Em caminho
Palavra entre nósAntes de mais nada, gostaria de voltar às descobertas ou aos pontos mais sugestivos nos quais insistimos e às palavras mais significativas de toda a vida intelectual e afetiva do ano passado, em vista da novidade do caminho que deveremos enfrentar. No olhar ao ano passado já está implicada, de fato, a sugestão de um novo avanço da nossa consciência (é preciso que a nossa consciência viva, caso contrário o próprio sentimento do nosso eu se desvanece).
1. A consciência do eu impedida
O supremo obstáculo ao nosso caminho de homens é a “negligência” do eu. O primeiro ponto, portanto, de um caminho humano é o contrário dessa negligência, ou seja, é o interesse pelo próprio eu, pela própria pessoa. Um interesse que pareceria óbvio, mas que não o é de forma alguma: basta olhar para o nosso comportamento cotidiano para ver quantas enormes brechas de vazio da consciência e de perda da memória o qualificam.
O nosso primeiro interesse é, portanto, o nosso próprio sujeito. O nosso primeiro interesse é que o sujeito humano seja constituído, e, portanto, que o meu sujeito humano seja constituído – que eu entenda o que é e tenha consciência –. Ele é, de fato, o que está na raiz da totalidade das minhas ações. O mover-se de um sujeito (todo “tender a”) chama-se ação; a ação é a dinâmica de relacionamento com qualquer pessoa e coisa. Se eu sei o que é o meu sujeito, todos os relacionamentos podem ser conscientemente governados, dominados, determinados por mim: são “meus”. Não negligenciar o próprio eu significa poder dizer “meu” com seriedade – esta preferência é minha, este é meu marido, esta é minha mulher, este é meu filho, que nasceu da minha mulher, minhas são as estrelas.
Para poder dizer meu com seriedade, precisamos ser límpidos na percepção do próprio eu. Para isto, a primeira preocupação que sempre tivemos, como característica fundamental de todas as nossas pesquisas e reflexões, é nos tornarmos conscientes da influência decisiva, determinante, que tem sobre nós aquilo que o Evangelho chama sinteticamente “o mundo” , e que se apresenta como o inimigo daquilo que é digno para um eu, para a formação estável e consciente de uma personalidade humana. Se alguém pisa distraidamente no nosso dedão, nós sentimos imediatamente e reagimos com um olhar ameaçador; se, porém, pisam na nossa personalidade, de tal modo que ela é literalmente suprimida ou tão intimidada que se torna incapaz de agir e apalermada, isso nós suportamos “tranqüilamente” todos os dias. É pela consciência disso que, todas as vezes que raciocinamos sobre alguma coisa, queremos descobrir como somos influenciados e impedidos por um a priori ou por um preconceito derivados da pressão que “o mundo” – aquilo que nos rodeia – exerce sobre nós através dos meios de comunicação e outros instrumentos (como a escola, a política, etc.).
Existe hoje uma grande confusão por trás da sempre mais frágil máscara da palavra “eu”. Só o invólucro dessa palavra tem uma certa consistência. Mas assim que ela é pronunciada, o trajeto daquele som, “eu”, é completamente cheio de esquecimento – esquecimento daquilo que é mais vivo e mais tem valor em nós. A concepção e o sentimento do eu são tragicamente confundidos na nossa civilização. A evolução de uma sociedade é tanto mais definida como “civilizada” quanto mais traz à tona e esclarece o valor de cada eu, da pessoa – pois não existe humanidade a não ser no eu concreto, em cada pessoa.
Na nossa época bárbara é “favorecida” uma grande confusão quanto ao conteúdo da palavra eu. O eu é rebaixado a um termo puramente indicativo: como se diz copo ou garrafa, assim se diz eu (é preciso usar bem certas palavras para nos entendermos!). A conseqüência inevitável e enormemente trágica dessa confusão que se introduziu, na qual se dissolve a realidade do eu, é a dissolução da palavra “tu”. O homem de hoje não sabe dizer conscientemente “tu” a ninguém: essa é a inexorável conseqüência da falta de um sujeito, de um eu. O eu é como uma coisa flutuante, ondulante no “aer perso” de que fala Dante, em uma atmosfera sombre, sombria, obscura, em que dominam confusão e contradição. Não há desumanidade maior que fazer o eu desaparecer: é precisamente esta a desumanidade do nosso tempo.
McIntyre descreve em um de seus livros essa situação com termos que nos animam a exprimir novamente juízos tão graves: “Os obstáculos sociais derivam hoje do fato de que a modernidade subdivide cada vida humana em uma multiplicidade de segmentos”. A cultura da sociedade de hoje produz uma imagem e um sentimento do eu como um agregado de segmentos ou fragmentos. Cada segmento, cada fragmento – o relacionamento afetivo, o trabalho, a religião, o repouso, a diversão, etc. – tem a sua lei, tem uma dinâmica estavelmente fixada e ineludível (existem leis para jogar futebol e outras leis para o relacionamento entre um homem e uma mulher, ou para afirmar-se no próprio trabalho, e assim por diante). Todos os segmentos são governados por uma lei própria: por isso, a realidade é como o resultado de um terremoto. “O resultado de um semelhante comportamento cultural e psicológico é a redução de qualquer construção a fragmentos”, dispersos pela terra e em luta um contra o outro. Como depois de um violento terremoto, não existe mais a casa e não existe mais a cidade: existem montes de pedras, pedaços de muros, a “gran ruina” de que fala ainda Dante.
2. Um acontecimento
A resposta positiva à dramática dispersão em que a sociedade nos faz viver é um acontecimento. Só um acontecimento – digamos deste modo por enquanto, sem ulteriores qualificações – pode tornar o eu claro e consistente nos seus fatores constitutivos. Este é um paradoxo que nenhuma filosofia ou teoria – sociológica ou política – consegue tolerar: que seja um acontecimento, não uma análise, não um registro de sentimentos, o catalisador que permite aos fatores do nosso eu virem à tona com clareza e se comporem aos nossos olhos, diante da nossa consciência, com limpidez firme, duradoura e estável.
É um acontecimento que torna o eu o sujeito adequado de uma ação que pode “carregar” o mundo. Não é por acaso que as ações do homem se chamam “gestos”. A palavra “gesto” indica a relação com a realidade enquanto afirma, porta (gerit) um significado (portanto, não podemos dizer que um animal faça “gestos”). A liberdade, a não-escravidão, e portanto a dignidade no tecer um relacionamento com a realidade, nos vêm da clareza sobre os fatores do nosso eu (o eu é o sujeito secreto de todas as ações, de todas as tendências a conquistar, a afirmar-se, a realizar-se). E essa clareza não pode vir de uma reflexão nossa, mas só de um acontecimento: é um acontecimento que traz essa clareza.
Dizia Péguy em Notre jeunesse: “A coisa mais imprevista é sempre o acontecimento”. Ou seja, um acontecimento é “algo” que repentinamente se introduz: não-previsível, não-previsto, não-conseqüência de fatores antecedentes. De fato, a palavra que mais se aproxima de “acontecimento” é “acaso”; a palavra “acaso” define algo cuja presença não se explica aos nossos olhos que a vêem. Podemos dizer, então, que um acontecimento é algo puramente e em última instância casual para a nossa razão, para as nossas capacidades. Aliás, para a nossa capacidade de investigação e de domínio, um acontecimento é tal justamente enquanto não pode ser dominado, tem algo que escapa.
