A obra do Movimento
Palavra entre nósNo vigésimo aniversário do reconhecimento pontifício da Fraternidade de Comunhão e Libertação, sugerimos a leitura das notas da síntese de Luigi Giussani nos primeiros Exercícios da Fraternidade. Rímini, 7-9 de maio de 1982
“Onde dois ou três estiverem reunidos no vosso nome: Vos reconheceremos presente, perdoando-nos mutuamente, socorrendo às necessidades de todos. Escutamos a palavra e juntos partimos o pão. [...] Oferecestes a vossa paz aos homens: fazei que [...] a humanidade supere as divisões e construa um mundo novo”1. Ora, o que desejamos, empenhando nossa vida no Movimento, senão que essas coisas se realizem? Quando, então, cantamos juntos um Hino como o desta manhã2, não é possível que estejamos tão completamente distraídos que não experimentemos uma grande emoção, pois essa é realmente, até nos menores detalhes, a descrição do que gostaríamos que acontecesse, que rezamos para que aconteça, melhor ainda, que suplicamos que se manifeste: onde dois ou três se reúnem, Te reconhecemos presente, e a presença dEle gera uma humanidade diferente.
Não sei que outra página pode descrever uma humanidade diferente de maneira tão sugestiva quanto o Hino desta manhã: “A vida destrói a morte [...] e Cristo esplendor da glória [ressuscitado] a nossa manhã ilumina”. Esse é o princípio e é tudo. “Com a alma repleta e em festa”, então, retomando a vida de manhã, “irmãos nele nos descobrimos. Pra [cada um de] nós [...] revele-se o Ressuscitado. Nos chame o Senhor ao encontro”: que o que aconteceu se torne realidade pessoal; a presença dEle, que acontece continuamente, torne-se meu próprio eu, minha realidade pessoal. “Retorne ao nosso caminho, inflame-nos sua palavra”: seja a Sua presença o que nos inflama – de fato, o que inflama a vida do homem é o motor, o motivo, a razão de viver. “De novo no pão repartido veremos o Ressuscitado”: de novo, em certos gestos, como na santa comunhão, é como se tocássemos Seu rosto ressuscitado. Que é a vida de uma amizade como a nossa, senão uma Eucaristia que continua através do dia, literalmente uma comunhão que continua, que invade a jornada? É nessa amizade que vemos Seu rosto ressuscitado! Então, toda vez que nos reunimos, “ao nosso convívio harmonioso ajunte-se um hóspede novo”: é uma novidade a cada instante tomar consciência da Sua presença que acontece, dessa presença que acontece por toda a história. “Confirme na fé quem é fraco”: não é preciso que sejamos diferentes para nos tornarmos diferentes pela energia de Seu Espírito. Somos fracos, e é essa fraqueza que Ele já venceu, e Sua vitória será manifesta, vai se manifestar. “Confirme na fé quem é fraco mostrando suas chagas gloriosas”, mostrando toda a história, a história em que Ele se encarnou e revelou e comunicou. “E nesta letícia pascal”: a letícia é simplesmente o anúncio de que “a vida destrói a morte, o Amor já lavou o pecado”, de que “Cristo esplendor da glória a nossa manhã ilumina”; a letícia está aqui e pronto, não a busquemos em outro lugar, pois não existe raiz de letícia senão aqui. “E nesta letícia pascal e feitos de novo inocentes”: na letícia do anúncio de Cristo ressuscitado, somos sempre feitos de novo inocentes. Toda vez que tomamos consciência do que Ele é, dessa Presença que hoje acontece continuamente, somos revestidos de uma pureza, pois a pureza está aí, na fé.
E essa, acaso, não é a descrição do ideal do Movimento?
Sendo assim, nós nos dissemos: por que não ajudar aqueles que se tornaram adultos no Movimento, que são adultos no Movimento, a viverem com responsabilidade pessoal, como convém a um adulto, em plena liberdade, como convém a um adulto, com uma criatividade que esteja de acordo com sua vocação pessoal, como convém a uma vida adulta? Para o adulto, para quem se tornou adulto na vida do nosso Movimento, é preciso como que apertar o nó com delicadeza e chegar até a última implicação – e a última implicação é você –, libertando a tudo da inevitável restrição de um organismo associativo (não eliminando a organização, mas libertando-a, fazendo com que os adultos vivam a vida do Movimento em espírito de plena liberdade), libertando, portanto, também a todos aqueles que têm responsabilidades no Movimento (como a maior parte dos adultos), libertando-os num determinado nível, libertando-os do peso ou da dificuldade ou da complicação do próprio serviço que ofertam. Pois há um ponto no qual devo dizer “eu” diante de meu destino, que é Cristo. E é aí, só nesse ponto, que as pessoas voltam realmente a descobrir-se irmãs: é a consciência da Sua presença que, de maneira inesperada e veraz, torna também presentes para mim aqueles que Ele me fez encontrar neste caminho.
