A energia da razão tende a entrar no desconhecido
Capítulo XIV Falamos fundamentalmente da natureza da razão como relação com o infinito, que se revela como exigência de explicação total. O vértice da razão é a intuição da existência de uma explicação que supera a sua própria medida. Para empregar um jogo de palavras que já usamos, a razão, exatamente como exigência de compreensão da existência, é obrigada, por sua natureza, a admitir a existência de um incompreensível.
Ora, quando a razão toma consciência total de si e descobre que a sua natureza se realiza, em última instância, na intuição do inatingível, do mistério, ela não cessa de ser exigência de conhecimento.
É exatamente a tensão para entrar nesse desconhecido que define a energia da razão. Como já indicamos, nos Atos dos Apóstolos São Paulo dizia aos “filósofos” que se reuniam no Areópago de Atenas:
O Deus que fez o mundo e tudo o que nele se encontra, o Senhor do céu e da terra, não habita em templos feitos por mãos humanas. Também não é servido por mãos de homens, como se precisasse de alguma coisa, ele que a todos dá a vida, a respiração e tudo o mais. Se de um princípio único fez todo o gênero humano para habitar sobre a superfície da terra, se fixou tempos determinados e os limites do hábitat dos homens, foi a fim de procurarem a divindade e, se possível, atingi-la às apalpadelas e encontrá-la; também ela não está longe de nós. É nela, com efeito, que temos a vida, o movimento e o ser. Assim, aliás, disseram alguns dos vossos: “Pois nós somos também de sua raça.”
Todo o caminhar humano, toda a tentativa desta “força operosa que nos cansa de movimento em movimento”, é o conhecimento de Deus. Porque o movimento dos povos resume como fórmula todo o imenso esforço de busca empreendido pelo homem. Descobrir o mistério, entrar no mistério que está sob as aparências, sob aquilo que vemos e tocamos, é o motivo da razão, a sua força motriz.
Assim, é a relação com aquele “além” que possibilita também a aventura do “aquém”; de outra maneira, o tédio, origem da presunção evasiva e ilusória ou do desespero que aniquila, passa a nos dominar. Só a relação com o além é que possibilita realizar a aventura da vida. A força humana que nos permite apreender as coisas do aquém é dada pela vontade de penetrar no além.
O mito antigo mais próximo à mentalidade de hoje encontrou sua expressão mais forte no solo cristão: é o mito de Ulisses. Em Dante Alighieri, ele encontrou uma grande força expressiva, maior que qualquer outra versão da literatura antiga.
Ulisses é o homem inteligente, que quer medir todas as coisas com a própria perspicácia. Ele tem uma curiosidade irrefreável: é o dominador do mare nostrum. Imaginem este homem com todos os seus marinheiros no seu barco, que vaga de Ítaca à Líbia, da Líbia à Sicília, da Sicília à Sardenha, da Sardenha às Ilhas Baleares: todo o mare nostrum é medido e governado, é percorrido inteiramente por ele em todas as direções. O homem é a medida de todas as coisas. Mas quando chega às colunas de Hércules, Ulisses se encontra frente à persuasão comum de que toda a sabedoria, quer dizer, a medida segura do real, não é mais possível. Além das colunas de Hércules não há mais nada seguro, só há o vazio e a loucura. Assim como quem as ultrapassa é um sonhador que nunca mais terá certeza alguma, do mesmo modo, além dos limites experimentais entendidos de maneira positivista, só há fantasia, ou então, impossibilidade de segurança. Mas ele, Ulisses, exatamente pela mesma “estatura” que o levou a percorrer todo o mare nostrum, uma vez chegado às colunas de Hércules, sentia que ali não só não era o fim, mas que era como se a sua verdadeira natureza se libertasse a partir daquele momento. Então, transgrediu a sabedoria e avançou. Não errou porque foi além: ir além estava na sua natureza de homem; ao decidir, sentiu-se verdadeiramente homem. Essa é a luta entre o humano, isto é, o senso religioso, e o desumano, isto é, a postura positivista de toda a mentalidade moderna. Ela diria: “Meu filho, a única coisa segura é aquela que você constata e mede cientificamente, experimentalmente; além disso, o que existe é fantasia inútil, loucura, afirmação imaginosa.”
Mas o que há além desse mare nostrum que podemos possuir, governar e medir? O oceano do significado. E é na superação dessas colunas de Hércules que começamos a nos sentir homens: quando superamos este extremo limite fixado pela falsa sabedoria, por aquela segurança opressiva, e avançamos no enigma do significado. A realidade, no impacto com o coração humano, suscita a dinâmica que as colunas de Hércules suscitaram no coração de Ulisses e de seus companheiros, cujas faces estavam marcadas pelo desejo de outra coisa. Para aquelas faces ansiosas e aqueles corações cheios de desejo, as colunas de Hércules não eram um limite, mas um convite, um sinal, algo que remete para além de si. Ulisses e seus companheiros não erraram porque foram além.
