No encontro com aquele homem, a percepção do mistério
Palavra entre nósNotas de um diálogo de Luigi Giussani com um grupo de Noviços dos Memores Domini1. Milão, 19 de dezembro de 1998
Queremos fazer uma assembléia para esclarecer o passo que estamos dando, ou seja, a relação entre a razoabilidade de começar e a questão da fé2.
Aceitei vir aqui, para responder a três perguntas sobre os dois primeiros capítulos de É possível viver assim? Portanto, comece quem acha que tem uma pergunta que diga respeito a esses dois capítulos.
Eu quero conhecer o Destino, quero conhecer Cristo cada vez mais e tenho urgência de que nesse trabalho tudo de mim esteja envolvido. Vimos que a fé é um método de conhecimento com o qual se pode conhecer uma realidade que não pode ser conhecida diretamente, nem por evidência, nem por análise da experiência. Eu me perguntei: mas não se conhece o Mistério também por intermédio de toda a realidade, na medida em que essa é sinal? É como se a dinâmica da fé se tornasse mais ampla. Mas em uma passagem do livro se diz que a fé tem a ver com o nível das pessoas: tenho fé em uma pessoa e não em uma coisa3. Gostaria de entender isso melhor.
Não se pode ter fé na natureza: no choupo, nas baleias, etc. Não se pode ter fé nessas coisas. Mas essas coisas, nas quais não se pode ter fé – diremos depois por que –, são sinal de uma outra coisa, supõem, para ser, para existir, para serem vistas por você e por mim, uma outra coisa. Até esse ponto deve chegar a razão do homem, que é consciência da realidade. Consciência da realidade: a baleia é uma realidade, a estrela que não se vê é uma realidade, o céu é uma realidade, e é uma realidade também o turbilhão de desastres que acontecem no mundo – uma hora depois de ler os jornais ou de ligar a TV às seis da manhã para ver as notícias no canal da Suíça, a pessoa se introduziria no mundo com a alma em pedaços, não querendo ouvir quase mais nada; no entanto, é por meio daqueles indícios, das circunstâncias em que vivemos, que o Senhor nos indica o caminho.
Ora, percorrendo o caminho, percorrendo a estrada, encontro num certo dia, em um restaurante de rodovia, um estranho – que nunca conhecera, nunca pensara e nunca imaginara –, que vem de fora da minha região, um estrangeiro, que está conversando enquanto come. Estamos no restaurante de estrada, estou comendo, e há três pessoas à mesa, em frente a mim, que falam, dizem alguma palavra que me interessa. Então aguço o ouvido e ouço, entre outras coisas, que um deles diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” 4. Enquanto comiam! E os outros dois, a partir desse momento, não falaram mais. Só ele falava! Depois, quanto terminaram de comer, foram embora juntos – eu estava sempre perto deles, olhava-os sem parar – e tomaram uma estrada que ia para o interior.
Se eu estivesse junto com os dois – o terceiro, junto com os dois, o quarto, contando aquele homem que falava –, teria dito, aliás, primeiramente teria me calado, mas depois teria dito: “De onde você vem?”. “Venho de Nazaré”. “E o que você faz?”. “Ah, eu também sou pescador”. “Mas como você pôde dizer aquilo que disse?”. E ele explica.
Pois os homens não sabem o que é Deus. Todos podem falar de Deus. Enquanto você não definir nada, ou seja, não disser: “Deus é assim”, tudo poderá ser posto em questão. Mas “ouvindo esse homem – dizia um dos dois ao outro, quando voltavam para as suas casas, deixando a vila onde ele estava –, fiquei impressionado. Fiquei impressionado por um homem dizer uma coisa como essa. Como é possível? Ou é louco ou então há uma outra coisa que eu não conheço. ‘Eu sou o caminho, a verdade e a vida [o caminho certo para um objetivo certo, verdadeiro]’: como é possível que um homem diga isso?”. Mas depois o outro diz: “Sim, sim, eu também não entendo, não entendo como isso é possível, mas ele fala como os nosso profetas, como os livros dos nossos profetas [pois eles também tinham a Bíblia!]. Vai saber!”.
