Dom Giussani: “Eu sou zero, Deus é tudo”
ENTREVISTA COM DOM GIUSSANI
Você olha bem nos olhos dele e se pergunta: qual é o mistério de uma vida? Das vidas simples e das importantes. Mas importantes por quê? E baseado em quê? Na notoriedade pública? No número de seguidores? Nas obras realizadas? O sacerdote que encontramos certamente é famoso. Sem dúvida, está destinado a entrar na história religiosa do século XX. Pensar que milhões de pessoas gostariam de estar cara a cara com ele, de poder lhe dirigir uma pergunta, uma que fosse, nos deixa embaraçados. Você estica o olhar e distingue atrás dele uma multidão de jovens (e de pessoas já nem tão jovens), conscientes, e entusiasmados até as últimas conseqüências. E percebe imediatamente aquilo que, em termos não apenas técnicos, se chama carisma. Isso ele tem pra dar e vender, reconhecem até mesmo aqueles que se mantêm céticos diante da sua mensagem. Ainda mais hoje: velho e adoentado, ele é um todo único com o seu carisma, que o penetrou e foi por ele absorvido. Pensamos espontaneamente no elo de comunicação que o liga a seu Deus. Deve ser uma relação forte e contínua. Uma relação que, afinal de contas, é o traço secreto de todo “fundador”, especialmente nas épocas de desmonte das estruturas: eles bebem da Fonte aquilo que é fascinante e serve de sustento para as almas. Muitos desses movimentos mais recentes brotaram do tronco secular, mas jovem e fecundo, da catolicidade italiana. Se não soasse inconveniente, você seria tentado a dizer a ele: Dom Giussani, não lhe parece também que o senhor é mais que o seu movimento, que o seu olhar vai além, e que o seu sonho pode transbordar ainda mais? Não lhe parece que o senhor, que é certamente um mestre, um concentrado dos mestres que teve, é, mais ainda, uma testemunha, no sentido literal do termo: alguém que viu, e por isso fala e pode falar a todos? Enquanto isso, padre Luigi, por seu lado, olha atentamente para você, esperando a primeira pergunta. Fatalmente diferente dessas.
Oitenta anos. Dom Giussani, como é a vida nessa altura?
A vida, nesta altura, é feita e comunicada para reconhecer o nome de Deus em todas as coisas, e para reconhecer o Espírito criador que age nela. De modo que se concretizem as palavras da poesia de Ada Negri, Minha juventude: “Não te perdi. Permaneceste, no fundo/ do ser. És tu, mas uma outra és:/ [...] mais bela./ Amas, e não pensas ser amada: por cada/ flor que desabrocha ou fruto que amadurece/ ou criança que nasce, ao Deus dos campos/ e das estirpes dás graças no teu coração”.
Que incidência teve na obra que o senhor realizou o sentimento de que o tempo passa em alta velocidade? Em outras palavras: o senhor viveu a sua vida sob o signo da urgência?
Espero ter vivido a minha vida segundo o que Deus esperava dela. Pode-se dizer que eu a tenha vivido sob o signo da urgência, pois para a minha consciência cristã cada circunstância, ou melhor, cada instante foi busca da glória de Cristo. Quando o cardeal Tettamanzi, meu bispo, entrou em Milão, disse: “Os homens e as mulheres de nosso tempo, mesmo que inconscientemente, nos pedem que ‘falemos’ a eles de Cristo, ou melhor, que os façamos ‘vê-lo’”. Jesus Cristo, precisamente, a sua glória humana na história, é no mundo o único sinal positivo de um movimento do tempo e do espaço que de outra forma seria absurdo. Pois, sem significado, diria Eliot, não existe tempo. A vida é cheia de nulidade, de negatividade, e Jesus de Nazaré é a revanche. Isso em mim está claro. Assim, a esperança é a certeza graças à qual se pode respirar no presente, graças à qual se pode desfrutar do presente.
Houve algum momento, nas primeiras décadas da sua vida, em que o senhor teve um pressentimento do que nasceria da sua iniciativa como sacerdote? Ainda que isso seja delicado e pessoal, pode nos contar?
Não consigo fixar um momento particularmente “instigante”. Tudo para mim transcorreu na mais absoluta normalidade, e só as coisas que aconteciam, à medida em que aconteciam, suscitavam maravilhamento, de tanto que era Deus quem as realizava, fazendo delas a trama de uma história que me acontecia - e me acontece - diante dos meus olhos. Vi brotar um povo, em nome de Cristo, protagonista da história.
O senhor é muito amado por seus jovens. Quando fala a eles, mesmo em assembléias enormes, pessoalmente ou por vídeo, não se vê mover uma mosca. Dá para perceber que para muitos o senhor é um pai, representa o ideal. Isso o incomoda?
Não me incomoda, de modo algum, mas me faz rezar a Deus para que eu sempre saiba dar razões e força à liberdade dos jovens.
O senhor é um dos ícones das últimas décadas, no entanto nunca apareceu muito em público, pode-se dizer apenas o estritamente indispensável. Timidez ou coquetismo, opção calculada ou espontânea?
