O enigma como fato na trajetória humana

Na origem da pretensão cristã, São Paulo: Companhia Ilimitada, 2012, pp. 43-53
Luigi Giussani

A pretensão de uma revelação resume a situação do espírito humano ao conceber e realizar sua relação com o divino, segundo uma alternativa expressa pelo esquema abaixo.

A linha horizontal representa a trajetória da história humana, sobre a qual paira a presença de um X: destino, fado, quid último, mistério, “Deus”.



Em todos os momentos de sua trajetória histórica, a humanidade tentou compreender teórica e praticamente a relação que passava entre a sua realidade contingente — o seu ponto efêmero — e o sentido último dessa sua realidade. Procurou imaginar e viver o nexo entre a própria efemeridade e o eterno. Suponhamos agora que a enigmática presença, o X que paira além do horizonte — sem o qual a razão não pode ser razão, pois ela é a afirmação do significado último —, penetrasse no tecido da história, entrasse no fluxo do tempo e do espaço e, com inimaginável força expressiva, se encarnasse num “Fato” que se deu entre nós. À luz dessa hipótese, o que significa “encarnar-se”? Significa supor que aquele misterioso X se tenha tornado um fenômeno, um fato normal identificável na trajetória histórica e agindo sobre ela.

Essa suposição corresponderia à exigência da revelação. Seria irracional excluir a possibilidade de que o mistério que faz as coisas chegue a implicar-se na trajetória histórica envolvendo-se direta e pessoalmente com o homem. Como vimos, pela nossa própria natureza, não teríamos como estabelecer limites ao mistério.

Assim sendo, dada a possibilidade do fato e a racionalidade da hipótese, que mais nos resta a fazer diante dela? A única coisa a fazer é perguntar: aconteceu ou não?

Se tivesse acontecido, esse caminho seria o único, não porque os outros sejam falsos, mas porque teria sido traçado por Deus. Historicamente o mistério teria se apresentado como um fato ao qual ninguém que com ele se defrontasse real e seriamente poderia subtrair-se sem renegar o seu próprio caminho.

Aceitando e percorrendo aquela estrada traçada por Deus, o homem poderá perceber que, em comparação com as outras, ela se mostra mais humana como síntese, e mais completa na valorização dos fatores em jogo. Seguindo esse caminho excepcional, a priori eu deveria compreender melhor também os demais caminhos à medida que os conheça; assim, adquiriria a capacidade de apreender tudo de bom que existisse também nas outras estradas. Seria uma experiência valorizadora, ampla, larga, cheia de magnanimidade, capaz de abraçar a totalidade dos valores, “católica” no sentido etimológico, isto é, segundo a inteireza, universal. Como diz um documento do Concílio Vaticano II, “a Igreja católica nada rejeita do que nessas religiões existe de verdadeiro e santo. Olha com sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que, embora se afastem em muitos pontos daqueles que ela própria segue e propõe, todavia, refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens. (...) Exorta, por isso, os seus filhos a que, com prudência e caridade, pelo diálogo e colaboração com os sequazes de outras religiões, dando testemunho da vida e fé cristãs, reconheçam, conservem e promovam os bens espirituais e morais e os valores sócio culturais que entre eles se encontram”.

Na hipótese de que o mistério que paira além do horizonte de qualquer passo do homem tenha rompido a linha do arcano e penetrado no caminho daqueles passos, estamos diante de uma mudança radical entre essa modalidade “religiosa” e qualquer outra tentativa do homem de relacionar-se com o desconhecido. Mas levar a sério essa hipótese como verdadeira não pode eliminar nada à atenta capacidade de simpatia para com toda busca humana.

1. Uma reviravolta no método religioso

Admitindo a hipótese de que o mistério tenha penetrado na existência do homem, falando com ele em termos humanos, a relação homem-destino não será mais baseada no esforço humano como construção e imaginação; será mais do que o estudo de uma coisa distante, enigmática, mais do que uma tensão de espera diante de uma coisa ausente. Será, pelo contrário, deparar-se com uma presença. Se Deus tivesse manifestado na história humana uma vontade particular, ou aberto Ele mesmo uma estrada para chegar a Ele, o problema central do fenômeno religioso não seria mais a tentativa — embora ela expresse a maior dignidade do homem — de “figurar-se” o Deus. O problema estaria todo no puro gesto da liberdade que aceita ou recusa. Essa é a reviravolta. O centro, o ponto axial aqui não estaria mais no esforço de uma inteligência e de uma vontade construtiva, de uma exaustiva fantasia, de um complicado moralismo, mas na simplicidade de um reconhecimento: uma atitude análoga à de quem, vendo um amigo chegar, o identifica entre os outros e o cumprimenta. Nessa hipótese, a metodologia religiosa perderia toda a sua conotação inquietante, de envio enigmático a um ponto distante, e coincidiria com a dinâmica de uma experiência, a experiência de uma presença, de um encontro.