“O que por toda parte é frustração, aqui nada mais é que suave e prolongada obediência; o que por toda parte é obrigação de regra, aqui nada mais é que ponto de partida e movimento de abandono; o que por toda parte é longa usura e abuso, aqui nada mais é que apoio e oportunidade para crescer; o que por toda parte é confusão, aqui nada mais é que a grande aventura a apresentar-se no horizonte”3. Esse trecho de Péguy, que convido a todos a meditarem novamente, descreve o clima que deve ser criado em nossos grupos de Fraternidade. Ninguém julgue a si mesmo, nem muito menos aos outros, mas cada um volte a erguer seu olhar, seu rosto, para a presença de Cristo, como crianças que olham para sua mãe. Ninguém julgue a si mesmo ou aos outros, mas é justo que a imagem ideal arda no coração e volte todas as manhãs a impelir nosso barco sobre as ondas. Assim, esse trecho de Péguy deve realmente estabelecer, indicar, como que uma meta de amizade ideal, de convivência ideal; deve indicar o horizonte de uma humanidade real e concretamente diferente na maneira de pensar, de sentir, de comportar-se. É para percorrer este caminho que nós os convidamos a unirem-se – a unirmo-nos.
Anteontem à noite, numa reunião em Milão, eu observava que nestes anos, mais ou menos de quinze anos para cá, em todos os anos de nosso caminho, é como se Comunhão e Libertação, o Movimento tivesse construído sobre os valores que Cristo nos trouxe. Assim, todo o esforço de atividade associativa, operativa, caritativa, cultural, social, política teve certamente como finalidade mobilizar a nós mesmos e às coisas segundo os ideais, os princípios de valor que Cristo nos deu a conhecer. Mas não foi assim no início do Movimento. Como ontem mencionei, nos primeiros anos, no início do Movimento, não se construiu sobre os valores que Cristo nos trouxe, mas sobre Cristo, o quanto ingenuamente quiserem, mas o motivo condutor do coração, o motor persuasivo era o fato de Cristo, e por isso o fato de Seu corpo no mundo, o fato da Igreja.
No início se construía, se procurava construir sobre algo que estava acontecendo, não sobre os valores introduzidos e, portanto, sobre nossa inevitável interpretação de tais valores: procurava-se construir sobre algo que estava acontecendo e nos tomara. Por mais que fosse ingênua e exageradamente desproporcional, essa era uma posição pura. Por isso, o fato de tê-la de certa forma abandonado, alinhando-nos numa posição que antes de mais nada, eu quase diria, foi uma “tradução cultural” mais que o entusiasmo por uma Presença, significa que nós não conhecemos – no sentido bíblico do termo – Cristo, nós não conhecemos o mistério de Deus, pois ele não nos é familiar.
Cristo razão da existência, Cristo motivo de nossa criatividade, não mediado por nossa interpretação, mas como algo que irrompe em nossa vida: fora dessa segunda posição, não existe outra que possa ser cristã. Todo o resto – a mobilização da existência e a criatividade – virá depois, mas Cristo como razão da existência e motivo da criatividade deve ser recuperado. É como um desejo apaixonado de recuperar a pureza original da vida do nosso Movimento, que muitíssimos desconhecem: talvez seja mais conhecida graças à simples tradição cristã que receberam de seus pais do que à simplicidade imediata de uma comunicação feita entre nós. Foi em razão dessa mudança que se tornou tão fácil identificar nossa experiência com um empenho ativista, organizativo ou cultural, por vezes definido e conduzido de maneira tão exclusivista e autoritária.
Quisemos, com a Fraternidade, convidar a uma forma de empenho que mirasse, em primeiro lugar, a uma ajuda ao coração de cada um, uma ajuda a que cada um caminhe diante de Cristo, e, em segundo lugar, à garantia de pessoas que construam a obra do Movimento com uma maturidade de fé cada vez maior, portanto de forma criativamente mais segura. Toda a energia, todo o esforço, tantas e tantas vezes doloroso, que muitíssimos de vocês empregam, doam, submetem, por seu serviço ao Movimento, não pode deixar de ser sustentado. Vocês têm de ser ajudados mais diretamente, no fundo de seu coração, na raiz pela qual sua pessoa se empenha com esse esforço. Quisemos, enfim, chamar os adultos que quisessem, chamamos os adultos que quiserem, a uma ajuda mais diretamente pessoal, que garanta, justamente por isso, uma presença mais livremente madura na vida do Movimento.
Seja como for, hoje, de modo descritivo – como ontem à noite foi vindo à tona, a partir de um diálogo com o Conselho Executivo da Fraternidade –, gostaria de precisar algumas coisas sobre a maneira como a figura da Fraternidade é concebida com base no Estatuto aprovado pela Santa Igreja. Estamos no início de um caminho, também enquanto consciência do que esse caminho significa, daquilo em que consistem os passos que damos. Será uma companhia, será o caminho que mostrará o que se deve imaginar, pensar ou compreender de tudo isso. Este é um início, por isso não nos deixemos confundir pelo que ainda não nos parece claro, pela maneira como as relações, especialmente com a vida do Movimento, podem parecer preocupantes, não suficientemente distintas ou não suficientemente unidas. Não nos preocupemos com isso, estejamos realmente preocupados em captar o ponto central de nossa iniciativa, de nosso empenho. E o ponto central é aquele de que falei antes: uma ajuda ao nosso coração, para que nossa vida caminhe diante de Cristo. Tudo o que está implicado na maneira como a Fraternidade orienta esse esforço se esclarecerá com o tempo.