A característica de um acontecimento é ser imprevisível e imprevisto (é imprevisto enquanto, por natureza, imprevisível). Aquilo que tem o poder de esclarecer-me a mim mesmo é, portanto, algo que penetra no horizonte e na atmosfera da minha existência como um meteoro estranho, exterior, sem que eu possa prever e, assim, em última instância, entender, pois o imprevisível é também incompreensível.
É, portanto, um incompreensível, um imprevisível, que faz brilhar – como um fósforo que se acende – a luz sobre a verdade de nós mesmos. É pela intrusão dessa “coisa” irracional – que não pode ser abarcada pela nossa razão, não pode ser dominada pela nossa medida, que supera e rompe todas as nossas medidas, não-redutível, por mais perspicazes que sejamos, aos nossos pensamentos – e estranha, que começa a introduzir-se nas trevas da nossa existência uma luz sobre a verdade de nós mesmos, e que começa a se estabelecer uma ordem na confusão. E daqui começam a nascer um interesse e uma afeição para consigo, uma ternura e uma compaixão possíveis para com os outros, uma seriedade diante dos programas de hoje e, sobretudo, do amanhã.
Mas insistamos. Diz o crítico francês Finkielkraut, no seu livro sobre Péguy, comentando a frase que citamos antes: “Um acontecimento é uma coisa que irrompe de fora. É algo imprevisto. Esse é o método supremo do conhecimento [conhecer é encontrar-se a diante de algo novo, de algo estranho a si, não construído por si]. É preciso dar novamente ao acontecimento a sua dimensão ontológica de novo início. É uma irrupção do novo, que rompe as engrenagens [das coisas já estabelecidas, das definições já dadas], que dá início a um processo”.
A palavra acontecimento é, portanto, capital para qualquer tipo de conhecimento. Há muitos anos, eu estava passando por um caminho que parte de uma cidade do Val Gardena e sobe pelo Monte Pana, perto de Sasso Lungo. Estava à minha frente um jovem que constantemente olhava para o chão, recolhendo uma pedra aqui, outra ali. Depois de um pouco, entendi: ele estava recolhendo fósseis, dos quais aquela região é, de fato, muito rica, como todas as Dolomitas. Pois bem, quando aquele jovem deparava-se com uma pedra com o perfil sutilmente delineado de um fóssil, fazia uma “descoberta”: um acontecimento entrava na sua vida e fazia-o conhecer algo mais.
Assim é para o conhecimento do próprio eu. É um acontecimento – “uma irrupção do novo” – que dá início ao processo pelo qual o eu começa a tomar consciência de si, a ter ternura para consigo mesmo, a dar-se conta do destino para o qual esta indo, do caminho que esta fazendo, dos direitos que tem, dos deveres que deve cumprir, da sua inteira fisionomia. É um acontecimento que dá início ao processo pelo qual um homem começa a dizer eu com dignidade. E, se um outro o tratasse sem respeitar essa dignidade, se quisesse de algum modo esmagá-lo, mantê-lo como escravo, usá-lo como “coisa” sua, ele se revoltaria, porque sentiria tudo isso como a pior violência.
Devemos dar um outro passo. Olhemos brevemente para o percurso que fizemos. Detive-me na confusão quanto à consciência do eu que, favorecida pelo poder, domina na nossa sociedade (entrem em um ônibus lotado: ninguém, estatisticamente falando, tem consciência do próprio eu; se fizerem a eles uma pergunta sobre isso, ficarão tão surpresos ou escandalizados que rirão de vocês). É a última coisa que um homem imagina dever e poder pensar. Mas, como dissemos, é um acontecimento que faz com que este eu confuso e contraditório, que flutua no ar, torne-se claro e consciente de si. Porque só um acontecimento pode iniciar o processo através do qual o eu chega à consciência ou conhecimento de si. A categoria de “acontecimento” é, portanto, capital, tanto para o conhecimento do eu como para qualquer tipo de conhecimento.
Mas o que sobretudo nos interessa agora é a palavra “acontecimento” como única categoria que pode definir o que é o cristianismo (o cristianismo se reduz totalmente a esta categoria): o cristianismo é um acontecimento.
O acontecimento cristão é, de fato, o catalisador adequado do conhecimento do eu, é o que torna possível uma clara e estável percepção do eu, que permite ao eu tornar-se operativo enquanto eu. Fora do acontecimento cristão, não podemos entender o que é o eu. E o acontecimento cristão é – como já vimos a respeito do acontecimento como tal – algo de novo, de estranho, que vem de fora, portanto algo impensável, que não podemos supor, que não podemos reconduzir a uma construção nossa, que irrompe na vida.
“Não tinha necessidade de nós. E, além do mais, Jesus devia era estar bem tranqüilo no céu – diz Péguy, em Clio – antes da Encarnação, antes da Redenção. Ele veio. Veio porque o homem veio. Quanto é preciso que seja grande este eu humano, meu amigo, para ter movido um mundo, perturbado um mundo, um mundo assim tão grande, o mundo do infinito. Um Deus, meu amigo, Deus se incomodou! Deus se sacrificou por mim”. Deus se tornou acontecimento na nossa existência cotidiana: isso é o cristianismo.
“Diante da descristianização do mundo moderno, Péguy não coloca para si o problema da modernização da linguagem e muito menos dos conteúdos da fé católica. A única resposta possível por parte do homem à descristianização é o desejo de que o cristianismo reaconteça como acontecimento. Um acontecimento dentro do real assim como nos desafia todos os dias” (Il Sabato, Editorial de 20 de junho de 1992). Nós nunca falamos de cristianismo senão como acontecimento: só se pode falar dele como acontecimento.
3. O maravilhamento e as regras
“O verdadeiro drama da Igreja que gosta de se definir moderna [o verdadeiro drama dos cristãos que querem ser modernos] é a tentativa de corrigir o maravilhamento do evento de Cristo com regras”. É uma frase admirável de João Paulo I (o seu pontificado de um mês seria providencial só por esta observação, da qual não se encontra equivalente em parte alguma). Cristo é um evento, um acontecimento, um fato, que antes de mais nada nos enche de maravilhamento.
A irrupção de algo imprevisível e imprevisto – um acontecimento, um “evento” – provoca antes de qualquer outra coisa maravilhamento. E o maravilhamento é o início de uma reverentia, de um respeito, de uma atenção humilde. Como em uma criança colocada diante de uma situação nova: nela, desperta instintivamente um sentimento de maravilhamento e de respeito humilde e um pouco temeroso. Quem se subtrai ao maravilhamento do acontecimento, e à atenção, à veneração, à curiosidade respeitosa e humilde que o acontecimento suscita instintivamente, torna-se escravo de regras. Quem tenta subtrair-se ao acontecimento faz-se inevitavelmente escravo de regras.
Isto explica muito bem a característica do sujeito humano criado pela mentalidade moderna: um amontoado de segmentos, de partículas e de retalhos, como dizíamos. Cada um desses retalhos subsiste e caminha porque segue algumas regras: as regras do escritório, da família, também as regras do ir à igreja ou à paróquia. Quando nos subtraímos ao maravilhamento, à luz e ao calor que são acesos pelo acontecimento de Cristo, somente no qual emerge a face ou a unidade do eu nos seus vários aspectos (pelo qual eles enriquecem a unidade e não a deprimem numa divisão rejuntada de maneira postiça), não é possível evitar a submissão da própria vida, segmentada, à escravidão de regras.
