Em um mundo depois de Jesus sem Jesus
CENTRO CULTURAL DE MILÃOTrechos da colocação do filósofo francês Fabrice Hadjad durante a conferência “Modernidade contra o modernismo” no Centro Cultural de Milão no dia 3 de março de 2011
Péguy observa que os tempos de hoje, embora difíceis, não são piores que os de ontem. São até melhores já que os tempos de hoje existem, enquanto que os tempos de ontem não existem mais e os tempos de amanhã não chegaram ainda. Péguy escreve: “(...) estava feio o tempo e (...) até uma tempestade no lago de Tiberíades; e Pedro (...) como pretexto para dizer que não mais poderia pegar peixes. Disse (...) que estariam mortos. (...) Também feio era o tempo sob os romanos, naquele cumprimento da dominação romana. Mas Jesus não recuou. Não renunciou. Não se refugiou (...) na desgraça dos tempos. Existem também perturbadoras analogias entre o tempo dos romanos e o nosso; entre o tempo romano e o tempo que se tornou o tempo moderno: mais que semelhanças, mais que analogias singulares; como um mesmo andamento: uma mesma indicação: um mesmo encaminhamento”.
“Jesus pertence à mesma raça do último dos pecadores e o último dos pecadores pertence ao mesmo mundo de Jesus. É uma comunhão”. A palavra “comunhão” aqui soa de modo particular, visto que são amigos de Comunhão e Libertação que me convidaram. Péguy oferece um comentário para estes dois termos, um comentário que sempre impede Comunhão e Libertação de fechar-se em si mesma: se a comunhão é o princípio da libertação, ocorre, então, antes de tudo, viver uma comunhão com o prisioneiro, com o escravo, com aquele que tem necessidade de ser libertado. É muito simples: o salvador deve viver no mesmo mundo do prisioneiro e empreender uma comunhão imperfeita com ele para depois poder entrar na comunhão plena. Este é, portanto, o outro paradoxo que nos deixa entender a primeira frase de Péguy que citei: o mundo sem Jesus é exatamente o mundo em que Jesus entra. São Paulo o exprime de maneira diferente: Lá onde abundou o pecado, superabundou a graça (Carta aos Romanos 5, 20). O mundo sem Jesus, o mundo que se alia para coloca-lo na cruz, é potencialmente o mundo que mais está com Jesus, porque é o que mais tem necessidade dele e porque, secretamente, em tudo o que há de positivo, existe já nele.
Por outro lado, a tradição não é um conservadorismo. Um bom exemplo nos é dado, de moto próprio, por João Paulo II, Ecclesia Dei afflicta. Este texto decorre do cisma provocado por Monsenhor Marcel Lefebvre e aqueles a quem chamamos de “integralistas” ou “tradicionalistas”. Qual é o princípio deste cisma? Não o amor pela tradição, diz João Paulo II, mas o amor pelo conservadorismo, ou seja, por uma forma de conservação que quer manter tudo absolutamente intacto, que, portanto, petrifica ao invés de conservar em vida. Vocês bem sabem: se querem conservar tudo de um ser vivente, e não podem mantê-lo em vida, então são obrigados a congelá-lo. “A raiz deste ato cismático é individualista, em completa e contraditória noção de tradição. Incompleta porque não leva em conta suficientemente o caráter vivo da tradição que -- como ensinou claramente o Concílio Vaticano II -- progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo”. O tradicionalismo se contrapõe à tradição porque mata o organismo vivo para se tornar adepto do fóssil. A verdadeira tradição não consiste em conservar tudo o que se fazia ontem mas no transmitir o essencial. E, para poder transmiti-lo, precisa saber reconhecer os sinais dos tempos e, portanto, adaptar-se a certas novas condições de transmissão. Josef Pieper escreve com força: “Uma consciência autêntica da tradição nos torna livres e independentes frente a aqueles que pretendem ser os “guardiões”. Pode acontecer que estes famosos “defensores da tradição”, exatamente pelo fato de que se limitam a formas históricas, ao contrário, obstruam aquela que é a verdadeira e necessária transmissão (que não pode acontecer se não for com formas históricas mutáveis)”.
A verdadeira tradição é uma relação viva com o mistério, na medida em que esta relação é recebida e transmitida, como a palavra e a vida, através da palavra e da vida, desde a origem. A tradição é, portanto, ainda mais que crítica porque é confronto com o que foge à crítica, com o que nos supera, com o que nos faz mais questionadores do que já o somos, com o que nos chama mais do que sabemos responder. Também nisto a tradição é mais moderna que a modernidade; está sempre à frente, na medida em que se baseia sobre a esperança; não se rege pelo futuro próximo mas pelo eterno e, portanto, sobre o que ressurge até depois do fim dos tempos. Nisto, a tradição é ainda mais jovem que a modernidade porque a tradição pressupõe que os pais são, antes e acima de tudo, filhos e, portanto, crianças: não tiveram a iniciativa da palavra, não inventaram a vida, mas a receberam. O complexo de Édipo existe apenas fora da tradição. A revolta dos Titãs existe apenas fora da tradição. No seio da tradição, o filho não tem razão nenhuma para matar o pai porque descobre que seu pai é também filho, que toda originalidade pura, todo verdadeiro gênio é sempre filial. Porque ser filho do Eterno é infinitamente maior que ser pai por um breve momento. É o que escreve também Josef Pieper a propósito da esperança: “A juventude do homem que aspira ao Eterno é indestrutível por sua natureza. Não está exposta nem ao envelhecimento e nem à desilusão”.