Depois eles o visitam outras vezes, torna-se habitual para eles andar com ele, pois estavam cada vez mais atraídos por aquilo que ele dizia. Ele tocava coisas que ninguém punha em questão, ou porque não as entendiam ou porque não as ouviam por aí. Mas falava também de coisas sobre as quais todos tinham uma certa idéia. No entanto, ninguém jamais dissera que não se pode conhecer sem amar5: até a evidência mais clara assume o significado do que o coração permite ouvir.
Aliás, coração: que quer dizer “coração”? Como nós definimos o coração?
É aquele conjunto de exigências e evidências com as quais o homem é jogado na comparação com a realidade6.
E o que é a realidade? É aquilo de que tudo é feito. Tudo o que existe e acontece é feito: como as coisas são evidentes! Mas, mesmo sendo evidentes, não se sabe como elas “existem”, não se sabe como elas podem ser assim. É claro que você não se fez por si mesma. E então? Você existe e não é feita por si mesma. A maior evidência, a descoberta maior que eu, que um homem pode fazer é esta: entender que sou nada e no entanto existo7. Só nós dizemos essas coisas: não há ninguém que as diga em qualquer outro lugar da sociedade de hoje, mesmo sendo tão evidentes. São as primeiras coisas evidentes. Não há nada mais imediatamente aceitável do que isso.
Um outro exemplo. Em uma cidadezinha da região do Trivêneto, de ambiente extremamente católico, havia uma pessoa que, desobedecendo sua mãe, fora encontrar, em um certo boteco numa cidade vizinha, um grupo de três ou quatro jovens agitados de que ele gostava. Ia lá, e isso, com o tempo, fez com que ele não fosse mais à igreja aos domingos, e deixasse de escutar sua mãe. E sua mãe tinha mais amor por ele do que pelo seu destino (é o que dizemos nós, pois ela nem pensava nisso, não relacionava uma coisa com a outra). Enfim, esse rapaz se tornou Pasolini. Ele, tendo sugado do seio de sua mãe a tradição cristã genuína, reteve-a, tinha de vivê-la, era obrigado a vivê-la, mesmo interpretando tudo de uma maneira diferente: de acordo com a mentalidade do seu grupo. Assim, tornou-se Pasolini, um dos maiores escritores italianos, que documenta alguns valores que certo tipo de socialismo pregava. E era também poeta, um grande artista.
Naqueles anos, os comunistas (em minoria, não ainda no governo, como hoje, graças à ajuda dos católicos de esquerda), muito mais inteligentemente do que outros sujeitos da vida pública, faziam um grande alarde quando ajudavam os centros culturais, as mostras dos pintores, os centros onde o homem podia ser mais comovido pela realidade. Assim, a maioria das pessoas na Itália dizia: “São eles que têm a cultura nas mãos”. E quem tem a cultura nas mãos, com o tempo certamente vence. Com efeito, se hoje é tão difícil conhecer o cristianismo e, portanto, é tão difícil “acolhê-lo”, é porque o homem continuou a ser chamado para participar de certos gestos, e o único conteúdo do cristianismo, durante um século, pareceu ser o problema moral, o problema moral reduzido a apenas um ponto, ao sexto e ao nono mandamentos, ou seja, ao problema do sexo (como se vê hoje nos Estados Unidos). Pareceu nascer uma exceção em 1968, quando a revolução tentada pelos jovens – manobrados por aqueles que estavam por detrás ou acima deles! – disse que o mal era a maneira como se usava o poder, por isso era preciso criar-se uma posição mais forte do que a do poder para que eles tomassem o poder. Assim, em vez do sexto e do nono mandamentos, sublinham-se o quinto e o sétimo: a justiça social8. Mas, ao se defender a justiça social, passou-se depois como uma onda de maremoto sobre os outros campos.