Esta observação chama a nossa atenção para Cristo, que deu a vida para salvar o homem das regras dos fariseus, do farisaísmo. Desde que Cristo veio, nestes dois milênios cristãos nenhuma época foi mais farisaica do que a nossa; nunca houve um farisaísmo tão determinante de toda a sociedade: é o farisaísmo no qual o puritanismo, o calvinismo puritano, sempre cai; e, estando hoje “no governo” do Estado economicamente mais poderoso, influi também culturalmente sobre o mundo inteiro.
Ou levamos em consideração com seriedade o acontecimento do qual falei, e isto nos liberta, ou escolhemos ser escravos de regras. Em vez de regras, podemos dizer convenções sociais; e, num certo nível social, podem valer determinadas convenções, ao passo que, em outro nível, passam a valer outras (assim, por exemplo, se as orgias são feitas pelo povo são coisas reprováveis, mas se são feitas por quem domina o povo e pelos ricos, então tudo bem).
Seria preciso parar por longo tempo diante da frase de João Paulo I, porque não encontramos em parte alguma um juízo tão agudo, que chega à raiz do dano sofrido pelo homem de hoje, escravo de regras. Escravo, quer dizer, sem personalidade (o eu não existe mais). Como no tempo dos antigos e civilizadíssimos romanos (civilizados pelo menos pelo Direito que criaram, o qual, parece-me, pode ser considerado o mais evoluído ao menos na história do Ocidente). Os seus textos de Direito estabelecem a diferença entre livres e escravos. Gaio, que é um dos mais importantes autores jurídicos, dizia que só o civis romanus era o homem verdadeiro, ou seja, que vivia a plenitude dos seus direitos. Os outros não tinham os mesmos direitos, eram escravos (a liberdade era própria do civis romanus, não dos outros). Também aqueles que se encontravam em posição intermediária, os libertos, não conseguiam chegar à liberdade total de que gozava o civis romanus. Só o civis romanus tinha o direito de possuir: podia possuir “coisas” que não se movem e não falam (os objetos); ou então “coisas” que se movem e não falam (os animais); mas tinha também o direito de possuir “coisas” que se movem e falam: os escravos.
A palavra “coisa” – este é o ponto – é o denominador comum das três categorias. Se aquele acontecimento não intervém e catalisa a força e a verdade do nosso eu, se aquele acontecimento não é levado em consideração, nós – nós, agora – vivemos, somos olhados e tratados por quem detém o poder (qualquer que seja esse poder) com o mesmo critério com o qual Gaio descrevia as três categorias daquilo que entrava no direito de posse do civis romanus, ou seja, como “coisas”. Um homem pode ter poder só sobre um salão de baile, mas tratará, como se costuma dizer, quem “está abaixo” dele com o critério descrito por Gaio. Em última instância, podemos surpreender os resultados dessa redução a animal ou a “coisa” também no relacionamento de uma mãe com o próprio filho: se aquele acontecimento não incide sobre ela e não significa nada para ela, uma mãe tende a possuir o seu filho. Cada um de nós, se aquele acontecimento não penetra na própria vida, no âmbito em que exerce um poder escraviza os outros. Ou, na medida em que não tem poder, é escravizado.
Penetrando no nosso horizonte, o acontecimento cristão faz aflorar e acende toda a dramaticidade da nossa existência. De fato, não podemos dizer “eu” sem “pagar” alguma coisa, sem que seja indicada uma exigência estranha que nos destina a uma fadiga, a um trabalho, sem que seja introduzido um sofrimento, e sem que tome corpo um desejo de felicidade e de alegria, que normalmente é sufocado na distração. Esse acontecimento traz estavelmente à nossa vida uma dramaticidade que de outro modo não existiria. Por isso, é fácil que até quem percebeu esse acontecimento escolha esquecê-lo, porque ele inquieta, perturba, e prefira abandonar-se à confusão e oscilar no “aer perso”, como uma folha caída de uma árvore (segundo a imagem do poema de Arnauld).
4. Um encontro humano
Qual é a forma característica do acontecimento cristão? O acontecimento cristão tem a forma de um encontro: um encontro humano na realidade banal de todos os dias. Um encontro humano através do qual Aquele que se chama Jesus, aquele homem nascido em Belém em um momento preciso do tempo, se revela significativo para o coração da nossa vida. Além da face de Jesus, o acontecimento cristão tem o aspecto de faces humanas, de companheiros, de pessoas como eu e você. Do mesmo modo como, nas vilas da Palestina aonde não podia ir, Jesus adquiria o rosto dos dois discípulos que mandava, chegava sob o rosto daqueles dois que havia escolhido. E era tal e qual: “Mestre, aquilo que Tu fazes, nós também fizemos”. Idêntico: “O Reino de Deus está próximo. O Reino de Deus está no meio de vós”.
O acontecimento cristão é um encontro humano por meio do qual Jesus Cristo se revela significativo para o coração da vida e desvela o eu. Só nesse encontro é dado um “coração estável” à nossa vida: o conhecimento do eu, a clareza na percepção do eu, a possibilidade de que o eu se torne princípio verdadeiro de ação podem ser chamados de “coração”. Na tribuna de Santo Ambrósio, o último grande orador romano, Gaio Mário Vitorino, anunciou a sua conversão ao cristianismo iniciando o seu mais famoso discurso com estas palavras: “Quando encontrei Cristo, descobri-me homem”. E Vitorino pertencia a uma sociedade e a uma cultura em que escravidão e liberdade eram categorias que estavam em ação abertamente (ao passo que hoje estão em ação “coberta”, obscurecida, que é preciso descobrir, sob pena de sofrê-la sem se dar conta).
O acontecimento cristão é um encontro com uma realidade humana que veicula a evidência de uma correspondência do divino – que se curvou e entrou na nossa vida – com aquilo que somos. Esse encontro abre os meus olhos para mim mesmo, suscita um desvelamento de mim, demonstra-se correspondente àquilo que sou: faz com que eu me dê conta daquilo que sou, daquilo que quero, porque me faz entender que o que traz é exatamente o que eu quero, corresponde ao que sou. É como se dissesse: “Olha o que és e depois diz-me se não te correspondo: só porque não te conheces podes acreditar que eu não te corresponda, e preferir outro como significado do teu eu”.
Em uma cena do filme Andrej Rublëv, de Tarkovski, um de seus personagens diz: “Você sabe bem disso: nada dá certo, você está cansado e não agüenta mais. E, de repente, encontra na multidão o olhar de alguém – um olhar humano –, e é como se um divino escondido se aproximasse de você. E então, de repente, tudo se torna mais simples”. O acontecimento cristão se manifesta, se revela, no encontro com a leveza, a sutileza e a aparente inconsistência de um rosto que se entrevê na multidão: um rosto como os outros, mas tão diferente dos outros que, encontrando-o, é como se tudo se simplificasse. Você o vê por um instante, e indo embora carrega dentro de você o golpe daquele olhar, como que dizendo: “Eu gostaria de ver de novo aquela face!”. É a melhor descrição do “por que” nos movemos para essa companhia e nos encontramos nela. Nós estamos aqui por causa de um encontro que fizemos (mensagem e anúncio cristão podem, portanto, se tornar sinônimos da palavra “encontro”, do acontecimento cristão como encontro). Desde o instante daquele encontro, o cristianismo não teve mais o mesmo significado de antes: algo Outro se revelou como importante para o coração da vida. Aquele momento nos fez intuir que este Outro dizia respeito à vida: era uma forma finalmente persuasiva, razoável, que pode ser seguida, talvez finalmente amável, de algo que nos tinha sido dito antes, mas que era árido, pedra, sem possibilidade de compreensão, estranho a nós.