Portanto, a Fraternidade tem por objetivo proteger, encaminhar e sustentar a vontade daqueles que pretendem empenhar-se com a experiência do Movimento até o fundo. Assim, nada mais é necessário senão isto: pessoas que queiram empenhar-se com a experiência do Movimento até o fundo, ou melhor, que reconheçam na experiência do Movimento o empenho de sua fé, o empenho de sua consciência de homens e de cristãos. Digo a experiência do Movimento, pois ela é aquilo que indiquei antes por meio daquela breve referência histórica: será justamente no fato de nos reunirmos, nas cartas que trocarmos, nos relacionamentos que estabelecermos que a experiência do Movimento encontrará sua clareza e profundidade. Portanto, qualquer um que tiver esse desejo pode entrar na Fraternidade, como afirma o artigo quinto do Estatuto: são membros aqueles “que se comprometem a viver plenamente o espírito da Fraternidade, tanto na substância quanto na forma”.
A substância da vida da Fraternidade é aquilo que eu apontava há pouco: tornar real o Hino das Laudes, criar ambientes humanos nos quais a certeza do Benedictus se torne realmente não apenas uma parte das Laudes da manhã, mas um motor para a vida, o horizonte da vida, o que determina o coração da vida. A forma da Fraternidade é a nossa companhia, é a companhia. Essa companhia é, antes de mais nada, a Fraternidade enquanto tal. Pois não se fala “das” Fraternidades, senão impropriamente: “a” Fraternidade é que foi reconhecida pela Santa Igreja. A Fraternidade normalmente se especifica a partir de uma livre escolha de seus membros, que se constituem em grupos de amigos. Normalmente, como norma, a Fraternidade se realiza a partir ou dentro de grupos de amigos que se constituem livremente. Por exemplo, o “Teatro dell’Arca”, de Forli (que já preparou uma nova peça Norwid-Chopin4), é o ponto de partida para uma Fraternidade. Ou então, como diz esta carta que me enviaram: “Caríssimo padre Giussani, somos um grupo de professores que este ano procurou viver uma experiência de Fraternidade. O impulso inicial para nos reunirmos foi o desejo de tornar acessível a nossos alunos a experiência do Movimento, mas depois nos demos conta de que isso não bastava, ou melhor, implicava muito mais: a totalidade da nossa pessoa na companhia entre nós. De fato, o desejo da verdade de nós mesmos começava a definir nossa vida, a ponto de fazer com que o Movimento enquanto tal fosse nosso único horizonte educativo, e também das pessoas que encontrávamos”. Esse é um segundo ponto de partida: são professores dentro de um certo ambiente que, pelo motivo já dito, constituíram-se em Fraternidade. Mas pode ser que pessoas queiram formar uma cooperativa agrícola e viver essa iniciativa como ponto de partida para algo mais profundo entre elas, de maneira mais determinada e definitivamente humana. Ou então podem ser amigos de família ou pessoas que participam de uma diaconia (um grupo de responsáveis do Movimento; nde), que, como as que formam uma cooperativa, perguntam umas às outras: que quer dizer para nós este afã “diaconal”, que nos torna “administradores” desta comunidade, de todas estas pessoas pelas quais, como poderíamos dizer, consumimos tempo e sangue? E nós? Afinal de contas, para conduzi-las, para dar um bom testemunho a elas, nós em primeiro lugar deveríamos viver! Comecemos nós a viver! E assim constituem uma Fraternidade.
Os pontos de partida para esses “coágulos” em que a Fraternidade se realiza podem ser os mais variados possíveis. Poderia haver uma Fraternidade na qual uma pessoa mora em Veneza, duas em Údine, uma em Messina e outra em Palermo. Poderia até haver uma Fraternidade assim. O ponto de partida ou o motivo ou a matéria, o material em razão do qual essa forma profunda é desejada e vivida como tentativa pode ser qualquer um – qualquer um!
Eis por que qualquer pessoa, livremente, pode apresentar o pedido de inscrição, que deve, porém, ser aceito pela Diaconia Central (da qual falaremos depois), que procurará assegurar-se sobre as pessoas que fazem a solicitação. A responsabilidade do pedido é pessoal.
A verdadeira amizade deve ser a característica de semelhantes solidariedades, pois a verdadeira amizade é uma companhia ao destino, ou seja, a Cristo. A amizade é definida pelo objetivo pelo qual as pessoas estão juntas, pelo objetivo do qual nasce a amizade. A verdadeira amizade, a amizade vivida pelo homem que é tocado até o coração, é uma companhia ao destino. Por isso, a amizade dos grupos da Fraternidade é educativa, é, digamos, ascética, pois quer ser como um leito de rio que conduza à verdade de si, ou seja, que conduza a uma relação verdadeira com Cristo. Neste sentido, uma amizade como essa se torna uma espécie de regra de vida, uma regra para a fé pessoal.