Qual é a diferença entre o primeiro caso e o segundo? No primeiro caso, aliás, no antecedente a que me referi – o fato de que a baleia também “fala” do Mistério – só o senso religioso deve ser aplicado. E o senso religioso é a razão enquanto capaz de se tornar consciente da realidade segundo a totalidade dos seus fatores. Quando alguém vê uma montanha ou uma baleia, não pode dizer apenas: “É uma montanha”, “é uma baleia”, mas: “Quem a fez? Quem faz essas coisas?”. Como aquela menina, adotada aos três anos por um amigo meu absolutamente ateu, com uma esposa atéia (fizeram um grande gesto ao adotá-la): inteligente e desembaraçada, depois de dois anos com eles, com cinco anos portanto, não sabia “nem ler nem escrever”, no sentido “religioso” do termo, ou seja, não tinha nenhuma educação para os termos religiosos. Foram dar um grande passeio nas Dolomitas; a certa altura, não sei mais onde, aparece um cenário grandioso: os dois pais ficaram olhando, admirados; a menina – que tinha cinco anos! – volta-se para eles e diz: “Mamãe, quem fez essas coisas?”. Aqui teve início a sua retomada da religiosidade, da experiência religiosa, que está na nossa tradição cristã.
Portanto, aquilo de que se parte é a realidade, qualquer realidade. Até Jesus Cristo na cruz, ou Jesus ressuscitado no lago de Tiberíades pertencem à realidade, por isso são de certo ponto de vista objeto da razão, pois pertencem à realidade como coisa evidente, como fato que acontece. Com efeito, só a razão pode captar a presença daquilo de que se fala.
Segundo caso. Há encontros ou fatos ou uma realidade natural que pretendem ser “alguma coisa”. Como no caso de Pasolini. Pasolini encontrou um grupo de pessoas que se colocavam contra a sociedade de então, contra a cultura de então, como inovadores, como descobridores de uma coisa nova, de um caminho: “O caminho é este, é viver na sociedade, viver livres, fazendo o que vier na cabeça”, ou então “é viver na sociedade sendo livres; e, para ser livres, são necessários ‘condicionadores’ colocados pelo Estado socialista”. Enfim, as conseqüências de uma coisa que afirmamos, de acordo com a sua natureza, podem ser muitas; mas de qualquer forma existem conseqüências para cada coisa que se encontra e que interessa ao homem.
No exemplo dos dois ou três pescadores da Galiléia, aquele homem disse: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”: uma coisa tão transcendente, uma coisa tão totalizante, é uma pretensão do outro mundo! Eles poderiam ter dito: “Sabe lá o que esse aí quer dizer! É louco! ‘Caminho, verdade e vida’, que querem dizer ‘caminho, verdade e vida’?”. Caminho, uma maneira, um método para as pessoas serem verdadeiras, para alcançarem a verdade, aliás, para tornarem-se conscientes de uma vida que estava dentro. Mas eram três coisas muito grandes para que aqueles dois soubessem tirar suas conseqüências.
Tinham sido golpeados, e esse golpe que haviam levado, esse choque que haviam sentido, eles o puseram em questão muitas vezes. Por exemplo, naquela vez em que o convidaram para andar de barco com eles; mas antes ainda foram a uma festa de casamento com ele em Caná9; depois também o levaram para dar um volta no lago de Tiberíades. Foi pescar com eles mais de uma vez, até de noite. A certa altura, depois de três ou quatro vezes que o levavam, uma noite, houve uma forte tempestade: o vento era fortíssimo, quase um furacão; o lago de Tiberíades, nesses casos, faz ondas que puxam para cima até as pedras do fundo. Por isso aqueles pescadores, que conheciam bem o lago, devem ter errado saindo naquela noite ou, talvez, tenham ido porque ele estava junto. Seja como for, ele dormia! Parecia que nem o vento turbinoso, nem as ondas terríveis – que se erguiam de um lado e de outro do barco – o acordavam. Estava tão cansado que ficava ali, com a cabeça baixa, e dormia. Até que alguém se aproximou dele – deve tê-lo agarrado pelo braço, não sei, deve tê-lo sacudido, pois eram amigos – e lhe disse: “Droga, Mestre, estamos afundando!”. E ele: “De que vocês têm medo, homens de pouca fé?”. Assim, gritou ao vento e ao mar: “Calem-se! Acabem com isso!”. E o mar, a essas palavras, fez-se repentinamente calmo, sem mais ondas, só com o ruído da ressaca. Então aqueles homens, que já sabiam, já tinham conhecimento de onde ele morava, de quem eram seu pai e sua mãe, eles, que o conheciam, dizem: “Quem é este, afinal?” 10. Fazem mais uma vez a mesma pergunta que haviam feito dentro deles no início. Ele tinha ido comer com eles muitas vezes. Mas, entre alguém que come com você e alguém que diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” há um salto enorme! Para a razão, é um salto enorme: “O que este homem quer dizer?”. Todas as vezes, nas passagens mais decisivas do Evangelho, a vicissitude humana na relação com Deus é documentada justamente nestes termos: “Quem é este, afinal?”.