“Deves viver por um outro, se queres viver por ti mesmo”, dizia o filósofo romano Sêneca. Se você quer viver para você mesmo, se quer descobrir a sua consistência e dignidade, deve perceber-se através da presença de um outro, deve viver por um outro. Mas quem é esse outro pelo qual você pode viver? Ou é você que o escolhe – e então escolhe mais uma vez você mesmo, um critério seu e não um outro – ou se lhe impõe, e então você é escravo, é um captivus. Em um só caso a frase de Sêneca é verdadeira, digna da liberdade humana: se esse outro é ontologicamente caminho para o seu destino. Você só pode viver para você mesmo vivendo por um outro se esse outro o reconcilia com seu destino. Então, se você vive por este outro, chega ao seu destino, e se não vive por esse outro, desfaz-se, destrói-se a si mesmo.
Normalmente, somos obrigados a viver por um outro que se nos impõe, quer dizer, pelo poder (o poder mãe-pai, o poder marido-mulher, o poder namorado-namorada, o poder do professor, o poder da polícia, o poder dos grandes grupos econômicos, o Poder). O poder, esse é o inimigo dos olhos e do coração, e da boca, que exprime em palavras o coração. Não há alternativas: ou nós escolhemos o outro, e então escolhemos mais uma vez a nós mesmos – e afundaremos no redemoinho da nossa inconsistência – ou ele se nos impõe, e então somos escravos do poder; ou então, e isto é justo, vivemos por um outro que é ontologicamente – pela natureza do seu ser – caminho, estrada para o nosso destino. E Um só disse: “Eu sou o caminho”, e não: “Eu vos indico o caminho”.
5. Em um preciso momento
O acontecimento cristão como encontro – que desencadeia uma dinâmica de conhecimento e de afeição que dá corpo e unidade ao eu – se dá em um instante preciso da vida. O encontro se reconduz sempre a um momento exato.
Não existe outro momento da nossa existência que tenha o mesmo valor, a tal ponto que perder esse momento pode equivaler a perder a nós mesmos. E visto que podemos perdê-lo logo depois, só retomando-o podemos reencontrar um caminho seguro. Mesmo que alguém entrasse em um mosteiro para ser monge, é em virtude da memória daquele preciso momento que pode continuar a caminhar. Von Balthasar o diz com muita intensidade em um seu escrito. Em 1961, quando foi convidado a falar sobre sua vocação (a vocação é a vida que se torna consciente de si, porque se torna consciente do seu destino e da tarefa que deve realizar para chegar ao seu destino) contou com precisão o instante em que percebeu o seu chamado. Aconteceu durante um retiro inaciano, no verão de 1927: “Ainda agora, trinta anos depois – diz Von Balthasar –, eu poderia voltar àquele caminho da Floresta Negra, não muito longe de Basiléia, e reencontrar a árvore sob a qual fui atingido como por um raio. E o que então me veio à mente de repente não foi nem a teologia nem o sacerdócio. Foi simplesmente isto: ‘Tu não deves escolher nada; foste chamado. Tu não deverás servir. Serás tomado em serviço. Ser-te-á dado [a vocação, como tarefa a cumprir, é dada por Deus, nós não a escolhemos], não deves fazer planos, és só uma pedra em um mosaico preparado há muito tempo’. Tudo o que eu devia fazer era só deixar todas as coisas e seguir, sem fazer planos, sem o desejo de intuições particulares. Eu só devia estar ali, para ver a que serviria”.
Este trecho vale literalmente para cada um de nós, na medida em que cada um de nós entrou a fazer parte do acontecimento cristão em um momento de encontro: o momento de encontro é aquele em que Cristo, ou o fato cristão, se nos mostrou, como aquele rosto na multidão de que falava Tarkovski. E mesmo que a percepção tenha sido momentânea, sutil, ela é inconfundível: uma correspondência ao que somos. O encontro traz consigo o significado que o coração da vida exige, como fonte de ternura para conosco mesmos e de amor para com os outros, como razoabilidade do tempo e do espaço a ser atravessado, como apoio para a vida e para a morte.
A cada um de nós isso foi dado: não digo a todos os homens do mesmo modo, porque nisso é Deus que faz os seus planos, mas, a nós que estamos aqui, sim. O que Von Balthasar diz sobre ele é verdadeiro para cada um de nós, não só para quem é chamado a um caminho vocacional particular. O batismo marcou o caminho vocacional que nos une. E em um momento preciso da nossa existência, em uma determinada circunstância, em um certo encontro, o conteúdo do batismo como que apareceu na sua grande pretensão tão razoavelmente fundada, demonstrada pela persuasividade que exerce – justamente – uma correspondência que percebemos com o nosso coração.
6. “Essa cara alegria na qual toda virtude se funda”
“De onde lhe vem essa cara alegria, na qual toda virtude se funda?” Não pode existir moralidade (“virtude”), dignidade, intensidade e perfeição do viver, senão a partir de uma alegria. “De onde lhe vem essa alegria?” Essa alegria vem daquele momento em que o acontecimento cristão entrou nos limites da nossa existência, ou seja, fizemos um encontro com uma realidade humana por meio da qual Cristo se revelou significativo para a nossa vida, ou seja, para a razão e para a exigência de afetividade do coração.
A moralidade suprema – quer dizer, um modo de viver adequado ao eu, à dignidade daquele ser criado que é indicado com a palavra “eu” – é a fidelidade à atitude com a qual o Criador nos faz.
Como o Criador nos faz? Como crianças. A criança se apresenta com a face escancarada aberta positivamente à realidade (a curiosidade é o fenômeno em que, antes de tudo, se documenta, mesmo de modo árido, essa positividade original do olhar). O homem criado está diante do mundo não só aberto positivamente, mas esperando a realização. A criança, de fato, maravilhada diante da realidade, está cheia de desejo, espera a realização, com letícia, “como que se preparando para uma festa”. Portanto, abertura positiva ao real e espera da realização se identificam.
Como podemos ser fiéis à atitude com o qual fomos feitos? Como podemos manter aquela pureza original do rosto, aquele olhar aberto positivamente à realidade, esperando a realização com letícia, “como que se preparando para uma festa” (a letícia é o sentimento original do homem que permanece fiel ao gesto que o criou)? Só se nos apoiamos no acontecimento de Cristo na forma histórica com que nos tocou.
É pela introdução do acontecimento cristão na nossa vida que pode se acender e de várias formas florescer a descoberta do eu nos seus fatores e no seu destino, e uma correspondência favorável às exigências mais profundas da inteligência e do coração que se afirme a ponto de tornar a nossa pessoa sujeito de moralidade – quer dizer, de ação digna do Ser, de comportamento digno da relação com o Mistério que a fez. E nem mesmo o mal e a incoerência desqualificam essa “linha”, uma vez instaurada. Assim como Deus não renega a Aliança que estabelece com o homem, mesmo que o homem erre e a renegue, existe um nexo com Deus que, uma vez descoberto, não podemos mais renegar, mesmo se traímos mil vezes por dia. Quando vimos uma coisa, não podemos mais negar que a vimos, a não ser dizendo conscientemente uma mentira que nos soterra como em um caixão e nos sufoca.