Observe-se que o primeiro método favorece o inteligente, o culto, o afortunado, o poderoso, enquanto o segundo favorece o pobre, o homem comum. Deparar-se, esbarrar numa pessoa presente é uma evidência fácil tanto para a criança como para o adulto. Na dinâmica reveladora dessa hipótese, o acento recai não mais sobre a genialidade e a iniciativa, mas sobre a simplicidade e o amor. Amor que representa a única dependência verdadeira do homem, a afirmação do Outro como consistência de si mesmo, escolha suprema da liberdade.

Numa hipótese como essa, a afirmação da unicidade da estrada, nela implicada, não exprimiria mais uma presunção, mas seria obediência a um fato, ao Fato decisivo do tempo.

Haveria espaço apenas para uma fuga: negar a própria possibilidade daquele Fato. Esse delito contra a suprema categoria da razão, a categoria da possibilidade, é estigmatizado por um personagem do romance Fim de caso, de Graham Greene; diante do ódio de um “livre pensador”, o frade mostrava a profunda contradição da sua postura, dizendo que admitir todas as possibilidades lhe parecia ser mais “livre pensamento” do que excluir alguma, qualquer que fosse.

2. Uma hipótese que não é mais só hipótese

Vimos que essa hipótese é possível e que se fosse verdadeira revolucionaria a metodologia religiosa. É preciso reconhecer agora que essa foi e é considerada verdadeira na história do homem. O anúncio cristão diz: “Sim, isso aconteceu”.

Imaginemos que o mundo seja uma imensa planície, na qual inúmeros grupos humanos, sob a direção de seus engenheiros e arquitetos, se esforcem, com os mais disparatados projetos, para construir pontes de milhares de arcos para ligar a terra ao céu, o lugar efêmero de sua morada à “estrela” do destino. A planície está repleta de um número incontável de canteiros de obras nos quais se desenvolve um trabalho febril. Num determinado momento, chega um homem que abraça com o olhar todo aquele intenso trabalho de construção e, a certa altura, diz: “Parem!”. Aos poucos, todos, a começar pelos mais próximos, começam a suspender o trabalho e a olhar para o homem. Ele diz: “Vocês são grandes e nobres, o esforço de vocês é sublime mas também triste, porque não é possível que vocês consigam construir a estrada que une a terra ao mistério último. Abandonem os seus projetos, deixem as suas ferramentas: o destino teve compaixão de vocês; sigam-me, eu construirei a ponte: eu, na verdade, sou o destino”.

Tentemos imaginar a reação daquela gente diante dessas afirmações. Os arquitetos, os mestres de obra e os artesãos começariam instintivamente a dizer aos operários: “Não interrompam o trabalho! Coragem, mãos à obra. Vocês não estão vendo que esse homem é um louco?”. As pessoas começariam a dizer “Sim, é louco. Vê-se que é mesmo maluco” e voltariam ao trabalho, seguindo as ordens dos chefes. Somente alguns não tirariam o olhar dele; profundamente impressionados, não obedeceriam a seus chefes como a massa; aproximando-se do homem, seguiriam-no.

Pois bem, descrito de uma forma fantasiosa, foi isso que aconteceu na história, e acontece ainda.

Nesta altura não nos encontramos mais diante de um problema de ordem teórica (filosófica ou moral), mas diante de um problema histórico. A primeira pergunta que devemos fazer não é se “é racional e justo o que diz o anúncio cristão?”, mas se “é verdade que aconteceu, ou não?”, se “é verdade que Deus interveio?”.

