Intervenção de padre Julián Carrón ao XXIV Congresso Eucarístico Nacional

XXIV CONGRESSO EUCARÍSTICO NACIONAL
Julián Carrón

    "Se das idéias eternas,
    A única és tu, que de modo sensível
    Desprezou do eterno juízo ser vestida,
    E entre despojos caducos
    Provar os tormentos de funérea vida";


A genialidade do poeta Leopardi expressou, nesses versos da poesia À Sua Dama, o verdadeiro desejo do homem: que o Mistério se torne companheiro. Na relação com a mulher torna-se evidente ao homem a natureza própria do seu eu. Nenhuma outra realidade, como a mulher, desperta no homem o desejo de totalidade, constituinte do seu eu. Quanto mais bela for a mulher, quanto mais determinante for a sua presença para a própria vida, tanto mais vem à tona o desejo da Beleza (com B maiúsculo), o desejo de encontrar aquela Beleza capaz de responder a esse desejo de totalidade que o amor à mulher leva a intuir e com ele sonhar. Por meio do que Leopardi chama de “sublimidade do sentir” torna-se evidente, para nós, o “mistério eterno do nosso ser”.
“Se das idéias eternas /a única és tu": esse é o grito natural do homem, é o grito do homem inspirado na natureza, é o grito, a prece do homem para que Deus se torne seu companheiro” (L. Giussani, As minhas leituras, Ed. Rizzoli, Milão 1996, p. 30).
Mas, diferentemente do que achava Leopardi, o Mistério, a Beleza não desdenhou revestir “o eterno juízo” de carne humana, nem “de provar os os tormentos de funérea vida”, e se tornou Homem. Assim, fez-se companheiro do homem, e esse é justamente o desejo de todo ser humano. Por isso, quem O encontra, acha aquele “tesouro” de que fala o Evangelho e que vale mais do que qualquer outro bem. São Paulo é um bom exemplo do que acontece na vida quando alguém encontra Cristo: “O que podia ser para mim um ganho, considerei-o uma perda frente à sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por quem deixei para trás todas essas coisas e as considero lixo, a fim de ganhar Cristo” (Fl 3,7-8).
O Mistério entrou na história, revestiu-se de “modo sensível” para responder àquela exigência de se encontrar aquela Beleza sem a qual, como dizia Dostoievski, os homens cairiam no desespero. “Se os homens viessem a ser privados do infinitamente grande, eles não poderiam mais viver e morreriam tomados pela desesperança” (cf. F.M. Dostoievski, Os demônios, Editora 34, São Paulo 2004; nde). Hoje nós somos testemunhas da dimensão do drama de quem se recusa a acolher o infinitamente grande, até que ponto o homem sufoca-se até à morte em seu limite, e sucumbe ao desespero.
Para reabrir a porta de cada homem, fechada pelo pecado, que deixou do lado de fora o Mistério, Jesus deu a própria vida, deu-a por nós. Sua paixão e morte testemunham até onde chegou o amor de Deus pelo homem. “De fato, Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho unigênito, para que aquele que nele crê não morra, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Com a sua vitória sobre a morte, pela ressurreição, Jesus entrou no mundo definitivo, onde a morte não tem mais nenhum domínio sobre Ele, e por isso pode ser companheiro, para sempre, da nossa vida. “Eu estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,20). Memória disso é a Eucaristia. “Todo o Tríduo Pascal (...) como que se encerra, se antecipa, se ‘concentra’ para sempre no dom eucarístico. Nesse dom Jesus Cristo entregava à Igreja a atualização perene do mistério pascal. Com ele instituía uma misteriosa ‘contemporaneidade’ entre esse Triduo e o fluir de todos os séculos” (Ecclesia de Eucharistia 5). Na Eucaristia, pois, “o único e definitivo sacrifício redentor de Cristo torna-se sempre atual no tempo” (Ecclesia de Eucharistia 12).
Para se fazer presente na Eucaristia, Cristo serve-se da “pobreza” dos sinais sacramentais: pão e vinho. Desse modo, fica mais evidente que o Mistério – diferentemente do que pensava Leopardi – não se negou a se identificar com a forma sensível, nesses dons. “Na oferta de Cristo – escrevia há alguns anos padre Giussani – a realidade carnal, o pão e o vinho, tornando-se mistério da fé – ou seja, o corpo e o sangue do Verbo encarnado –, literalmente coincidem com o Mistério do Filho de Deus. O Mistério coincide com o sinal: onde é que essa suprema e adorável unidade, que só se pode afirmar com temor e tremor – o Mistério se identifica com o sinal, e assim o sinal, a realidade sensível, a carne e os ossos não são contra o espírito –, onde é que isso acontece sumamente, senão na Eucaristia?” (L. Giussani, “Eucaristia: a grande oração”, in Passos, maio de 2005, pp. 1-7).