Tudo isto começa com o acontecimento cristão que irrompe na nossa vida: um encontro com uma realidade humana que traz consigo a evidência de uma correspondência do divino que entrou na nossa história – a evidência de uma Sua correspondência – àquilo que somos.
O acontecimento de Cristo que se manifesta no encontro nos une a outros, é o início de um povo novo; cria um ambiente novo, uma companhia: como uma casa, uma morada nova, onde as coisas são suas, onde tudo é seu, onde tudo é para você, onde você é totalmente livre. E essa companhia abre à realidade inteira, tende a fazer com que nos interessemos por tudo, torna menos estranho o mundo, com os homens que o povoam. Essa companhia descobre e ama a história como morada da unidade ativa de um povo, introduz a percepção da possibilidade de uma história nova.
7. O início de um sujeito novo
O acontecimento cristão – como todo acontecimento – é o início de algo que nunca houve antes: é uma irrupção do novo que põe em movimento um processo novo. A irrupção do mistério de Deus feito homem na nossa história humana e pessoal dá início a um sujeito novo. Por isso, por menor que tenha sido ou seja a atenção sincera, maravilhada, surpresa que tivemos ou temos com o encontro em que essa grande presença nos atingiu, algo de novo se moveu em nós. Pode permanecer talvez sutil, frágil, e sem excessiva vitalidade por muito tempo, mas algo se moveu e não pára, se a nossa atenção é chamada para isso, se estamos em companhia, ou seja, dentro da modalidade com a qual algo Outro entra na nossa vida. Porque é uma companhia – feita por aqueles que Ele escolhe e que O reconhecem, a comunidade dos que crêem – a modalidade com a qual Cristo se faz presente na nossa vida de homens, o âmbito no qual o encontro com o mistério de Deus feito homem acontece. E, no momento do encontro inicial, não sabemos o que acontece, não sabemos daquela grande presença, não sabemos que é o encontro da vida. Mas com o passar do tempo, se permanecemos – de qualquer modo – fiéis à realidade externa, à face exterior que nos colocou em contato com Cristo, em que a presença de Cristo nos tocou, nos moveu, nos provocou, então tudo se esclarece.
“De onde lhe vem esta cara alegria, na qual toda virtude se funda?” Aquela segurança estranha, cheia de letícia, na qual se funda a energia com a qual um homem age, ele mesmo (“toda virtude”), e a partir da qual começa a se desenvolver um empenho com a vida, vem daquele momento em que um acontecimento nos fez encontrar algo de Outro que se revelou correspondente ao nosso destino.
O acontecimento cristão é o início de um novo modo de viver este mundo; põe em movimento uma concepção e uma manipulação nova da realidade, que dá à realidade uma forma mais humana – mais verdadeira –, de modo que a realidade e o homem se tornam cada vez mais uma coisa só – a ponto de fazer Jacopone de Todi dizer em um dos versos mais belos da literatura italiana: “Amore, amore, omne cosa conclama”, tudo grita junto “amor”, que é o ímpeto que caracteriza a essência do homem existente, o movimento do coração humano.
Esse “trabalho” – chama-se trabalho a aplicação da energia humana à realidade – é criado e recolocado na sua exatidão e precisão pela irrupção do acontecimento de Cristo na nossa existência.
Nós somos chamados a esse “trabalho” todos os dias. “E nós, que de noite vigiamos, atentos à fé do mundo, voltados à vinda de Cristo, agora a luz contemplamos”, diz um hino das Laudes. É como um paradigma. Na noite em que todos afundam, na noite de inconsciência do mundo – “trevas sobre o abismo”, diz Eliot, falando de um mundo em que o homem, como consciência, está partido, quebrado, bloqueado, disperso pela sua incapacidade – nós velamos: nos foi dada uma luz que ilumina desde a intangível profundidade do coração até o último horizonte dos olhos, conteúdo de uma experiência que podemos fazer, que somos chamados a fazer, na qual ressoa a ressurreição final.
Todos os dias somos chamados a experimentar esse choque sutil e discreto de ressurreição: temos um início de luz, uma vontade de conhecer, um ímpeto de bem gratuito, uma paixão pelo destino dos homens e das coisas – como projeção do amor ao nosso próprio destino –, em que, lentamente, com o tempo que passa, tudo é abraçado e envolvido, até chegar ao ponto culminante, do qual Jesus nos dá o exemplo: “Olhai a pequena flor do campo, o pássaro que cai, que o Pai conhece. Até os cabelos da vossa cabeça estão contados”. “Tem um valor eterno – uma ressonância eterna – até uma palavra dita por brincadeira”. Como seria justo que em nós fosse o mais possível vibrante e intensa a ousadia ou a perspicácia dessa consciência de si e das coisas que implica o eterno!
Gostaria de contar a esse propósito um episódio que ficou entre as lembranças mais significativas da minha vida. No final de um ano escolar, fui a um jantar com uns vinte alunos meus. Eram amigos, mas com uma certa prudência, como que um pouco de longe. No fim do jantar, começaram a dançar. Sentado, eu os observava, da mesa ainda coberta de pratos, naquela bela dança, naquela espontaneidade sugestiva, ainda não de todo perturbada, deturpada, da primeira juventude. Da minha posição eu via essa expressão viva e cheia de esperança inconsciente de humanidade. A certa altura, parei a dança e disse: “Sabem qual é a diferença entre mim e vocês? A diferença é que eu me alegro com a dança de vocês, como se fosse parte do jogo, e os louvo pela leveza e precisão com que dançam, e também pelo respeito que vocês têm uns pelos outros; mas em mim há como que um pensamento que vem do fundo do coração, com o qual os olho abraçando-os: é uma tristeza, uma tristeza boa e em última instância cheia de esperança, que vocês não têm e não conhecem. É a tristeza ditada pelo limite, e por isso também pelo limite daquilo que vocês fazem! Porque daqui a algumas horas vocês estarão em casa e, distraídos, confusos, com sono, não experimentarão mais nada; aliás, normalmente depois de momentos como este – lembro-me do meu tempo – vamos para casa tristes. Mas não com a tristeza com a qual eu, agora, lhes falo. A minha tristeza é um juízo, é um amor: é um juízo sobre o limite das coisas e sobre a abertura sem limites do destino, ao qual essa dança também é, deve ser, um passo – essa dança também deve ser um passo rumo à consciência e ao amor ao destino de vocês, rumo à beleza que os fascina e os atrai, à felicidade da qual vocês querem ser plenos, à perfeição à qual vocês são destinados. Ao passo que a tristeza de quando vocês estiverem sozinhos é como uma mão – a mão do limite – que os pega pela garganta e da qual vocês não sabem como se livrar”.