Chegando a este ponto, sinto a necessidade de dizer duas coisas (uma eu já disse, mas a repito como segunda coisa). A primeira é que não negamos, diante da seriedade que tentamos viver e proclamamos, a dificuldade. Mas – eis a segunda coisa, que repito – não tenham medo: o que precisamos ter realmente é o desejo de empenhar nossa vida na experiência que conhecemos (não na organização do Movimento, mas na experiência que conhecemos), e tão somente isto. Não é para menos que a Santa Sé, a Igreja, reconheceu o aspecto maduro do empenho com essa experiência, reconheceu essa experiência em seu empenho mais maduro e mais livre, que é a Fraternidade. Por isso, diante do Senhor, o que precisamos ter é o desejo real de empenho com Ele, segundo a graça que nos foi dada, segundo a graça da experiência que nos foi dado tocar.
É inútil por ora chamar a atenção para o fato de que uma companhia como essa precisará antes de mais nada – “antes de mais nada” no sentido realmente material do termo – ter capacidade de perdão, ou seja, como sempre digo, ter capacidade de abraçar o que é diferente. Vocês, que vivem como marido e mulher, é que deveriam ensinar isso a mim: a primeira e fundamental característica, a primeiro e fundamental peculiaridade de uma convivência, tanto mais quanto mais for estreita, é o perdão. Será preciso, portanto, ter a capacidade de acolhida do que é diferente, ou seja, a capacidade de correção, que é a consciência explicitada de estar em caminho, de ter um destino, e, portanto, uma ajuda a aprofundar a consciência, uma ajuda ao aprofundamento do conhecimento e da consciência. Perdão, correção, aprofundamento da consciência. Esses são certamente os dotes mais necessários para uma companhia como a que a Fraternidade implica.
Como conseqüência mais evidente do que essa amizade quer ser – ou seja, empenho com Cristo segundo a experiência que conhecemos, segundo a graça que nos foi dada – deve-se estabelecer uma solidariedade real entre todos os membros. “Vós todos que fostes batizados em Cristo vos identificastes com Cristo. Não há mais judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher, pois todos vós sois um só, em Cristo Jesus”5. Este, que é o mistério de toda a Igreja, deve começar a tornar-se mais visível, deve começar a demonstrar-se, a manifestar-se nas circunstâncias em que pessoas foram tão recobertas e enriquecidas de graça como nós. Comecemos nós a torná-lo visível! Essa é a Fraternidade, esse é o grupo de Fraternidade.
É uma solidariedade não sentimental. A sentimentalidade tem e demonstra sempre, como característica, uma origem ambígua: pretende abordar, abraçar a pessoa, mas de um ponto de vista parcial, de um ponto de vista instrumental. Uma solidariedade é real e não sentimental quando o motivo, a razão que a determina é a pessoa em sua totalidade, ou seja, a pessoa no seu destino. Este é o único ponto inteiro. Nem entre marido e mulher há solidariedade! Sinto-me no dever de dizer isso, por causa da atenção que normalmente as pessoas têm quando vivem apaixonadamente uma convivência: há um embaraço último até mesmo entre marido e mulher.
Portanto, é uma solidariedade não sentimental, que abarca a totalidade da pessoa, ou seja, a pessoa no seu destino: trata-se de afirmar o destino dessas pessoas que estão comigo. Como é ainda distante e abstrata, para nós, essa percepção nos relacionamentos! E, sem essa percepção nos relacionamentos, nós somos desumanos, somos “infra-humanos”. Há, como poderia dizer, um instinto de conservação, de auto-defesa da nossa natureza, que corrige um pouco essa distração que temos uns para com os outros. Caso contrário, ela seria total – pois nossos relacionamentos são inexoravelmente sentimentais e instrumentais, inexoravelmente parciais!
Por sua natureza, a responsabilidade da Fraternidade é totalmente daqueles que a vivem – totalmente! Em particular, a Fraternidade, o grupo de Fraternidade, é absolutamente independente da estrutura do Movimento. Reparem, por favor, que não é independente do Movimento, mas sim o vértice e o coração do verdadeiro Movimento, da verdade do Movimento. A estrutura do Movimento é um inteligente, laborioso e generoso instrumento de serviço. O Movimento é a experiência do homem, e portanto uma trama social de pessoas que vivem essa experiência. Por isso, a Fraternidade é como que o ponto culminante do Movimento e, ao mesmo tempo, o coração ou a raiz do Movimento. Como dissemos ontem, essas solidariedades são a primeira concretização verdadeira, madura, do Movimento.
Cada grupo é tão autônomo, que decide sua própria regra. Nós, por guiarmos a Fraternidade, pedimos que sejam preservados três pontos, três fatores nessa regra (façam-na como quiserem, mas estes três pontos têm de ser preservados): primeiro, a oração; em segundo lugar, como símbolo e sinal de pobreza, a adesão, a participação do fundo comum da Fraternidade (como diremos depois, de maneira mais detalhada); e, terceiro, uma obediência última à Diaconia Central que dirige a realidade da Fraternidade e é responsável por ela perante a autoridade eclesiástica, perante a Igreja. A Diaconia Central é responsável por todos os grupos perante a Igreja, por isso pedimos uma obediência última a ela. Insisto na expressão “obediência última a ela” porque, evidentemente, dado e dito o que especificamos antes, não é que a Diaconia poderá pretender entrar nos detalhes ou na prática da vida de Fraternidade que vocês vivem, a não ser para indicar um caminho de ascese em sintonia com a experiência do Movimento, ou então para corrigir, se existirem, erros gritantes. É como uma salvaguarda, por um lado, e uma orientação, uma diretriz ideal, por outro.