Gostaria de apontar a diferença de método que a abordagem da “nova” pergunta requer, ainda que essa diferença já estivesse implícita no que dissemos até agora. Poderíamos enunciá-la da seguinte maneira: enquanto a descoberta da existência de um quid misterioso, do Deus, pode e deve ser obtida pelo homem através de uma percepção analítica da sua experiência do real (e vimos como a história demonstra amplamente que ela pode ser, em geral, obtida dessa forma), o problema do qual agora falamos, sendo um fato histórico, não pode ser verificado com uma reflexão analítica sobre a estrutura da relação do homem com o real. É um dado de fato acontecido no tempo ou não; existe ou não existe, aconteceu ou não aconteceu. Em outras palavras: ou é efetivamente um acontecimento que se deu na existência do homem dentro da história, e por isso requer a constatação de um fato, ou não passa de uma ideia. Diante dessa hipótese, o método é o registro histórico de um fato objetivo.

Então a pergunta “é verdade que Deus interveio na história?” deve se referir àquela pretensão sem precedentes que representa o conteúdo de uma mensagem bem precisa; é obrigada a se transformar numa outra pergunta: “Quem é Jesus?”. O cristianismo surge como resposta a essa pergunta.

3. Um problema que deve ser resolvido

Dostoiévski diz, em Os Demônios: “...a fé reduz-se ao seguinte e angustiante problema: um homem culto, um europeu dos nossos dias, pode acreditar, crer de verdade, na divindade do filho de Deus, Jesus Cristo?”. A questão religiosa decide-se no nível dessa pergunta; em qualquer caso, para qualquer indivíduo que tome conhecimento dessa notícia, o simples fato de que haja mesmo um só homem que afirme que “Deus se fez homem” coloca um problema radical e impossível de eliminar da vida religiosa da humanidade.

Kierkegaard escreveu em seu O desespero humano: “A forma inferior do escândalo, a mais inocente humanamente, consiste em deixar indeciso o problema de Cristo (...). Tão completamente se esqueceu o ‘deves’ do imperativo cristão. (...) E contudo, essa mensagem que é o cristianismo não pode significar para nós senão o dever imperioso de concluir acerca de Cristo. A Sua existência, o fato da Sua realidade presente e passada, impera sobre toda a nossa vida”. Existem certos chamados que pela sua radicalidade não podem ser eliminados ou censurados por um homem que os ouviu, na medida em que age como homem. O homem é obrigado a dizer sim ou não. Quando é atingido pela notícia de um homem que declarou “eu sou Deus”, nenhum homem poderá desinteressar-se disso, terá que buscar se convencer de que a notícia é verdadeira ou falsa. Um homem não pode passivamente aceitar ficar de fora, distraído, de um problema desse tipo. É nesse sentido que Kierkegaard usa a palavra “escândalo”, segundo a sua autêntica etimologia grega, onde skándalon significa impedimento.

O homem que, lenta ou rapidamente, deixasse de lado a possibilidade de formar uma opinião pessoal sobre o problema de Cristo impediria a si mesmo de ser homem. Gostaria de observar, de passagem, que podemos estar convencidos de viver como cristãos, inseridos em alguma coisa que eu chamaria de “tropa cristã”, sem que esse problema tenha sido verdadeiramente resolvido para a própria pessoa, sem que ela tenha sido libertada daquele impedimento.

Um fato tem sua inevitabilidade. Se um fato tem um conteúdo importante, evitá-lo com a persistente e irracional distração da qual o homem é paradoxalmente capaz deforma gravemente a personalidade humana. Se alguém estivesse guiando uma camionete numa estrada de dois metros de largura e visse, de repente, a estrada bloqueada por um desmoronamento, não poderia avançar; teria que dar um jeito de resolver a situação. Esse motorista se encontraria diante daquilo que, no trecho anterior, Kierkegaard chamava de um “deves”, um imperativo, um problema que precisa ser resolvido.

Muito bem: o imperativo cristão é que o conteúdo da sua mensagem se apresenta como um fato. Nunca será demais refrisar isso. Uma insidiosa deslealdade cultural possibilitou, devido à ambiguidade e à fragilidade também dos cristãos, a difusão de uma vaga ideia de cristianismo como um discurso, uma doutrina e, por isso, talvez uma fábula ou uma moral. Nada disso: o cristianismo é antes de tudo um fato, um acontecimento, um homem que entrou na contagem dos homens.