Mas existe uma página ainda maior que esta do Ulisses de Dante, que expressa melhor ainda essa posição existencial da razão do homem. Encontra-se na Bíblia, quando Jacó está voltando do exílio, isto é, da dispersão ou de uma situação estranha a ele, para a sua casa. Chega ao rio durante pôr-do-sol, e o pôr-do-sol é rápido. Os rebanhos, os servos, os filhos e as mulheres atravessam. Por fim, quando ele, o último, vai cruzar o vau do rio, é noite completa; Jacó quer prosseguir, mesmo no escuro. Mas, antes que ponha o pé na água, sente um obstáculo diante de si, alguém que o enfrenta e procura impedi-lo de cruzar o rio. E com essa pessoa, de quem não vê a face, contra a qual joga todas as suas energias, empreende uma luta que dura toda a noite. Até que, na primeira luz do dia, esse estranho personagem consegue golpear Jacó na coxa, de modo que por toda a vida ele será coxo. Mas, no mesmo instante, aquela personagem estranha lhe diz: “Tu és grande, Jacó! Não te chamarás mais Jacó, mas te chamarás Israel, que significa ‘Lutei com Deus’.” Esta é a estatura do homem na revelação hebraico-cristã. A vida, o homem, é luta, tensão, relação — “no escuro” — com o além: uma luta na qual não se vê o rosto do outro. Quem chega a se perceber assim é um homem que anda no meio dos outros como coxo, quer dizer, marcado; não é mais como os outros homens, está marcado.
É como se, por lei, como diretriz do meu viver, eu tivesse de permanecer pendurado a uma vontade que não conheço, instante por instante. Seria a única atitude racional. A Bíblia dirá: “como os olhos dos escravos atentos aos acenos de seu senhor”. Por toda a vida, a verdadeira lei moral seria a de estarmos suspensos ao aceno deste “senhor” desconhecido, atentos aos sinais de uma vontade que nos apareceria através da pura e imediata circunstância.
Repito: o homem, a vida racional do homem deveria estar suspensa ao instante, suspensa a cada instante a este sinal aparentemente tão volúvel, tão casual, que são as circunstâncias através das quais o desconhecido “senhor” me arrasta, me provoca para o seu desígnio. E dizer “sim” a cada instante sem ver nada, simplesmente aderindo à solicitação das ocasiões. É uma posição vertiginosa.
Isto quer dizer que existencialmente essa natureza da razão como exigência de conhecer, de compreender, penetra em tudo, e por isso pretende penetrar também no desconhecido do qual depende cada coisa, do qual o seu fôlego e a sua respiração dependem a cada instante. A razão, impaciente, não tolera a adesão ao único sinal por meio do qual seguir o Desconhecido, sinal tão obscuro, tão opaco, tão aparentemente casual, como é a sucessão das circunstâncias: é como sentir-se em poder de um rio que nos arrasta para lá e para cá.
Na sua situação existencial, a natureza da razão sofre uma vertigem à qual primeiro pode resistir, mas na qual em seguida cai. A vertigem consiste no caráter prematuro ou na impaciência com a qual diz: “Entendi, o significado da vida é isto.” Todas as afirmações segundo as quais “o significado do mundo é isto, o sentido do homem é este, o destino último da história é este”, na sua diversidade e multiplicidade, são todas provas daquela queda.
Toda vez que este é identifica um conteúdo de definição, parte inevitavelmente de certo ponto de vista.
Isto quer dizer que, se o homem tiver a pretensão de definir o significado global, só poderá cair na exaltação do seu ponto de vista, de um ponto de vista. Só poderá pretender a totalidade por um particular; um particular é dilatado até definir a totalidade.
Então este ponto de vista procurará encaixar cada aspecto da realidade dentro de sua perspectiva. E como é um particular da realidade, este encaixar tudo só poderá fazer com que se renegue ou esqueça alguma coisa; só poderá reduzir, negar e renegar o rosto completo e complexo da realidade.
O senso religioso, ou a razão como afirmação de um significado último, é corrompido, degradado, reduzido a identificar o seu objeto com algo que o homem escolhe: e será necessariamente algo que está dentro do âmbito de sua experiência.
Trata-se de uma escolha que altera a face verdadeira de toda a vida, porque tudo será dilatado ou diminuído, exaltado ou esquecido, louvado ou marginalizado, segundo o envolvimento com o ponto de vista escolhido, com o fator escolhido.
Onde está o phatos/ dessa atitude? Está no fato de que o senso religioso, isto é, a natureza do homem na sua estatura última, identificará o significado total da sua vida com algo de compreensível para si.