“Só se o acontecimento cristão entra na sua existência vocês podem ter uma percepção estável, completa e verdadeira de vocês mesmos e daquilo que os rodeia, e viver uma positividade que não precisa esquecer nada para se afirmar”. Mas eu só disse isso a eles algum tempo depois; aquela ocasião foi, de fato, o início de uma amizade que não só durou, mas também deu grandes frutos. Todavia, Cristo, o acontecimento cristão, já tinha entrado na vida deles, porque os conquistara no batismo. Mas o batismo conquista o fundo do eu – em termos filosóficos, dizemos a ontologia, a natureza última do nosso ser –, onde o eu não “sente”, não pode pegar com as mãos, não pode medir com os olhos. Esse mistério inicial – o batismo – se revela no seu valor, torna-se acontecimento mobilizante, quando o encontro com uma certa realidade humana começa a atingir a nossa inteligência e afeição, a mover e comover algo que nunca se movera e comovera antes, e nos faz encontrar, por esse “movimento” novo, quase que automaticamente junto com outros. E no relacionamento com eles se mantém e se reproduz continuamente aquele início, digamos “emotivo” (no sentido etimológico), do qual ninguém que o tenha experimentado pode fugir, porque a verdade é algo que, quando aparece, mesmo que por um instante fugaz, toca para sempre.
Nos anos em que lecionei no colégio, durante as aulas todos os alunos, sem exceção, prestavam atenção. E eu lhes dizia: “Vejam: enquanto falo, vocês foram tocados pela verdade daquilo que digo e sem que se dêem conta ficam aí de boca aberta ouvindo. Se vocês têm alguma objeção, se têm algum argumento contra (de fato, eram todos adversários terríveis), digam. E se não têm, por que não aderem ao que eu lhes digo?”. A verdade, quando aparece, toca para sempre. Só quando a memória do homem – a grande faculdade através da qual tudo é abraçado e aprofundado – se torna como um “coveiro”, é que parece poder esconder sob pás de terra (as pás da distração) a verdade que intuímos no acontecimento de um encontro.
8. O dom do espírito
Como pode se dar aquele acontecimento? Como podemos ser provocados pelo choque daquele encontro – pelo qual a vida começa a se iluminar, pelo qual uma luminosidade ainda que crepuscular se insinua no nosso horizonte, e surge um desejo de entender mais o que encontramos, de sermos mais profundamente atingidos por isso e de segui-lo? Como o acontecimento se dá? Porque não há nenhum precedente que possa prevê-lo; mas acontece. Se acontece, tem um causa. Todavia, ela não se deixa incluir no elenco que as nossas análises de acontecimentos antecedentes podem formular: é uma outra coisa. Qual é, então, a causa do acontecimento, a causa pela qual aquele acontecimento se torna um encontro com uma presença excepcional, que depois reconheceremos conscientemente como divina, à qual depois diremos: “Tu, Cristo” – depois, não na hora? No momento do encontro, ela é, de fato, uma realidade que simplesmente nos toca e nos move pela sua diversidade, porque quem já foi atingido por aquele acontecimento e participa, assim, da sua comunicação no mundo tem uma face com aspectos diferentes: tem critérios diferentes, uma emotividade e uma afetividade diferentes, um ímpeto de gratuidade desconhecido, uma capacidade de empenho estranha (“quem te faz fazer isso?”, perguntaria quem o vê).
A causa daquele acontecimento, daquele encontro, e do movimento que suscita em nós se chama, na linguagem cristã, Espírito Santo. Chamamos Espírito a energia com a qual o mistério de Deus age no mundo que criou, plasma-o e o conduz, como um grande rio, rumo à sua foz – que é o próprio mistério de Deus. Essa energia vem ao mundo e o penetra infinitamente mais do que quando aquele Homem a que o próprio Espírito deu vida (“...concebeu por obra do Espírito Santo”) morreu e ressuscitou. Desde que aquele Homem, que é Deus, morreu e ressuscitou, esse Espírito é o Seu Espírito, é a energia com a qual Ele está destinado a tomar posse definitiva de todas as coisas, como diz o capítulo 17 do Evangelho de São João: “Tu, ó Pai, me deste nas mãos toda carne – todos os homens –, a fim de que tenham a vida eterna”. “Esta é a vida” – vida eterna, de fato, quer dizer vida “vida” –, “que Te conheçam a Ti, único Deus verdadeiro, e Aquele que enviaste, Jesus Cristo”.
O Espírito de Deus, portanto, é a energia com a qual Cristo penetra na história, no tempo e no espaço, conquistando aquilo que o Pai coloca em suas mãos, segundo um desígnio que para nós parece lento; mas para Ele, diante do qual mil anos são como um dia, tudo tem a brevidade do instante (como para o centro de uma circunferência, que no mesmo instante tem presente todos os pontos; é sobre a circunferência que incide a dificuldade do caminho: no ponto central, tudo está presente ao mesmo tempo).
Por causa do seu caráter donativo e comunicativo de vida, de fé, de certeza, e portanto de estímulo a fazer, de esperança, e de amplitude infinita de dedicação, ou caridade, sempre se diz “o dom do Espírito Santo”. Ao invés de “dom do Espírito Santo”, podemos usar mais brevemente – como na maioria das vezes acontece na linguagem daqueles que fizeram a experiência daquele acontecimento e daquele encontro – o termo “graça”, que é especialmente significativo. Não existe palavra mais bela do que esta: “graça”, que implica uma riqueza sem fim, com uma mobilidade e uma criatividade sem possibilidade de limites, e onde tudo é por amor; por amor ao destino do outro, assim como para Cristo tudo foi por amor pelo destino dos homens e das coisas no desígnio do Pai, do Mistério. O Mistério domina a palavra “graça” na medida em que ela atravessa a vida do homem: “A graça – diz Péguy – é ainda mais misteriosa e mais profunda que a beleza. A graça é ainda mais arbitrária, mais livre, mais soberana, mais perfeitamente ilógica [para além da nossa lógica, sem razões, irredutível a qualquer cálculo]; inquietante também, como tudo o que é doado gratuitamente [o que é doado gratuitamente é inquietante, porque chama para algo em que não tínhamos pensado, em que não pensaríamos, em que sobretudo não queríamos pensar]. Poder da graça. Poder eterno do Sangue eterno, de um Sangue eterno, o de Jesus Cristo”.
Indiquemos brevemente agora os passos da obra do Espírito, dessa energia que entra em nós: uma energia tão real que se torna experimentável. E é a partir da sua experimentação que ela se revela e se mostra na sua certeza. Porque o acontecimento de algo Outro na nossa vida se torna experiência humana, segundo todas as características próprias de uma experiência humana, dominada por aquela abertura misteriosa à última fronteira, por aquele ponto de fuga, que vai incomensuravelmente além. A experiência é o acontecimento em nível humano; e o homem parte sempre de uma experiência.
9. A valorização do início
O choque do Espírito começa com o encontro, no coração daquele acontecimento que começou a nos mover, mesmo com toda a nossa fragilidade e incoerência – de modo que o esquecemos logo depois, e em seguida o retomamos novamente (porque Deus não entra nunca em uma vida senão para levar a termo a Sua obra). Vejamos agora a sucessão dos passos desse choque.
É dom do Espírito, é graça, a valorização do encontro. Por isso, confortemo-nos se ainda não entendemos: a valorização do encontro, daquele momento inicial, é uma graça, não uma capacidade nossa. Não podemos dizer, depois do primeiro impacto e da primeira sutil e confusa emoção: “Entendi!”, “Estou de partida!”. Mas como? Para onde? Quem nos faz entender e partir é um Outro. Olhamos para trás e não sabemos dizer o que é: é o dom do Mistério, é a graça. E para onde vamos? Não sabemos! Não sabemos para onde somos lançados, devemos seguir o ímpeto, a emoção, o empurrão inicial.
É dom do Espírito entender que o encontro que nos moveu é como uma semente, o início de uma realidade nova que deve se desenvolver; uma realidade que pode ser experimentada, deste mundo, que, como diz São Paulo, coincide com um modo novo de entender e de amar, comer e beber, velar e dormir, viver e morrer.