Seguindo a tradição educativa do Movimento, é bom – do ponto de vista da ascese, justamente – que cada grupo tenha, indique uma pessoa que desenvolva, pelo tempo que o grupo estabelecer, uma ação de chamado de atenção, de “coágulo” e de serviço aos outros, ou seja, um responsável. Digo “seguindo a tradição educativa do Movimento” porque é parte importante da nossa imagem educativa a presença de uma função de autoridade reconhecida.
É desejável que cada grupo tenha um padre, como membro do grupo ou referência para conselho e ajuda. O padre está presente na Fraternidade como fiel, como pessoa batizada. Por isso, é muito significativo o fato de que tantos sacerdotes do Movimento dêem atenção à Fraternidade, a ponto de eles também sacrificarem dois dias, um fim de semana, para virem a este encontro: é sinal de que entendem bem a nossa experiência, é como se nela se sentissem reconduzidos à origem de toda a sua figura, inclusive de seu magistério sacerdotal, pois o fundamento, também do ministério sacerdotal, é a fé, é o meu batismo. Neste sentido, o padre, não importa as responsabilidades que tenha, é como qualquer outro membro da Fraternidade (num grupo de Fraternidade pode até haver três, quatro padres). De qualquer forma, o que eu queria observar é que é bom que cada grupo de Fraternidade determine um sacerdote ao qual recorrer para obter conselho espiritual e ajuda. Obviamente, o critério para determinar esse sacerdote é que ele tenha uma inteligente e cordial sintonia, identificação com a experiência do Movimento (não é preciso necessariamente que seja do Movimento, pois pode haver padres tão cristãos a ponto de compreenderem o valor e a originalidade de uma experiência despertada pelo Espírito, pondo-se à disposição para uma ajuda capaz de identificar-se com essa experiência).
Logo voltaremos a esse chamado de atenção à figura do padre. A Fraternidade enquanto tal assegura uma ajuda espiritual por meio da organização de retiros periódicos. Não é que todos sejam obrigados a ir: vá quem quiser, pois espero que esteja bem claro o quanto tudo isto tem a marca da liberdade absoluta. Só o que nasce da liberdade absoluta permanece na história, constrói. A criatividade vem da liberdade.
A Fraternidade enquanto tal assegura uma ajuda espiritual por meio de retiros periódicos. Estes desenvolverão determinado conteúdo teológico e ascético, segundo a inspiração da nossa experiência, referindo-se particularmente aos tempos litúrgicos, como nos indica o Decreto [de reconhecimento da Fraternidade; ndt].
Único ponto de referência objetivo (todo o resto é deixado a cargo da vida dos grupos), o retiro pode ser feito por um grupo individualmente – o grupo pode organizar meio dia de retiro para seus membros –, mas essa iniciativa deve ser sempre informada ao responsável regional. O retiro pode ser feito por um grupo individualmente ou por vários grupos juntos, como parecer mais oportuno. Por exemplo, poderá parecer mais oportuno que haja um retiro por região, para todos os grupos de uma região. Porém, se um grupo quiser fazê-lo com seu padre, que o faça. Em todo caso, esses encontros deverão ser guiados por sacerdotes que os prepararão comigo. Periodicamente me encontrarei com os sacerdotes que guiam os retiros para aprofundarmos juntos a orientação teológico-ascética que esses retiros deverão comunicar a vocês, segundo a linha do Movimento.
Mais livres que isso, impossível! Mas também, mais profundamente inseridos na experiência do Movimento que isso, impossível.
Os grupos, tendo-se entendido com o responsável regional, poderão propor-me nomes de sacerdotes para essa tarefa. Um grupo diz: “Quero fazer o retiro com padre tal”, e aí me informa o nome desse sacerdote, diretamente ou por intermédio do responsável regional. Ou, então, cinco ou seis grupos que queiram fazer um retiro, uma região que queira fazer um retiro, me indicam um sacerdote.
Quem não faz parte de nenhum grupo combinará com o responsável regional a participação de um desses retiros. Dado que é o indivíduo, a pessoa, que participa da Fraternidade, há muitas pessoas que ainda não estão num grupo. A indicação é que se procure entrar num grupo, mas, ao menos no que diz respeito ao retiro – a única coisa necessária, pois é preciso haver um ponto de referência –, quem não tem grupo pode ir a um dos retiros organizados, perguntando ao responsável regional de qual retiro participar ou confrontando com ele a escolha que fizemos de um dos retiros de que tivemos notícia.
Mais livres que isso, impossível! Mas também, mais profundamente empenhados na experiência do Movimento que isso, impossível! Pois o que queremos, a obra que temos de realizar – a obra é parte do objetivo da Fraternidade, como vocês leram na carta que lhes enviei6 – é o Movimento. A obra que queremos realizar é que esta experiência de fé e de humanidade se difunda o mais possível, se aprofunde e se difunda o mais possível. Ora, o que esperamos da Fraternidade é que ela crie, eduque, amadureça um mundo de pessoas que colaborem com a difusão da experiência, ou seja, que edifiquem o Movimento. Pois o Movimento não é edificado pela organização, mas pela vida das pessoas. A organização é um instrumento, como o leito de um rio: o rio não é o leito, e sim a água que corre por ele. Neste sentido, a instituição da Fraternidade é na realidade um chamado à pureza total no empenho com o Movimento.
