Cristão, ou seja, discípulo de Cristo

Igreja - Relação de Abertura
Julián Carrón

Propomos alguns trechos da relação de padre Julián Carrón que abriu os trabalhos do Congresso, em Bogotá


O aspecto mais urgente do momento atual é a permanência da fé. Cada vez somos mais conscientes de que a pergunta de Cristo não é em absoluto retórica. Existe um risco real de perda da fé, da percepção de seu significado para a vida, um risco real de que a fé em Cristo seja cada vez mais insignificante para a vida de tantas pessoas. (...)
Hoje somos mais conscientes da verdadeira natureza da crise. Não basta falar de Nova Evangelização sem se perguntar pelo sujeito que a levará a cabo. Seria ilusório dá-lo por óbvio, pois são tantos os homens e mulheres da América Latina que acreditam já saber o que é o cristianismo e não têm curiosidade de conhecê-lo. Por isso não é suficiente uma estratégia propagandista para atraí-los à fé, nem sequer um pouco mais de formação ou de vida interior. Há de se começar por despertar o interesse por Jesus Cristo e seu Evangelho. (…)
Para isso contamos com um aliado. Todas as dificuldades que o homem de hoje vive não conseguem arrancar de seu coração a espera de sua plenitude humana. É a própria natureza do coração que nos impulsiona a esperar, mesmo se as dificuldades de encontrar resposta nos fazem duvidar da real possibilidade de um êxito positivo. O homem de hoje se interessará pela proposta cristã, se a perceber como uma resposta significativa ao grito que surge espontaneamente da sua necessidade humana. O desafio que devemos enfrentar no anúncio, consiste, portanto, em viver o conteúdo da fé de modo que chegue à sua relevância antropológica, isto é, à sua superabundante resposta às exigências próprias do coração.
O desinteresse de que estamos falando não afeta somente a fé cristã, afeta a toda realidade. O verdadeiro alcance da encruzilhada em que nos encontramos o identificou eficazmente a filósofa espanhola Maria Zambrano: «O que está em crise é o nexo misterioso que une nosso ser com a realidade, algo tão profundo e fundamental que é nosso íntimo sustento». Se a realidade é o sustento do eu, não resulta difícil compreender a gravidade da situação quando é o próprio nexo com a realidade o que está em crise. Sem a relação com uma realidade que suscite o interesse da pessoa, a conseqüência inevitável é a ausência do desejo. O nada não desperta nenhum interesse. Este é o niilismo hoje tão difundido. (…)
O eu se desperta pela atração da realidade. Surpreendemo-nos interessados quando nos aparece diante algo que nos fascina e atrai, tirando-nos de nossa apatia. Como nos lembrou Fides et Ratio, a aventura humana nasce da maravilha suscitada no homem pela realidade: “o ser humano se surpreende ao descobrir-se imerso no mundo, em relação com seus semelhantes com os quais compartilha seu destino”. Se nascêssemos neste instante com a consciência que temos agora e ao abrir pela primeira vez os olhos a primeira coisa que víssemos fosse o Everest, estaríamos dominados pela maravilha, ficaríamos fascinados pela presença da realidade. (...)
Mas não ficamos imobilizados diante da imponência da realidade; mas sim, ao contrário, é sua presença que nos põe em movimento. (…)
De fato, se o homem não interrompe o dinamismo que a realidade põe em movimento nele, se não se separa de si mesmo cortando seu vínculo com ela, o homem é inevitavelmente chamado a dar uma resposta a sua pergunta sobre a totalidade, porque quanto mais o homem se indaga sobre a realidade, mais faz experiência do mistério. (…)
Interromper a dinâmica colocada em movimento pela realidade, tem como conseqüência a perda da melhor parte da própria realidade, que leva sempre à profundidade além da aparência, e a vida desfalece entre as mãos (…)
Somente Deus responde às exigências de totalidade do coração humano. (…)
Uma “religiosidade vaga” não é capaz de despertar o sujeito. O exemplo mais clamoroso são as seitas: elas não são capazes de despertar a razão e a liberdade do homem que as freqüentam, a ponto de gerar uma mentalidade e um afeto novos. É como quando a pessoa fica a espera da revelação do rosto da pessoa amada: até quando é desconhecido, a pessoa se comporta como quer. Somente quando a pessoa amada aparece, o homem tem a clareza e a energia afetiva necessárias para uma adesão que implique todo o seu eu e que permita ao homem “existir” verdadeiramente com todo o seu ser. Por isso Montale tem razão quando disse: “Um imprevisto é a única esperança”.
O imprevisto aconteceu em Jesus Cristo, o Verbo encarnado. Com Ele, o Mistério entrou na historia se convertendo em companhia ao homem e se propondo como resposta a sua exigência de felicidade: quem Lhe segue terá o cêntuplo e a eternidade (cf. Mt 19, 29). O homem de hoje se interessará pelo cristianismo se este cumpre a promessa com a qual se apresenta e consegue tirar a pessoa do letargo em que se encontra. É no terreno da realidade onde o Mistério é chamado a mostrar sua verdade. Se aqueles que entram em contato com ele não experimentam a novidade que promete ficarão decepcionados.