E aqui está a raiz do erro: “com algo de compreensível para si”. Exatamente porque a natureza da razão é exigência de compreensão, diante da intuição do desconhecido, do mistério, fica tomada de vertigens e, quase sem se dar conta, ela escorrega, rebaixa o seu olhar e, fixando-o sobre um dos muitos fatores da sua experiência, diz: “É este o significado.”
A natureza da razão é tal que, pelo mesmo motivo pelo qual se põe em movimento, intui o mistério, a incomensurabilidade do significado total com a sua possibilidade de conhecimento, mas existencialmente não se mantém nesta postura, não sustenta o seu impulso de origem, operando logo uma parábola redutiva. Rebaixa, por isso, a identificação do seu objeto a algo de compreensível para si, portanto a algo que se acha no interior da sua experiência, porque a experiência é o horizonte daquilo que lhe é compreensível.
Se está no interior da experiência daquilo que posso compreender, trata-se de um particular que é exaltado como a explicação de tudo.
Dissemos que o verdadeiro problema, que está na origem de todo esse nosso discurso, é o que é a razão: se é o que delimita o âmbito do real, ou se é a abertura para ele. Mas, para a evidência da nossa experiência, a razão se revela como um olho aberto para a realidade, uma passagem para o ser no qual nunca acabamos de entrar, o qual por sua natureza nos excede em todos os sentidos, e por isso o significado global é o mistério.
A decadência, a degradação da qual falava, a parábola que imediatamente, segundo uma espécie de força gravitacional, opera dentro da razão, está na pretensão de que a razão seja a medida do real, quer dizer, que a razão possa identificar e, portanto, definir qual seja o significado de tudo. Que significa, no fundo, ter a pretensão de definir o significado de tudo? Significa ter a pretensão de ser a medida de tudo, quer dizer, pretender ser Deus.
A Bíblia chama com um determinado nome o particular com o qual a razão identifica o significado total do seu viver e da existência das coisas. Esse particular com o qual a razão identifica a explicação de tudo chama-se, na Bíblia, ídolo. É algo que parece Deus, tem a máscara de Deus, mas não é Deus.
A mentira do ídolo é definida por São Paulo:
Jactando-se de possuir a sabedoria, tornaram-se tolos e trocaram a glória do Deus incorruptível por imagens do homem corruptível, de aves, quadrúpedes e répteis. Por isso, Deus os entregou, segundo o desejo de seus corações, à impureza em que eles mesmos desonraram seus corpos. Eles trocaram a verdade de Deus pela mentira e adoraram e serviram à criatura em lugar do Criador, que é bendito pelos séculos. Amém. Por isso Deus os entregou a paixões aviltantes: suas mulheres mudaram as relações naturais por relações contra a natureza; igualmente os homens, deixando a relação natural com as mulheres, arderam em desejo uns para com os outros, praticando torpezas homens com homens e recebendo em si mesmos a paga da sua aberração. E como não julgaram bom ter o conhecimento de Deus, Deus os entregou à sua mente incapaz de julgar, para fazerem o que não convém: repletos de toda a sorte de injustiça, perversidade, avidez e malícia; cheios de inveja, assassínios, rixas, fraudes e malvadezas; detratores, caluniadores, inimigos de Deus, insolentes, arrogantes, fanfarrões, engenhosos do mal, rebeldes para com os pais, insensatos, desleais, sem coração nem piedade. (Rm 1,22-31)
São Paulo descreve não só a gênese do ídolo, mas também a consequente corrupção da verdade humana. Quanto mais se tenta explicar tudo com o ídolo, mais se compreende que ele não é suficiente: “Têm olhos e não veem, ouvidos e não ouvem, têm mãos e não tocam”, diz o Salmo, ou seja: os ídolos não mantêm suas promessas e suas pretensões de totalidade. Ao contrário, na medida em que o mistério é reconhecido, tende a determinar a vida de modo tal que aquela terrível lista de São Paulo silencia, se esvazia. Na medida em que os ídolos são exaltados, o humano é rebaixado. É a abolição da pessoa, da responsabilidade do humano. A estrutura será a culpada de tudo: o ídolo obscurece o horizonte do olhar humano e altera a forma das coisas. Então, como escrevia profeticamente Eliot:
Amiúde tentam eles escapar
À treva que no fundo os corrói e ao seu redor se alastra,
Sonhando com sistemas tão perfeitos em que o bem seja de todo dispensável.
Mas o homem que é há de ofuscar
O homem que pretende ser.
Mas existe um corolário impressionante. Hitler tem o seu ídolo, sobre o qual pretende edificar a vida do mundo para uma humanidade melhor. Mas esta sua construção, que procura envolver tudo, tem que defrontar-se, a certa altura, com o dinamismo do projeto de Lênin ou Stálin; e então? A ideologia construída sobre o ídolo tem uma pretensão de totalidade por natureza; de outro modo, não poderia tentar vencer no plano político. Quando se trata de duas ideologias com pretensões de totalidade, o encontro entre elas só pode gerar um desastre total.