A relação com o Movimento é definida – unicamente – pelo fato de que o amadurecimento ascético da própria pessoa, o amadurecimento da nossa relação com Cristo não pode deixar de provocar um sentimento de maior responsabilidade e paixão pela vida do Movimento. Escrevem-me numa carta: "Peço-lhe que me ajude a entender bem, por favor, se é necessário ser de CL para participar da Fraternidade. Se é necessário ser de CL da maneira como o Movimento está organizado num certo local”. É uma questão delicada, que não vem de um único lugar, mas compreensível: somos homens, somos mesquinhos, somos grosseiros, somos possessivos, em nome da eficácia tornamo-nos menos eficazes, somos meia dúzia de gatos-pingados e conseguimos nos dividir para defender com unhas e dentes três opiniões diferentes; é humano, e devemos não esquecer nunca de confessar essas coisas, pois são pecados reais. Seja como for, a frase tem um equívoco: CL não é a organização local, mas a experiência de que falei. Por isso, não é necessário participar das coisas, tal como são feitas num certo lugar, para ser de CL, e, portanto, para ser da Fraternidade. Eu diria que quem é da Fraternidade é antes de mais nada de CL; sobretudo, quem é da Fraternidade é de CL! Por isso, mesmo que a organização de CL, no lugar em que vivemos, não apenas não satisfaça, mas seja contrária ao que consideramos bom senso, abertura, agilidade, não podemos ficar indiferentes. Rezaremos para que as coisas mudem, mas não faremos um “movimento” alternativo. De fato, não pode haver alternativas para a organização. Ou a organização enquanto tal, eu ou o Conselho Nacional de CL, destitui um responsável, ou então, organizativamente, o organismo não pode tolerar alternativas: é pior, torna-se um mal pior. A Fraternidade permite, primeiramente, viver a experiência de acordo com a liberdade do próprio temperamento e da própria história; em segundo lugar, criar obras: não uma organização diferente do Movimento, mas obras. Ninguém pode impedi-lo de criar uma cooperativa, uma filial do Touring Club ou uma iniciativa de caridade para com idosos da sua região, por exemplo. Ninguém pode impedi-lo, nem o chefe da Diaconia.
Gostaria que este ponto ficasse claro, pois não apenas não pode existir hostilidade ou alternativa entre a Fraternidade e a estrutura de CL, mas a Fraternidade é como um corretivo profundo, que agirá lentamente, em função de uma magnanimidade, de uma prontidão, de uma indulgência, de uma liberdade maior também dentro da organização. Devemos nos perdoar, antes de mais nada, como pertencentes a uma mesma experiência. Além do mais, é como se a Fraternidade cutucasse com uma espora, a Fraternidade é “marota”. De fato, imaginemos que uma Diaconia forme um grupo de Fraternidade e que outras pessoas, descontentes com a Diaconia, formem outro – isso é possível, ou melhor, é real. Vejam, eu não pretendo nada – conheço, por mim mesmo, o que é o homem, suas fraquezas, sua mesquinhez –, mas essas pessoas não podem pretender viver por muito tempo a Fraternidade se a caridade que deveria haver dentro de cada grupo de Fraternidade não buscar também a abertura, o perdão, a correção e o aprofundamento com a outra Fraternidade, pois o Movimento é um só, o Movimento real é uma coisa só! Não digo que a Fraternidade que não é da Diaconia tenha de ceder à Diaconia, pois pode até ser que tenha razão, quem vai saber? Quando se vive a liberdade, a correção é mútua – pois a correção, “sustentar-se juntos”7, é impossível fora da liberdade.
Estou certo de que vocês ainda estão longe de ter percebido o grandioso amor à liberdade e a grandiosa paixão pela verdade que o Movimento produz. O Movimento tem uma tal paixão pela verdade que tem, como conseqüência, uma inevitável paixão pela liberdade: do contrário, ninguém teria vindo há trinta anos. Então, ai de quem utilizar a Fraternidade para excomungar uns e outros, para vingar-se contra a instituição (CL, enquanto organização) ou para oprimir aqueles que não aderem às suas pretensões organizativas.
Meus amigos, diante de Cristo – tal como nos é anunciado na história de Seu corpo, que é a Igreja, e que é o coração do conteúdo de nosso Movimento – é impossível não irromper um abraço comum, mesmo continuando a existir todas as diferenças (se há diferenças entre marido e mulher, imaginem se não vão existir entre outras pessoas!). Mas as diferenças não devem se tornar a marca distintiva das nossas relações, pois o perdão é a aceitação da diferença: o perdão é a primeira característica fundamental da relação entre Deus e nós – que se chama misericórdia –, por isso é a condição primeira para as relações entre os homens, entre homem e mulher, entre as pessoas. A condição primeira é o perdão, não a atratividade. Pois o atrativo – como diz meu caríssimo amigo Leopardi8 – está por trás do rosto, é algo que está por trás do rosto.