Imaginem depois de três meses. Eles se conhecem há três meses e se tornaram amigos; por isso se tratavam de maneira familiar. Tornaram-se amigos. Por quê? Porque havia algo naquilo que ele fazia que correspondia ao “coração”. E tudo isso era evidente. Mas o que não era evidente era o conteúdo, o que estava além da palavra: “Caminho, verdade e vida”, pois todos eles tomavam essas três palavras no sentido em que cada um de nós as usa, em que cada um deles as usava: não como uma totalidade, como palavras que representam e fazem viver tudo, abraçam tudo no homem, mas para descrever: “caminho”, uma passagem de Milão para Bérgamo, “verdade”, uma aproximação que todas as matemáticas e as ciências de alguma forma fazem, e “vida”, dá para entender logo a vida!
Enfim, passaram dois anos assim. Nesses dois anos, entre outras coisas, ele fazia milagres: de quando em quando – paf, paf, paf –, como se fosse nada! Como, por exemplo, aquele leproso que se tornou repentinamente são porque ele o havia tocado11. Ou como aquela menina que havia morrido, cuja família ele conhecia: foi à casa deles, fez com que todos saíssem do quarto da morta, e pouco depois abriu a porta dizendo: “Eis a sua filha”, e ela está revivida! 12
Portanto, a certa altura nenhum pretexto se sustenta, nenhum álibi pode ser criado: ou iam logo embora com ele ou teriam de “plantar” ali uma outra pergunta, como a que fizeram depois da noite no lago: “Quem é este, afinal?” – diziam-se entre si, não a ele.
A coisa se revelou quando Jesus disse a Pedro: “Quem as pessoas dizem que eu sou?”. “Sei lá, um charlatão, um profeta, um grande homem, um homem poderoso”. “E vocês, o que dizem?”. “Você é o Cristo, o Messias, o enviado do Deus vivo” 13. Simão dera essa resposta espontaneamente, quase brutalmente, não porque tivesse entendido o que dizia, mas porque sentia que essa resposta era mais proporcional ao que aquele homem era. A evidência daquele homem não encontrava objeções no coração.
É então que Jesus diz: “O Mistério me enviou a vocês, ao mundo, fazendo com que eu me encarnasse na humanidade de vocês...”. É um homem! É como se o Mistério tivesse tomado, na intimidade de uma mulher, a origem, o impulso original da vida (a semente a partir da qual depois se chega a 76 anos sem ter mais voz!); é como se o Mistério, querendo que o homem entenda o que Ele – Deus – é para o homem (que é sempre um indivíduo, antes de mais nada é um indivíduo, pois a pessoa é assim!), a primeira coisa que quis dizer-lhe é que o Mistério é bom. O homem, no seu vocabulário, só pode encontrar essa fórmula: “O Mistério é bom”. Ou uma outra ligada a essa: que o homem tem defeitos, nunca pode eliminar totalmente os seus defeitos (normalmente está mergulhado dentro deles, está afundado até o pescoço), mas o Mistério perdoa tudo. “Perdoar” não era a palavra certa: Ele tinha “misericórdia” de tudo. O que a razão entende de tudo o que o Mistério realiza é o perdão. Ao passo que não se entende nada da palavra misericórdia. Com efeito, o que se entende é uma redução humana. Mas espero que vocês leiam sobre isso também nos opúsculos dos nossos Exercícios14. Eu o sublinhei muito nestes dois anos, pois antes não entendia. Eu disse uma vez a alguém: “Eu lhes disse um monte de coisas verdadeiras que não entendia”. Se antes alguém me tivesse pedido: “O senhor pode nos explicar isso?”, eu teria respondido sem conseguir extrair toda a lógica interior das coisas que dizia; eu teria respondido tirando as conseqüências de uma evidência que tivera.