A desgraça é que muitos daqueles que ainda se aproximam da Igreja em busca de uma resposta, encontram-se diante de versões redutivas do cristianismo. (…)
Para muitos cristãos o cristianismo é mais nocional que real: um conjunto de noções tradicionais sem referência à vida real. Podemos imaginar que interesse poderá ter este cristianismo reduzido a marco nocional tradicional para o homem que anda entre o real, que se debate com o drama de viver o cotidiano. (…)
A falta de experiência pessoal do acontecimento cristão torna o homem incapaz de compreendê-lo. (…)
Como recentemente nos lembrou o Papa Bento XVI, “a verdadeira originalidade do Novo Testamento não consiste em novas idéias, senão na figura de Cristo, que da á carne e sangue aos conceitos: um realismo inaudito”. No lugar de noções abstratas o drama de um Deus que em Jesus Cristo se envolve com a humanidade doente até dar sua vida por ela. (...)
Outro erro que tem grande difusão entre nós é o da redução do cristianismo a ética, a valores. Tem sido uma tentação antiga. Santo Agostinho já reprovava os pelagianos: “Este o horrendo e oculto veneno de vosso erro: que pretendeis fazer consistir a graça de Cristo em seu exemplo e não no dom de sua Pessoa”. Porém, aqueles que no passado eram casos isolados, hoje se tornaram mentalidade bastante difundida devido às vicissitudes históricas da época moderna. (…)
Isso é demonstrado pelo fato que Bento XVI, recentemente, tenha reconhecido que “a idéia genericamente difusa é que os cristãos devem observar uma imensidão de mandamentos, proibições, princípios e que, portanto, o cristianismo é algo cansativo e opressivo de viver, que se é mais livre sem todos estes fardos pesados. Porém, eu queria esclarecer que ser sustentados por um grande Amor e por uma Revelação não é um fardo, mas sim ter “asas”.
Não foram nenhuma dessas duas versões, nocional ou ética, que despertaram o interesse pelo cristianismo há 2000 anos, ou há 500 anos para vós, nem o será agora para nós, nem para os nossos contemporâneos, e nem menos para aqueles que já se sentem cristãos. O cristianismo só será interessante se acontece algo imprevisto que carregue uma novidade à vida dando asas para viver. Como nos lembrou Bento XVI em sua primeira encíclica Deus caritas est: “Não se começa a ser cristão por una decisão ética ou uma grande idéia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva”. (…)
Nenhum argumento é capaz de convencer ninguém que Cristo ainda está presente, se este não O reconhece na sua experiência. (…)
Jesus não nega a liberdade a ninguém. É a promessa do cêntuplo que convence a segui-lo. Ninguém pode mudar o método que Ele mesmo escolheu. Por esta razão a comunidade cristã condensou nestas palavras toda a Tradição apostólica: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos, e o que nossas mãos apalparam do Verbo da vida, o que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos para que estejais também em comunhão conosco. E a nossa comunhão é com o Pai e com o seu Filho Jesus Cristo. E isto vos escrevemos para que a nossa alegria seja completa” (1Jo 1,1-4). A convicção certa da Igreja oferecia à razão e à liberdade daqueles que a encontravam como uma hipótese a verificar para que pudessem comprová-la e descobrir sua verdade, de tal modo que algum dia pudesse afirmar o que diziam as pessoas de seu povoado à samaritana que lhes havia falado de Jesus, atrás de sua verificação pessoal na convivência com ele: “Já não é por causa do que tu falaste que cremos. Nós próprios o ouvimos” (Jo 4, 42).
Sem correr o risco da liberdade, ou seja, da comprovação da verdade cristã na vida, não se alcançará jamais uma certeza digna da fé. Temos tido muito medo desta verificação da fé (…)
Não é estranho que muitas pessoas a abandonaram sem pensar que estavam perdendo algo interessante. Como é diferente a audácia de Jesus que aposta tudo na pura liberdade, desafiando os seus amigos quando todos o tinham abandonado! “Vocês também querem ir embora?” (Jo 6,67), lhes obriga a um empenho com a própria razão e liberdade.
Para poder levar a cabo essa verificação da tradição cristã hoje é necessário um requisito indispensável: que se possa encontrar Cristo no presente. (…)
Neste momento em que a deterioração do homem avança não existem instâncias verdadeiramente educativas em condições de gerar este sujeito, a Igreja tem a oportunidade de mostrar seu verdadeiro rosto, a potência da vida que corre por suas veias. Basta que não traia sua autêntica natureza e testemunhe o cristianismo como um acontecimento capaz de interessar o homem até lhe dar consciência de si e da realidade que o transforme em verdadeiro protagonista da história.

(Texto publicado em Passos n. 71, abril/2006)