Mais precisamente, é um dom do Espírito que nos leva a pressentir que o encontro que fizemos é uma promessa. Esta é a grande palavra com a qual o próprio dom do Espírito antecipou em milênios o que deveria acontecer. E o conteúdo de uma promessa é algo que ainda não nos é dado ver, que não podemos saber como é, como uma semente da qual nunca vimos o crescimento (um homem que nunca tivesse visto um cipestre, vendo a sua semente não poderia chegar a imaginar o cipestre).
É graça entender que o encontro – o acontecimento inicial – é uma semente, é uma promessa, destinada a invadir a nossa existência. O Benedictus que recitamos nas Laudes é a primeira descrição dessa promessa na história, e o Magnificat das Vésperas é como que a mesma visão, mas realizada por uma plenitude já atingida.
O início é uma promessa, uma semente, que lentamente se desenvolve e invade a nossa existência, não por uma lógica nossa, não por uma coerência nossa, mas pela força do próprio dom inicial, pela força do mesmo amor estranho que nos fez experimentar o encontro no qual Cristo se fez presente e nos provocou. O momento em que o mistério de Deus, ou melhor, o mistério de Cristo é pressentido como pertinente à própria vida, como – de algum modo, não podendo imaginar o “como” – útil e ligado à vida, é dom do Espírito Santo, é graça.
O dom do Espírito faz com que nos sintamos responsáveis por esse início. Podemos também não aderir a ele e procurar apagar ou cancelar aquilo que aconteceu: ele, porém, suscitou em nós um princípio de responsabilidade, em relação ao qual toda a nossa vida será julgada, será feliz ou não, terá êxito ou não (onde a palavra “êxito” é usada em uma acepção bem distante daquela dos Humanistas: é o êxito diante do Eterno, o êxito verdadeiro, que se realiza mesmo quando um homem é morto, como Cristo).
É na responsabilidade que de qualquer modo assumimos diante do encontro que fizemos que começa a história da nossa personalidade, isto é, que adquirimos um rosto inconfundível e irredutível, e nos tornamos protagonistas novos do tempo e do espaço, ativos e corajosos “reconstrutores de cidades destruídas”, como diz Isaías (58, 12).
É graça do Espírito que surja esse senso de responsabilidade, no qual somente emerge o início de um protagonismo novo. De fato, a personalidade não adquire consistência e forma pelo fato de obtermos um diploma ou um bacharelado, exercermos uma profissão, iniciarmos um relacionamento com uma mulher, etc., mas só na responsabilidade diante do destino. Essa responsabilidade, portanto a personalidade, surge pela graça de um encontro e pela graça que nos faz permanecer tocados por ele, que nos faz pressentir o seu valor, que nos faz, de algum modo, procurar segui-lo. Na responsabilidade diante do choque do dom do Espírito – diante do encontro – começa o protagonismo do homem no mundo. Protagonista no mundo é quem o muda, ou seja, quem contribui – pouco ou muito – para mudar o mundo segundo o seu destino, segundo uma humanidade mais verdadeira, maior e mais bela, ou seja, mais carregada de espera dAquele que deve vir (caso contrário, qualquer movimento só introduziria uma outra mentira).
10. O conhecimento de Cristo
Indiquemos o segundo desdobramento do dom do Espírito. É graça o aprofundamento da experiência do divino que gerou o encontro. O aprofundamento do encontro não deriva do nosso estudo ou da nossa força de vontade, que faz de nós mestres de moral, mas é fruto do dom do Espírito (que suscitou o início). É o dom do Espírito que nos permite realizar um aprofundamento da experiência do encontro, em que se torna cada vez mais consistente e fascinante o conhecimento de Cristo. A graça do encontro – o encontro vem de algo Outro, por isso é graça, é puro dom de um Espírito, de uma energia que possui o mundo e manipula a história – leva ao conhecimento de Cristo como consistência de tudo e como início de um povo novo.
a) Cristo como consistência de tudo.
“Tudo nEle consiste”, diz a Carta aos Colossenses. Cristo é, por isso, a minha consistência, aquilo de que, em última instância, eu sou feito.
Se sou atento, quer dizer, adulto, não tenho nenhuma evidência maior do que esta: neste instante eu não me faço por mim, não me dou a realidade que sou (cf. o capítulo X de O senso religioso). Em última instância, eu sou feito de um Outro. A esse Outro eu digo “Tu” com temor, reverência e adoração. Esse “Tu” é o Mistério, que se fez homem. Por isso, o homem-Cristo é aquilo de que eu, em última instância, sou feito: é um ser possuídos totalmente, que uma vez descoberto e aceito, coloca a possibilidade da paz dentro dos limites da vida, de modo que dor e mal são vencidos em um abandono amoroso e gratuito.
Eu digo sempre a quem inicia um relacionamento afetivo (normalmente, essas relações eludem ou obscurecem a relação, talvez antes timidamente descoberta, com Cristo): “Você está apaixonadíssimo pela sua namorada. Mas, diga-me, em última análise, de que ela é feita? De algo Outro, como você. Não há nada mais evidente, neste momento, quem quer que você seja. E quem fez com que você a encontrasse? O Senhor da história, Aquele que tem nas mãos todos os fios do tempo e do espaço, que é O mesmo de que ela, em última instância, é feita: Cristo. E quem a conservará amanhã? Quem fará com que ela não desapareça? Ele. Ele faz com que você a encontre, faz dela a sua companheira eterna, para sempre. Ele. Então, não pode não vir em você uma onda de ternura para com Cristo, ainda maior do que a ternura que você tem para com essa garota”. A realidade na sua verdade é sinal de “algo outro”, é sinal de Cristo, “consistência de todas as coisas”. Nós fomos chamados a abordar e viver tudo segundo a sua verdade, ou seja, como sinal de Cristo.
Cada um de nós, que foi tocado pela graça do encontro, é chamado a participar dessa “novidade de medida” do ser, a olhar e a aproximar-se de tudo segundo uma perspectiva infinita, que é aquilo pelo qual o homem é feito (a razão é feita para algo maior do que ela, para o relacionamento com o infinito; e o coração é feito para algo maior do que podemos imaginar, tanto é verdade que até a paixão mais forte cansa). Tentemos imaginar como Cristo, naquele instante de silêncio, quando estava sobre o monte, olhava para todas as pessoas que chegavam: o Seu olhar era sem fim! E quando se dirigia a uma mulher como a Samaritana: pensemos que impressão devia invadir aquela pobre mulher diante daqueles olhos que olhavam para ela segundo uma perspectiva sem fim.
b) Cristo como início de um povo novo.
Um povo nasce de uma pessoa, como o povo hebreu nasceu de Abraão. Cristo é o início de um povo novo, do povo novo definitivo.
Como diz São Paulo, no capítulo 3 da Carta aos Gálatas: “Vós todos que fostes batizados vos tornastes uma só coisa em Cristo. Não há mais nem judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, mas todos vós sois um – “eis” –, uma pessoa só em Cristo Jesus”. Por isso, pertencemos uns aos outros porque pertencemos a Ele. Todos aqueles que O reconhecem – que Ele toca e que O reconhecem – formam um povo novo: nós somos, portanto, o início de um povo novo. E é sempre um início, até o fim. Mas esse povo, pequeno ou grande que seja, segundo o mistério da vontade de Deus, percorrerá a história. Chama-se Igreja: homens reunidos para um objetivo, chamados a reconhecer a verdade e a fazer o bem. A Igreja, diz São Paulo na Carta aos Efésios, é o corpo de Cristo, dAquele que se esconde dentro do encontro que fizemos, dAquele que se comunicou a nós no acontecimento que nos tocou. “A Igreja é o Seu corpo, a plenitude dAquele que se realiza inteiramente em todas as coisas”.