Então, pensemos naqueles que se relacionavam com Jesus como homem – como homem! –: se Jesus lhes tivesse perguntado o que pensavam dEle, teriam dito: “É um profeta, um gênio...”. Em vez disso, São Pedro diz uma frase que ouviu dEle e que não entende: “Você é Cristo, o Filho do Deus vivo”. Por isso Jesus lhe diz: “Muito bem, você é grande, Simão, pois o que disse agora não foi você quem disse, você não o descobriu com a sua razão, mas foi o Pai – ou seja, o Mistério como origem das coisas – que o atingiu: você disse uma coisa que o Espírito lhe sugeria, sem entender o que era, o que queria dizer” 15. Não enquanto palavra; enquanto palavras, Simão entendia o que dizia. E defenderia aquelas palavras, aquela expressão, mesmo diante dos fariseus, dos chefes. Simão era assim. Depois cedeu um pouco, mas Cristo o tomou e lhe disse: “Eu lhe dou tudo. Tudo aquilo por que vim eu dou a você; eu o dou a você, lego-o à sua ação” 16. E ele se uniu a outros apóstolos, os que eram mais seus amigos. É nesse ponto que o problema “fé e razão” entra em jogo.
Você disse que eles tomavam essas palavras, “caminho, verdade e vida”, como cada um as usava, não como uma totalidade...
Caminho, verdade e vida: Cristo não usou palavras estranhas para dizer o que queria dizer. Mas não se poderia pretender definir e entender, na sua complexidade última, o que ele queria dizer com uma palavra. Certamente, ficaram maravilhados com essas palavras, tanto que as guardaram de memória (pois o Evangelho é todo feito de memórias, de recordações17). Cristo disse: “Eu sou caminho, verdade e vida”, e o tempo fez com que os apóstolos entendessem em que sentido era o caminho, em que sentido era a verdade, em que sentido era a vida. É o tempo que permite entender o que uma palavra tem por dentro. Tendo chegado aos 75 anos, a coisa que mais Deus me fez entender é esta: “Tudo o que você fez, tudo o que nasceu a partir do seu primeiro passo no colégio Berchet, tudo o que se desenvolveu a partir daquela condição elementar [na qual eu nem estava seguro de me comportar bem diante do meu Diretor Maior ou do Bispo], tudo o que nasceu fui Eu que o fiz nascer”, diz o Senhor. Pois Deus é tudo em tudo18. Assim, publicaram em um livro as coisas que eu dizia, os artigos que eu escrevia antes de GS e nos primeiros anos de GS19; lendo aqueles artigos, todos disseram: “Mas tudo já estava ali, você já dizia tudo naquela época!”. Eu não entendia o que dizia, mas não era um impostor, dizia o que eu fazia, da maneira como o compreendia naquela época.
Os apóstolos, quando se deram conta da excepcionalidade da presença do Senhor, de certa forma estavam empenhados com a sua própria humanidade...
Eu disse que eles se impressionaram com o Senhor, pois, falando com Ele, o coração “se recuperava”: Ele era de acordo com o coração.
Então, depois que O encontraram, estar atentos ao coração coincidia com estar atentos àquela Presença: era ficando com aquela Presença que de certa forma o coração voltava continuamente a viver. Mas eu tenho a impressão de que de tempos em tempos nós voltamos atrás, ou seja, pensamos estar empenhados com a nossa humanidade prescindindo dessa Presença...
Sim, sim, muito bem. Só que eu imagino que, por exemplo, André e João, ou então Simão, ou Filipe, ou Natanael (são os cinco primeiros que ficaram na memória de São João20) podiam ter uma atitude diferente: um, porque ficara chocado e “inflamado”, queria realmente ir atrás daquele homem; outro, por sua vez, digamos, tinha uma família, tinha mulher e filhos: “Eu iria; se fosse livre, iria, mas...”. Quando se faz um encontro, esse encontro, a questão principal é que o Mistério, fazendo com que você encontre essa coisa, quer a sua vida de uma outra forma. Então, você deve segui-lo; segue aquele homem ali. Se ele lhe confirma a impressão que você teve no início, a certa altura você chega a se sentir pleno, quer apegar-se a Ele, quer referir-se a Ele mais do que a qualquer outra coisa. A pessoa se apega como uma planta trepadeira ao que a sustenta: apega-se! No dia seguinte, dois dias depois, três dias depois, você não abandona certos hábitos maus que tem (certos insultos a sua mulher, certa traição a sua mulher...). Mas, se alguém chegasse e lhe dissesse: “Esse homem não gostaria que você agisse assim”, e você: “Tudo bem, eu concordo com ele da mesma forma”, e ele: “Mas, então, você não é mais um dos nossos”, você diria logo: “Eu gostaria de ser um dos dele. Quero ser um dos dele! Quero mais ser dele que estar com as mulheres, como todos. Não posso mais fazê-lo, pois estou apegado a esse homem, sou mais apegado a ele que aos meus instintos ou às minhas reações ou aos meus momentos que considero anormais” 21.