Opção espontânea de um espírito voltado para a verdade, mesmo sendo bem consciente de meus limites.
Durante anos, foi quase obrigatório tomar uma posição em relação a seu nome, prescindindo de certa forma até mesmo da sua pessoa: ou se era decididamente a favor ou se era contra. Por que isso, na sua opinião?
A simpatia por mim, mesmo tendo o meu total reconhecimento, nunca me fez esquecer o preço do sacrifício que me era exigido.
Provenho de uma experiência eclesial considerada “oposta” à de Comunhão e Libertação. Durante anos, o noticiário esteve repleto de conflitos entre a Ação Católica e CL. O senhor acha que isso foi inevitável ou tem alguma repreensão a fazer aos outros ou a si mesmo a esse respeito?
Parece-me que quanto mais um grupo de fiéis busca viver a fé e educar-se ao apostolado sob a influência de análises sinceras e apaixonadas, mais corre também o risco de ser parcial nas suas referências, uma vez que é impossível a qualquer análise abranger tudo. Mas, se os relacionamentos se mantêm e se desenvolvem na caridade, como Cristo e os apóstolos recomendaram, as distinções e as diferenças conseguem ser uma colaboração.
Perdoe-me a ingenuidade da pergunta: o que é CL para Dom Giussani?
É uma amizade (o ex-reitor da Universidade de Munique e fundador da Universidade de Eichstatt, professor Nikolaus Lobkowicz, escreveu que ao encontrar CL descobriu a amizade como “virtude”), uma amizade que pode assegurar um esforço comum de colaboração na reflexão sobre a fé e na tentativa de tornar expressão comum a vontade de testemunhar Cristo como inspirador de paz e de ajuda mútua. E na carta que me enviou pelos vinte anos da Fraternidade de CL, João Paulo II escreveu que “o movimento quis e deseja indicar não um caminho, mas o caminho para alcançar a solução deste drama existencial” do homem de hoje. E acrescentou: “O caminho é Cristo. [...] Comunhão e Libertação, mais do que oferecer coisas novas, propõe-se fazer redescobrir a Tradição e a história da Igreja, para exprimi-la de maneiras capazes de falar e de interpelar os homens do nosso tempo”. Existimos só para isso.
Padre, educador e líder. Não o negue: o senhor foi e é um chefe em todos os sentidos. Qual é a alegria maior, mas também a maior dificuldade, quando se guia um povo de jovens e ex-jovens?
Quando se guia um povo, a alegria maior e, ao mesmo tempo, a maior dificuldade estão em pedir sincera e continuamente a Deus, e portanto ao Espírito e a Nossa Senhora, luz para a própria inteligência e fogo ardente para a própria caridade diante de todos os problemas que brotam no coração de cada homem diante dos acontecimentos que o Mistério de Deus permite, problemas que se impõem ao coração e ao trabalho de cada um no lugar em que cada um de nós se encontra.
A semente de Comunhão e Libertação já se espalhou por todos os continentes. Que critérios o senhor indica para que a difusão aconteça de modo fiel ao projeto original?
A difusão dos critérios teóricos e práticos por todo o mundo é um dom a ser pedido constantemente a Cristo, e por isso deve acontecer como objeto da oração ao Mistério do Pai, como Cristo nos ensinou: na busca coerente dos princípios da fé e da caridade, na obediência humilde aos pastores do rebanho, ou seja, aos bispos. A obediência à autoridade da Igreja - antes de mais nada ao Papa, dique estabelecido para a segurança da nossa fé católica - constitui o critério original e perfeito. Nessa postura, os anos que passam são uma confirmação (ou seja, são motivo de confirmação de uma promessa cumprida).
Serei indiscreto. Como é que Dom Giussani reza? E que invocação se ergue de seu coração mais frequentemente durante o dia?
Minha oração é a liturgia e a repetição continuada de uma fórmula: Veni Sancte Spiritus, veni per Mariam. Vem, Espírito Santo, vem por Maria, torna-te presente por meio do ventre, da carne de Nossa Senhora. Essa antiga jaculatória sintetiza toda a Tradição e indica o método de Deus para fazer com que os homens o conheçam: a Encarnação. Todo o cristianismo está aí. Em seu Hino à Virgem, Dante fala do “calor” do ventre de Nossa Senhora: pensar que dali grita o Mistério é realmente a coisa mais misteriosa, e só na experiência de uma comunhão vivida se pode começar a entender algo desse mistério de Deus.
Por isso a oração é o gesto mais razoável que o homem engajado na luta cotidiana pela vida pode realizar: é o alfa e o ômega de tudo. Eu não fiz nada, sou um zero. O Infinito faz tudo, e por nós mesmos nada se faria se ele não se doasse a nós.
Aos oitenta anos, talvez seja inevitável pensar na sucessão. Posso saber o que o senhor espera daquele que herdará o seu testemunho?
Espero da Misericórdia de Deus e de Nossa Senhora um chefe que responda coerentemente aos conteúdos das últimas perguntas.