Mas, na pobreza desses dons quem vem ao encontro do homem é o próprio Cristo. De fato, por meio deles nos é oferecida aquela novidade que é Ele mesmo: “Toda vez que o Filho de Deus se reapresenta a nós na ‘pobreza’ dos sinais sacramentais, pão e vinho, é colocada no mundo a semente da história nova” (Ecclesia de Eucharistia 58). É, pois, a liberdade de Deus que me alcança por meio dos sinais sacramentais e, por isso, provoca a resposta da minha liberdade. Algo muito distante da repetição de um mecanismo. É o drama da relação entre Cristo e o homem que se reacende toda vez que alguém se aproxima conscientemente, como um mendigo, para participar do banquete eucarístico.
Desse modo, Cristo desafia constantemente a liberdade do homem, que é chamado a acolher o dom de Cristo para poder viver. Consciente de que a sua vida só pode se realizar no acolhimento do infinitamente grande, o homem se encontra diante da verdadeira escolha: acolher ou rejeitar Aquele que o realiza e que vem ao seu encontro pela pobreza desses dons. “O sacramento é realmente o gesto divino de Cristo ressuscitado que bate à porta da personalidade, urge-a, a menos que seja o homem a não querer acolhê-lo, quando então ele se detém na soleira” (L. Giussani, Por que a Igreja, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro 2004, p. 318). “Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouve a minha voz e me abre a porta, eu virei a ele, cearei com ele e ele comigo” (Ap 3,20). “Ó sacramento do amor de Deus!” – exclama santo Agostinho – “Quem quiser viver tem onde viver, tem com quem viver. Aproxime-se, creia, una-se ao corpo de Cristo para se tornar vivo” (in Io. Ev. tr. 26.23).
Se na simplicidade do coração o homem se deixa vivificar pelo corpo e sangue de Cristo, torna-se uma só coisa com Ele. A sua união com Cristo, junto com a união dos outros, que, como ele, se aproximaram como mendigos que se deixam preencher pela Sua riqueza, gera aquela comunhão que é o testemunho maior da força e da verdade de Cristo. Nesse sentido, a Eucaristia gera a Igreja. A plenitude de vida que Ele comunica e da qual nos torna partícipes é a origem dessa unidade que começou a abolir as grandes divisões do mundo antigo: “Não há mais judeu nem grego; não há mais escravo ou livre; não há mais homem nem mulher, porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Por isso, a comunhão cristã desperta tanta admiração. “A comunhão cristã – escreve J.A. Möhler – é um contínuo milagre do Espírito divino, uma contínua demonstração da sua presença e da sua obra direta; ou melhor, é a demonstração mais tocante para quem é sensível ao que é verdadeiramente grande e elevado” (J.A. Möhler, A unidade na Igreja, Città Nuova, Roma 1969, p. 221).
Essa comunhão, que tem como fonte inexaurível a sua Presença, torna-se assim o lugar que regenera a vida, o lugar onde cada um pode experimentar uma novidade de vida, que o torna verdadeiramente “homem novo”. Porque “de fato não é a circuncisão que conta, nem a não circuncisão, mas o ser nova criatura” (Gl 6,15). É essa novidade da criatura que testemunha o Cristo. Assim, Cristo, de novo, não se recusa a se identificar com um “modo sensível” para dar prosseguimento, de dentro da história, ao diálogo com o homem.
Colocando diante de todos a plenitude de vida de quem O acolhe – porque, como nos recordou Bento XVI na Praça de São Pedro, no dia 24 de abril, de quem Lhe abre a porta, “Ele não tira nada, e doa tudo” – , Cristo continua a desafiar o desejo de Verdade, de Beleza, de Justiça que permanece no coração de cada homem, talvez escondido debaixo de muitos escombros. Assim, Cristo continua a mendigar, através da única forma adequada à natureza corporal do homem (como genialmente intuiu Leopardi, o “modo sensível”), a nossa liberdade para poder realizá-la, isto é, para atraí-la de uma maneira poderosa – como só a forma sensível é capaz de fazê-lo – de modo a salvá-la.