Continua a carta citada: “Para nós, dizer que as Fraternidades estão a serviço da organização local de CL significa dizer que os membros da Fraternidade são obrigados a trabalhar nas obras que já existem”. De jeito nenhum! As Fraternidades estão a serviço do Movimento; mas, como todo serviço ao Movimento, este passa pela liberdade daqueles que o vivem, daqueles que vivem a Fraternidade, nos lugares em que esta está presente. Dizer que a Fraternidade está a serviço do Movimento não significa dizer que os membros da Fraternidade são obrigados a trabalhar nas obras que já existem: os membros da Fraternidade, à medida que amadurecerem, superando reservas, resistências, etc., procurarão olhar com a maior benevolência possível para o que já existe, procurarão, nos limites do possível (do possível também do ponto de vista psicológico), dar uma mão ao que já existe, mas podem também fazer outras coisas, podem querer fazer outras coisas e, sobretudo, podem não estar de acordo a respeito de certas maneiras de fazer as coisas, e então vão se dedicar a outras. Mas todos deveriam estar contentes, tanto os membros da Fraternidade quanto os outros, pelo fato de a fé sugerir uma criatividade múltipla, multiforme.
Vejam bem que o ideal não é esse, ou melhor, procurem estar atentos a tudo o que digo, pois não pode haver um grupo de Fraternidade que admita ou alimente um ressentimento em relação a outros grupos ou às pessoas que guiam o Movimento em seu ambiente, em sua cidade: que raio de maneira de viver seria essa? Pode haver um grupo de Fraternidade que, mesmo amando verdadeiramente o Movimento e desejando colaborar com o Movimento local com toda a boa vontade, não se sinta realmente de acordo a respeito de algumas coisas; nesse caso, esse grupo procurará conversar, dialogar. Mas vejam bem: acima de tudo, a iniciativa, a maneira de agir deve ser livre!
Pode, por exemplo, ser função da Diaconia Central pedir a todos os grupos da Fraternidade que prefiram ajudar uma determinada obra, em vez de empenhar-se na criação de obras próprias. Pode-se tratar de uma medida inteligente, à qual se deverá obedecer. Mas tal medida deve certamente ser tomada com extremo discernimento.
Leio agora velozmente duas notas, uma sobre a Diaconia Central e outra sobre o fundo comum.
É oportuno precisar que a única autoridade dentro da Fraternidade é a Diaconia Central. Compete a ela não apenas designar as pessoas às quais confiar as responsabilidades de maior relevância em nossa Associação, mas também e sobretudo estabelecer as diretrizes para a vida da Fraternidade. Esta última tarefa pertence de maneira exclusiva à Diaconia Central, uma vez que os órgãos regionais (Responsável Regional e Diaconia Regional) limitam-se a traduzir às comunidades da Associação de sua região as diretrizes da Diaconia Central (como diz o Estatuto da Fraternidade).
Leio tudo isso para que todos o saibam, mas o importante é o que eu disse antes. Nós aprenderemos estas coisas à medida que caminharmos, mas a maior e mais importante é a finalidade pela qual nos reunimos.
Dada a importância da Diaconia Central, vale a pena descrever sinteticamente sua estrutura. Podemos lembrar que a Diaconia Central é composta pelos responsáveis regionais, pelos responsáveis pela atuação nos diversos ambientes (um para a escola, um para a universidade, um para o mundo do trabalho, um para a vida na cidade, um para o mundo da cultura) e por certo número de membros convidados. Os responsáveis regionais representam, por assim dizer, o trâmite regular da relação entre os membros da Fraternidade e a Diaconia Central (o responsável regional exerce uma função de serviço, de trâmite entre cada grupo e a Diaconia Central).
Enfim, a última nota, sobre o fundo comum. Todo inscrito na Fraternidade compromete-se a contribuir para a formação desse fundo, destinado às exigências da nossa companhia, com um percentual livremente estabelecido da própria renda anual. Participar do fundo comum é um gesto ao mesmo tempo obrigatório e livre: obrigatório, pois todos os membros da Fraternidade devem participar dele; livre, absolutamente livre, do ponto de vista da quantia com a qual contribuir. Essa quantia deve ser entendida como percentual da própria renda, por isso como símbolo e sinal da pobreza, ou seja, do fato de que nossas coisas não são nossas, mas nos são dadas por Deus para que as administremos. A pobreza não é não ter nada para administrar: a pobreza é administrar tendo como finalidade suprema que tudo esteja em função do Reino de Deus, em função da Igreja. O sinal de que concebemos toda a nossa vida – inclusive o dinheiro e as coisas que possuímos – em função do Reino de Deus está em participar do fundo comum da Fraternidade.
Por via de regra, o fundo comum será utilizado para os seguintes fins: garantir os instrumentos necessários à organização da vida da Fraternidade; apoiar importantes e significativas atividades missionárias e culturais do Movimento (pois para nós a atividade cultural é aquilo que dá força à nossa experiência); socorrer as mais sérias situações de necessidade que vierem a ser assinaladas à Diaconia Central.
