Como se despertam as perguntas últimas. Itinerário do senso religioso

Luigi Giussani. O senso religioso. Brasília: Universa, 2009, pp. 155-164.
Luigi Giussani

Suponhamos estar nascendo, saindo do ventre de nossa mãe com a idade que temos neste momento, no sentido de termos desenvolvimento e consciência como os possuímos agora. Qual seria o primeiro sentimento em sentido absoluto, isto é, o fator primeiro da nossa reação perante o real? Se eu abrisse pela primeira vez os olhos neste instante, saindo do seio de minha mãe, ficaria dominado pela maravilha e fascínio das coisas, como de uma "presença". Seria atingido pela reação estupenda a uma presença que é expressa no vocabulário corrente com a palavra "coisa". As coisas! Que "coisa"! O que é uma versão concreta, banal, se preferirem, da palavra "ser". O ser: não como entidade abstrata, mas como presença que não é feita por mim, mas que encontro, uma presença que se me impõe.
Quem não crê em Deus é indesculpável, dizia São Paulo, na Carta aos Romanos, porque deve renegar este fenômeno original, esta experiência original do "outro" (cf. Rm 1, 19-21). A criança vive sem dar-se conta dessa experiência porque ainda não está totalmente consciente; mas o adulto que não a vive ou não a percebe como homem consciente é menos que uma criança, está como que atrofiado.
O fascínio, a maravilha dessa realidade que se me impõe, dessa presença que me toma, está na origem do despertar da consciência humana. (...)
Se neste momento eu estou atento, isto é, se sou maduro, não posso negar que a evidência maior e mais profunda que percebo é que eu não me faço por mim, não me estou fazendo. Não me dou o ser, não me dou a realidade que sou, sou "dado". É o instante adulto da descoberta de mim mesmo como dependente de uma outra coisa.
Quanto mais me adentro em mim mesmo, se chego até o fundo, de onde broto? Não de mim, mas de outro. É a percepção de mim como um jorro d'água numa fonte. Existe outra coisa que é mais do que eu e da qual sou feito. Se um jorro d'água pudesse pensar, perceberia no fundo de seu sereno desabrochar uma origem que não sabe o que é, é outro fora de si.
Trata-se da intuição, que em todos os tempos o espírito humano mais agudo teve, dessa misteriosa presença pela qual a consistência do seu instante, do seu eu é possível. Eu sou "Tu-que-me-fazes". Só que este "tu" é absolutamente sem rosto; uso a palavra "Tu" porque é a menos inadequada, na minha experiência de homem, para indicar aquela presença incógnita que é incomparavelmente maior do que a minha experiência de homem. Que outra palavra deveria usar?
Quando olho para mim mesmo e percebo que não estou sendo feito por mim, então eu, eu com a vibração consciente e repleta de afeição que urge nessa palavra, só posso dirigir-me à Coisa que me faz, à fonte da qual provenho neste instante, usando a palavra "Tu". "Tu-que-me-fazes" é o que a tradição religiosa chama Deus, é aquilo que é mais do que eu, é mais eu do que eu mesmo, é aquilo pelo qual eu sou.
Por isso, a Bíblia diz de Deus "tam pater nemo" (cf. Dt 32,16; Is 63, 16; Mt 6,9; 1Cor 8,6; 2Cor 6,18), ninguém é tão pai. Porque o pai que nós conhecemos na experiência é quem dá a partida, o início a uma vida que, desde a primeira fração de instante na qual é concebida se separa, desenvolve-se por si.
Nos primeiros anos do meu sacerdócio, havia uma mulher que vinha confessar-se regularmente. Numa certa altura, desapareceu por algum tempo e, quando voltou, disse-me: "Tive uma segunda filha"; e sem que eu lhe dissesse nada, acrescentou: "Se o senhor soubesse como fiquei impressionada! Assim que percebi que ela tinha nascido, não pensei se era menino ou menina, se estava bem ou mal, mas a primeira idéia que me veio foi esta: 'Já começou a ir embora!'".
Pelo contrário, Deus, Pai a cada momento, está me concebendo agora. Ninguém é tão pai, tão gerador.
A consciência de si mesmo até o fundo percebe, no fundo, no fundo, um Outro. Isto é a oração: a consciência de si até o fundo que se depara com um Outro. Dessa forma, a oração é o único gesto humano no qual a estatura do homem realiza-se inteiramente.
O eu, o homem, é aquele nível da natureza no qual ela percebe não ser feita por si mesma. De modo que todo: o cosmo é como a grande periferia do meu corpo sem interrupção. Pode-se dizer também: o homem é o nível da natureza no qual esta se torna experiência da sua própria contingência. O homem experimenta ser contingente: subsiste por causa de outra coisa, porque não é feito por si. Estou de pé porque me apóio num outro. Sou porque sou feito. É como a minha voz, eco de uma vibração que produzo: se interrompo a vibração, a voz não existe mais. Como a pequena mina, que deriva toda da nascente. Como a flor, que depende totalmente da força da raiz.
Assim, não posso dizer "eu sou" de forma consciente, segundo a totalidade da minha estatura de homem, a não ser identificando o eu com "Eu sou feito". É de tudo isso que dissemos 'que depende o equilíbrio último da vida. Assim como a verdade natural do homem, como vimos, é a sua "criaturalidade", o homem é um ser que existe porque é continuamente possuído. Ele respira inteiramente, sente-se no lugar certo e se enche de letícia, quando reconhece ser possuído.
A consciência verdadeira de si é bem representada pela criança nos braços do pai e da mãe. Ela pode entrar em qualquer situação da existência com uma profunda tranqüilidade, com uma possibilidade de letícia. Não há sistema terapêutico que tenha essa pretensão, a não ser mutilando o homem. Muito freqüentemente, para tolher a censura de certas feridas, censura-se o homem na sua humanidade.
É por isso que todos os movimentos dos homens enquanto tendem à paz e à alegria são em busca do Deus, dAquilo em que se encontra a consistência exaustiva das suas vidas.