Isto explica por que, para a Bíblia, a origem da violência como sistema de relacionamento, isto é, da guerra, é o ídolo.
Há uma fábula de Esopo muito significativa. Esse particular da experiência que é selecionado, escolhido ideologicamente como o lugar do significado de tudo, é como a rã de Esopo, que se incha para ficar do tamanho de um boi, e incha tanto que explode. Este é o símbolo da violência da guerra.
Nessa dinâmica de identificação do ídolo, o homem escolherá aquilo que mais estima, ou melhor, aquilo que mais o impressiona. Poderá identificar o divino até com o princípio social: a identificação do sentido da história com o sangue da raça alemã, segundo o mito nazista, é um exemplo deste estado de barbárie em pleno século XX!
Padre Gnocchi, fundador de uma grande obra assistencial, contou certa vez a um grupo de amigos que, durante a II Guerra Mundial, entrou num alojamento de jovens oficiais alemães durante a retirada da Rússia. Ele trazia a cruz negra de capelão militar. Os oficiais o ridicularizaram e depois começaram a discutir raivosamente. Em certo momento, um deles pôs-se de pé e, estendendo o braço na direção da foto de Hitler pendurada na parede, disse: “Esse é o nosso Cristo.” Era verdade, aquele era o Cristo deles.
Da mesma forma, os marxistas coerentes têm o seu Cristo no proletariado, de cujo dinamismo o chefe do partido é a expressão suprema.
O homem não pode evitar esta alternativa: ou é escravo de outros homens ou é sujeito dependente de Deus.
Esta é realmente a pressão bárbara: a violência das forças sociais identificadas como portadoras de significado último é sempre justa; portanto, se matamos em nome delas agimos bem (vejam-se as tragédias do Vietnã e do Camboja). Assim, a violência dos nossos companheiros é democracia, e a violência dos outros é crime.
Por fim, observemos que, desde que o homem é homem, amadurecendo na história ele tende a identificar o deus, isto é, o significado do mundo com um ou outro aspecto do próprio eu.
Já disse que a nossa inquietação, todo esse jogo, o jogo do ídolo, repete-se, contradizendo-se cem vezes por dia. O ídolo jamais gera unidade e totalidade sem esquecer ou renegar alguma coisa!
Mas se, por natureza, o homem intui o Além, por uma condição existencial, não se mantém e cai. A intuição é como um ímpeto que decai. Como por uma força de gravidade triste e maligna. Ulisses e seus companheiros foram loucos não porque ultrapassaram as colunas de Hércules, mas porque tiveram a pretensão de identificar o significado, ou seja, cruzar o oceano, com os mesmos meios com que navegavam entre as margens “mensuráveis” do mare nostrum.
A realidade é sinal e desperta o senso religioso. Mas é uma sugestão mal interpretada; existencialmente, o homem é levado a interpretá-lo mal, isto é, prematuramente, impacientemente. A intuição do relacionamento com o Mistério se corrompe em presunção.
Por isso, Santo Tomás de Aquino diz, no início da sua Suma Teológica:
A verdade que a razão poderia alcançar a respeito de Deus seria, com efeito, somente para um pequeno número, e depois de muito tempo, e não sem a mistura de erros. Por outro lado, do conhecimento desta verdade depende toda a salvação do ser humano, pois a salvação está em Deus. Para tornar esta salvação mais universal e mais certa, teria sido, pois, necessário ensinar aos homens a verdade divina com uma divina revelação.
Esta é a mais sintética descrição da situação existencial do senso religioso da humanidade.
De muitos modos, então, o gênio religioso humano gritou a saudade de uma libertação dessa inextrincável prisão da impotência e do erro.
Talvez a expressão mais potente seja a que se encontra no Fédon de Platão:
"Parece-me, ó Sócrates, e talvez também a ti, que na vida presente não se possa atingir a verdade segura sobre essas coisas de modo algum, ou pelo menos com grandíssimas dificuldades. Mas acho que seria uma vileza não estudar sob cada aspecto as coisas ditas a esse respeito e abandonar a pesquisa antes de ser examinado cada meio. Porque, nestas coisas, de duas uma: ou se chega a conhecer como estão; ou, se não se consegue, aplica-se ao melhor e mais seguro dentre os argumentos humanos e, com ele, como sobre um barco, tenta-se a travessia do oceano. A menos que não se possa, com a maior comodidade e menor perigo, fazer a passagem com algum meio de transporte mais sólido, isto é, com a ajuda da palavra revelada de um deus".
(Extraído de O Senso Religioso, de Luigi Giussani)