O encontro assume um significado para a nossa vida de acordo com o tempo em que o mantemos. Para manter uma substância boa de um encontro, a impressão boa de um encontro, é preciso pensar novamente nele: o tempo que passa faz com que ele se torne mais claro e persuasivo. Talvez a pessoa não tenha isso claro na sua cabeça, mas, em última instância, tem uma profunda simpatia por esse encontro, como expressão do coração. Pois o coração exprime uma simpatia, vive da simpatia. Ou melhor, vive da verdade. Com efeito, a coisa mais bela que dizemos é que não se pode conhecer sem amar, pois o conhecimento é uma atração. Se não segue uma atração, não é nem conhecimento real, o conhecimento fica na superfície de si e não se mantém: a pessoa não lembra.
Por isso, concordo com a colocação que você fez, mas sublinharia a necessidade do tempo. E não de um tempo abstrato, mas de um tempo concreto, ou seja, a manutenção do laço com Ele, com o que você ouviu.
Mas há também uma outra coisa a dizer: vocês fizeram esse encontro, tanto que estão aqui. Mesmo que tenha durado apenas três minutos, permitiu-lhes que estivessem aqui. Por isso, teve um resultado bastante evidente. Pois alguém que vem para cá, para um lugar que não conhece e no qual a conversa é “estranha”, alguém que está aqui agora fez um encontro. Eu objetava a mim mesmo: “Mas pode ser que a pessoa o tenha feito sem razões!”. Muito bem: não o fez com razões, mas agora eu lhe digo a razão pela qual você deve mudar o que sentia antes. Cada um que está aqui fez um encontro!
Por isso, quem fez um encontro tem de se empenhar com o que encontrou, o que coincide com o empenho com a sua própria humanidade.
Se você fez um encontro, o seu comportamento diante do que lhe aconteceu depende da sua lealdade, em última instância deveríamos dizer que depende da sua moralidade. A moralidade é a função de um detalhe pelo todo. Não é um detalhe da sua vida, como um balão que “fff”, basta um sopro e vai embora. João e André: pensem como ficaram tocados quando, naquela noite, todos no barco, diziam: “Quem é este, afinal?”. É a mesma pergunta que lhe fizeram os fariseus. Antes de surrá-lo e matá-lo, os escribas e os fariseus foram lá, em público, para lhe dizer: “Até quando nos manterá com a respiração em suspenso? Quem é você e de onde vem?”. E ele se calou, pois aquela pergunta não era sincera, real.
Por isso, a questão mais importante para cada um de vocês que estão aqui é que, tendo sido chamado, cada um de vocês tem de procurar de hoje em diante como pode entender mais e melhor o caminho que deve percorrer, o que é a verdade, a verdade que encontrou, e a vida que tem de viver. Essas são três coisas que o homem, seja qual for a idéia que tenha, tem de aceitar.
Pasolini procurou um caminho errado: disse que a verdade não existe – ou melhor, que não se sabe o que é a verdade, como ela é, como disse Malraux22 –, e que a vida é feita de coisas imediatas (comer e beber...). Mas, lentamente, na sua vida, sentiu voltar a ecoar o que sua mãe lhe dizia sobre a vida, sobre a verdade e sobre o caminho a percorrer. Se tivesse encontrado alguém com a nossa paixão, se tivesse vindo a um gesto da nossa comunidade, sobretudo a certos momentos, Pasolini teria chorado.
Por isso eu disse que, se um de vocês está aqui, teve um encontro. É preciso desenvolver esse encontro, procurar entendê-lo. Não se pode começar somente quando se entende tudo. Nunca, ninguém! Não há nada no mundo que se revele, que se torne claro, no instante em que a coisa acontece.