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Antes de concluir, gostaria de chamar a atenção mais uma vez para o fato de que a Fraternidade foi criada para ser ajuda no caminho do conhecimento verdadeiro de Cristo. A Fraternidade dará essa ajuda se participarmos dela com obediência. Parte essencial dessa obediência é a oração. Uma pessoa me escreveu, num bilhete, citando o livro O senhor do mundo, de Robert Hugh Benson: “Os cristãos tiveram a força para agir, mas não para ter paciência”. A meu ver, é uma observação muito importante, pois a pessoa não se torna adulta sem essa segunda força. Por isso, se você passa por um momento em que seu espírito e seu coração estão incomodados, essa é uma provação que o Senhor o faz atravessar; e se você se uniu a esta companhia, é porque espera ser ajudado por ela, da mesma forma como nós esperamos ser iluminados pelo esforço que você faz. Durante a provação, há uma coisa a fazer, graças à qual você pode muito bem não perder tempo, que é pedir a Deus. Essa é a única coisa que, no fundo, deveríamos fazer sempre.
Quanto ao responsável pelo grupo de Fraternidade, este tem uma função de chamado de atenção, de coagulação, ou seja, de solicitação à solidariedade. Pode acontecer, é muito provável que aconteça, que o grupo escolha para essa função aquele que tem maior autoridade pessoal, mas não necessariamente, pois essa função tem um duplo valor: primeiro, o de serviço, pois a pessoa deverá, entre outras coisas, telefonar aos membros do grupo e dizer: “Façamos a reunião”, e no final, em meio ao debate geral, quando estiverem cinco contra cinco, dirá: “Não, façamos assim”; mas – em segundo lugar – o fato de haver uma certa dependência tem também valor ascético. Mais do que isso eu não posso dizer, pois entraríamos num detalhe pietista, moralista. Não estamos num convento, somos leigos no mundo. Mas, vejam bem, por favor, que uma regra para leigos no mundo, como é a Fraternidade, aplica os valores ascéticos do convento à nossa vida, pois depender de uma pessoa, ainda que incomode, pode ser um aprofundamento do maior sentimento do homem, que é a dependência de Deus, ou seja, pode educar à consciência do ser como dependência. Só que isso não pode ser aplicado mecanicamente. Num convento, há regras que regulam até o comando, quem comanda. Por isso, trata-se simplesmente de uma questão de princípio, de um ponto de dependência última na vida do grupo. No caso do grupo de Fraternidade, a questão é como uma sanfona: um pode viver cem e outro pode viver um, um pode estar em condições de viver cem e outro, pelas condições em que está, pode ter de viver um.
Vejam que faço isso, literalmente, tanto por mim quanto por vocês. Se penso em dizer estas coisas é porque eu mesmo sinto esta necessidade; pensei em dizê-las porque senti eu mesmo a necessidade dessas coisas. Não podemos sentir o que está no íntimo de outro homem, as coisas que têm valor para outro homem, quando não as percebemos em nossa própria personalidade humana.
Nada ajuda tanto uma pessoa a percorrer seu caminho quanto o fato surpreendente de que outras pessoas aceitam compartilhá-lo com ela: é uma coisa do outro mundo! Por isso, vivam também entre vocês esta simplicidade. As pessoas a quem mais devemos agradecer são aquelas tantas entre vocês, ou vocês mesmos, quando sabem viver o anúncio do Movimento com seriedade e simplicidade profunda, como estes dois recém-casados que vieram para cá em sua viagem de lua-de-mel.
Sendo assim, peço-lhes, para terminar, que venham, que venhamos a ter confiança uns nos outros: demo-nos crédito, pois, se somos 1.800, isso não é diferente de sermos três ou quatro; somos realmente como uma família. Neste sentido, rogo a vocês – pois ponho isto antes de todo o resto da minha responsabilidade no Movimento – que me façam saber de questões, sugestões, confidências de situações, tendo, de antemão, a necessária paciência, pois o tempo é curto.
Notas:
[1] Preces das Laudes de domingo. In: O livro das horas. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1998, 4ª ed., p. 22.
[2] “A aurora resplende de luz”, Hino das Laudes de domingo. In: Op. cit., pp. 16-17.
[3] Cf. Charles Péguy. “Prece de residência”. Publicação em francês e português. In: 30Dias nº 9, outubro de 1992, pp. 66-73.
[4] O grupo teatral “Teatro dell’Arca” nasceu em 1973 na cidade italiana de Forli, formado por jovens do Movimento de CL movidos pelo desejo de dar forma e expressão à plenitude de vida que o encontro com Cristo suscitava e alimentava. As peças Norwid-Chopin, aqui citadas, inspiravam-se nas obras do escritor Cyprian Kamil Norwid (1821-1883) e do pianista e compositor Frédéric Chopin (1810-1849), ambos poloneses.
[5] Cf. Gl 3, 27-28.
[6] Cf. “Carta aos novos inscritos à Fraternidade”. In: Comunhão e Libertação. Um movimento na Igreja. São Paulo, Sociedade Litterae Communionis, 1999, pp. 99-103.
[7] Em italiano, “reggersi insieme”. Tanto o verbo português reger quanto o italiano reggere derivam do latino regere, mas apenas o italiano herdou do latim o significado de “sustentar”, “suportar”. Por isso há, no texto original, uma analogia imediata entre co-reger/corrigir e reger-se juntos.
[8] Giacomo Leopardi, 1798-1837, poeta italiano; ndt.