 1998, durante a tradicional fogueira da Befana.