Mas o imperativo diz respeito a uma outra faceta do fato: a vinda daquele homem é uma notícia transmitida até hoje; até hoje aquele evento tem sido proclamado e anunciado como o evento de uma Presença. Um homem disse “eu sou Deus” e isso tem sido narrado como um fato presente: isso exige uma urgente tomada de posição pessoal. Podemos sorrir, podemos decidir não nos ocuparmos disso, o que de qualquer forma significa que decidimos resolver a questão negativamente, que não quisemos nos dar conta de que estamos diante de uma proposta cujos termos são tão grandes que nenhuma imaginação humana poderia criar algo maior.

Eis por que tão frequentemente a sociedade não quer saber desse anúncio, quer confiná-lo às igrejas e às consciências. O que perturba é justamente a percepção da enormidade dos termos do problema. Se Ele existiu ou não, ou melhor, se Ele existe ou existiu, a maior decisão da existência é constatar ou não esse fato. Nenhuma outra escolha que a sociedade possa propor, ou que o homem possa imaginar ser importante, tem o mesmo valor que isso. E isso soa como imposição; afirmar o conteúdo cristão parece despotismo. Mas é despotismo dar a notícia de algo que aconteceu, por mais desproporcional que seja?

4. Um problema de fato

É necessário dar-se conta de que o problema diz respeito a uma questão de fato. Do ponto de vista da razão, é triste, amargo constatar que todos tenham como ponto de referência cronológico o nascimento de Cristo e muitos nunca se perguntaram em que consiste historicamente o problema de Cristo. Não é um problema de opiniões, de gostos e nem mesmo um problema de análise do espírito religioso. Uma investigação sobre o senso religioso não leva a compreender se o cristianismo traz uma notícia falsa ou verdadeira. Já enunciei essa postura no primeiro volume deste curso. O método é imposto pelo objeto, e não fixado pelo sujeito. O senso religioso é um fenômeno da pessoa e por isso dissemos que o método para abordá-lo — e essa abordagem deve se renovar sempre — é a reflexão sobre si mesmo. Se Cristo disse ou não disse que era Deus, se é Deus ou não, se pode chegar até nós ainda hoje, isso é um problema histórico. Por isso, o método deve ser correspondente, tem de corresponder à gravidade do problema.

Aqui gostaria de abrir um breve parêntese a esse respeito. Muitas vezes ouvimos expressões como “os cristãos têm Cristo como os budistas têm Buda e os muçulmanos têm Maomé”. É evidente que frases desse gênero são fruto da ignorância. É necessário, mesmo que brevemente, dar-se conta disso.

O conteúdo do anúncio cristão é este: um homem que, comendo, caminhando, levando normalmente a sua existência de homem, disse: “Eu sou o seu destino. Eu sou Aquele de que todo o Cosmos é feito”. Esse é objetivamente o único caso da história em que um homem não se tenha atribuído uma genérica “divinização”, mas se tenha identificado substancialmente com Deus. Do ponto de vista da história do sentimento religioso da humanidade, é preciso observar que quanto maior a genialidade religiosa do homem, mais ele percebe e experimenta a distância ou a supremacia de Deus, a desproporção entre Deus e o ser humano. A experiência religiosa é a consciência vivida da pequenez do homem e da incomensurabilidade do mistério. Dizem que São Francisco foi visto nos bosques do Monte Alverne, ajoelhado e com o rosto por terra enquanto repetia “Quem és tu? Quem sou eu?”, estabelecendo assim a diferença abissal entre os dois polos — o homem e Deus — que criam o fascínio do sentimento religioso. Quanto mais esse sentimento é profundo, mais se apresenta como um raio que cai, ardente, potente e luminoso, e mais o homem sente a diferença de potencial entre os dois polos. Quanto mais um homem tem em si o gênio do religioso, menos sente a tentação de identificar-se com o divino. O homem pode agir “fingindo” ser deus, mas teoricamente é impossível conceber uma identificação. O homem não pode identificar, de forma estrutural, a sua evidente parcialidade com o todo, a não ser por uma clamorosa e manifesta patologia. O dinamismo normal da inteligência não tem a possibilidade de ter essa tentação, porque toda a tentação, para subsistir, deve se fundamentar numa verossimilhança, numa aparência de possibilidade; e o fato de o homem conceber-se realmente como Deus é sem verossimilhança, sem qualquer aparência de possibilidade.