N.B.: É na memória que o dom do Espírito nos faz penetrar as profundezas de Deus. As profundezas de Deus são as profundezas de cada criatura: cada criatura é como o início de uma perspectiva infinita. É através da memória que o dom do Espírito nos faz penetrar a natureza verdadeira do relacionamento com todas as coisas, ou seja, nos torna puros.
11. Totalizante e católico
A terceira passagem consiste em duas implicações importantes do dom do Espírito.
a) Aquilo que o Espírito nos faz aprofundar é totalizante: o encontro é um acontecimento totalizante, isto é, ele é a forma de todos os relacionamentos. O encontro que fizemos é como uma luz, uma energia que ilumina todos os relacionamentos, dobra-os e os molda, como um artista, segundo a forma que devem assumir. Esta é a origem da pureza ou, o que é a mesma coisa, da verdade dos relacionamentos. A verdade de um relacionamento é a adequação do seu nexo com o infinito – porque nem mesmo pegar uma caneta para escrever é sem relação com o infinito. “Sobre cada instante paira o peso do eterno”, dizia a poetisa Ada Negri, que se converteu por essa descoberta. A afirmação do valor sem limites, eterno, infinito, mesmo do menor instante que o homem possa considerar, é, de fato, a prova do divino, é dom do Espírito. Não pode existir semelhante afirmação a não ser em uma concepção divina.
Lembro-me de que há muitos anos, logo depois da guerra, ouvi uma entrevista radiofônica que o primeiro jornalista admitido em um convento de clausura fez à monja mais jovem. Como jornalista esperto que era, o entrevistador fez perguntas muito difíceis de responder. Seria preciso uma grande experiência de vida para ter esperteza suficiente para superar e eliminar a maldade das perguntas. Ouvir as respostas daquela jovem, que ainda não tinha nem dezoito anos, foi uma surpresa: vibravam de uma sabedoria surpreendente. De onde vinha? Do costume de perceber o eterno dentro do instante efêmero e de abraçar todas as coisas juntas, porque não podemos julgar nem mesmo um fio de cabelo senão a partir da totalidade do organismo a que ele pertence. Então, podemos entender por que uma mulher que vive em clausura pode ser intensa e alegre, precisa e realizada, como um grande artista, o artista do seu tempo e dos seus modos.
“Ó Deus – nos faz dizer a Liturgia –, que preparastes bens invisíveis àqueles que Te amam, infundi em nós a doçura do Teu amor, para que, amando-Te em tudo e acima de tudo...” Tudo, omnis, significa todas as coisas, uma por uma, sem excluir nenhuma. A pretensão de Deus é totalizante: um Deus que não tivesse essa pretensão totalizante simplesmente não seria mais Deus. E Aquele que se comunicou a nós no acontecimento do encontro é Deus feito homem. Por isso, o encontro que fizemos tem uma exigência e uma pretensão totalizantes sobre a nossa vida, sobre todos os seus aspectos expressivos: privados, públicos, interiores, exteriores, tanto diante da derrota quanto do resultado favorável. Para amá-Lo, não é preciso excluir nada. “Amando-Te em tudo e acima de tudo”: este “acima” não é alternativa às coisas, mas significa que todos os relacionamentos, com qualquer realidade ou pessoa, são definidos pela presença de Cristo, pela memória do relacionamento com Cristo; e, assim, todos os relacionamentos, de pobres, se tornam ricos; de incertos, se tornam certos; de inquietos, se tornam cheios de paz.
b) A segunda implicação do dom do Espírito é a catolicidade. O acontecimento do encontro é “católico”, ou seja, leva a nos aproximar de tudo e de todos com uma abertura sem limites. Na experiência do relacionamento com Cristo – reconhecimento e afeição – que o Espírito nos faz aprofundar, não há mais trégua e não há mais limites. “Tudo é vosso, como vós sois de Cristo”, dizia São Paulo: é a eliminação de qualquer medo e a racionalidade de qualquer risco. Dando-nos um critério claro de inteligência e de afeição, o Espírito nos abre a tudo e a todos sem limites.
O acontecimento do encontro torna o homem que foi atingido por ele aberto a tudo segundo um “pré-conceito”, um ponto de vista, positivo e amoroso, de modo que, em todas as coisas que encontra, ele destaca, valoriza e utiliza, para uma construção nova do mundo, tudo o que há de bom, mesmo que seja um fio finíssimo dentro de um novelo enorme. A “catolicidade” descreve uma inconcebível abertura positiva a todo o real.
Daqui nasce um conceito novo, verdadeiro, de “crítica”, do qual São Paulo nos oferece a definição: “Panta dokimazete to kalon katekete”, avaliai todas as coisas, valorizai e ficai com o que vale a pena, com o belo, quer dizer, aquilo que é em função do Eterno, de Cristo, e por isso da salvação e da reconstrução do mundo. A atitude “crítica”, portanto, cristãmente falando, não tem nada de negativo, mas, exatamente ao contrário, vai à descoberta corajosa e amorosa de qualquer reflexo da verdade que se esconda até nas menores coisas. Costumo contar a esse respeito um episódio atribuído a Cristo por um agraphon, segundo o qual Jesus viu, quando atravessava os campos, a carcaça apodrecida de um cão; São Pedro, que estava diante dele, disse: “Mestre, afasta-te”; mas Jesus, ao invés, foi adiante e, parando um instante, exclamou: “Que dentes brancos!”. Era a única coisa boa naquele corpo apodrecido. Essa é a crítica! Não hostilidade contra as coisas, mas um abraço que exalta o valor imanente a cada coisa.
O desenvolvimento desta capacidade crítica no relacionamento com tudo e com todos gera uma visão nova do homem, do mundo e da história, ou seja, uma cultura nova. Uma cultura nova só pode ser gerada quando se apóia naquela “crítica” que a catolicidade do ímpeto que o dom do Espírito faz surgir realiza. Tudo o que há de bom no mundo, ainda que sob um monte de detritos e de maldade, é valorizado para uma nova construção do mundo. Esta é a cultura cristã, cuja definição se encontra na Carta aos Romanos (12, 1-2).
12. “Enviados”
Cada um de nós foi escolhido através de um encontro gratuito para que se torne ele próprio encontro para os outros. Portanto, é para uma missão que nós fomos escolhidos, assim como Cristo foi enviado pelo Mistério eterno para uma missão – enviado, missus: “Como o Pai me enviou, eu também vos envio”. Aquilo que nos foi dado e continuamente nos é dado é “para” o mundo; é dado a nós para que em nós se reflita e se comunique aos outros, não segundo os nosso cálculos, mas como Deus quer.
Não se pode falar da vida humana de modo tão cheio de paz e de exaltação, tão cheio de certeza, de esperança e de gratuidade, senão tendo sido investidos pelo acontecimento pelo qual fomos investidos, senão pela graça do encontro com a presença de Cristo. Por isso, amigos, ajudemo-nos.