Portanto, não se pode dizer que a pretensão da coisa que os mandou para cá é insuportável. Não, é insuportável para quem não quer nem a verdade nem a vida: para quem é impostor e vai contra si mesmo. Não são os outros que o dizem, é você: se você reflete, o enfraquecimento do seu sim ou da sua participação daquilo que se lhe apresenta, da forma como se apresenta, é uma deslealdade, de acordo com o conteúdo do que encontrou você, daquilo que você encontrou.
Então, qual é a diferença entre senso religioso e fé? Ou então, que diz o senso religioso sobre a palavra fé? O senso religioso é a razão, a razoabilidade. Chama-se propriamente “senso religioso” a razoabilidade, pois se a razão é perceber a realidade segundo a totalidade dos seus fatores, ela nunca chega a isso, há sempre um ponto de fuga (há um ponto de fuga pelo qual toda a verdade passa, derramando para fora ou derramando para dentro). A razão tem um ponto-limite. Mesmo que alguém subisse ao topo do Himalaia, acreditando poder ver o panorama de todo o mundo, mesmo que subisse até o topo do Everest, veria até um certo ponto, até Kamciatka, mas não penetraria na Rússia, por exemplo: não pode ver mais nada “além” daquilo. O homem só se aplaca quando sente tudo, conhece tudo e possui tudo. “Cada um confusamente um bem apreende/ no qual se aplaque a alma, e deseja/; pois por alcançá-lo cada um contende” (con-tende: junto com os outros, é obrigado a fazê-lo) 23.
Esse “além” é o Mistério. Pois a razão programa justamente conhecer o que não é Mistério. A razão pode conhecer tudo, exceto o Mistério. Mas o Mistério é o que a faz, é o criador, pois a razão não se cria por si mesma. E essa é a maior evidência que a razão pode ter: o momento em que sou mais consciente de que não me faço por mim, mas que um Outro me faz, é agora, o instante que vivo.
Então, o significado último de tudo o que se vive e acontece, que cada um, como desejo seu, procura conhecer, entender e realizar nas suas conseqüências existenciais, em última análise não pode ser definido pela razão. Pois se a razão é relação com a realidade segundo a totalidade dos seus fatores, uma mulher não pode ser definida pelo homem com o qual está, e uma criança não pode ser definida pela mãe da qual nasce. Não é mais possível um nível de verdade no relacionamento com a mulher, com o homem, com os filhos, não é mais possível uma postura de verdade, se não se passa por aquilo que não se admite, que muitos crêem não poder admitir, ou seja, Deus, o Mistério. E na vida de vocês, no seu caminho, vocês verão que sem aderir ao Mistério o homem não pode sustentar nenhum gesto justo e bom, completamente bom.
Portanto, suponham que o Mistério, para persuadir o homem de que Ele, o Mistério, é uma realidade – é a realidade mais decisiva para todo o resto da realidade, é a realidade que cria todo o resto, que se comunica ao resto, ou seja, ao mundo, com tudo o que atrai ou repele –, suponham que o Mistério, para comunicar-se ao homem – que é o único ponto de todo o cosmo que é consciência das coisas (nenhuma outra realidade tem consciência) – para deixar-se conhecer pelo homem como realidade sobre-humana, torne-se homem. O Mistério deslizou para o tempo; nasceu de uma mulher: “Non horruisti virginis uterum”24, não se indignaste por entrar nas vísceras de uma mulher; nasceu das vísceras de uma mulher como qualquer um de nós.
Foi um homem como nós, passeava pelas vielas de Nazaré, ou então ia à sinagoga com os outros, cantava com os outros. Ele, como homem, é como se ainda não tivesse consciência do que era, a não ser quando foi encontrar João Batista. João Batista o batizou com os outros, e naquele instante João Batista e ele ouviram o Espírito Santo, o Espírito do Mistério, que dizia: “Este é o meu Filho predileto, em quem me comprazo” 25.
Mas, sendo homem, nascido em uma certa cidade, com uma certa mãe, era um familiar daquela cidade e dos seus habitantes, era um deles. Assim, tinha uma certa maneira de falar, de fazer. Trinta anos depois, ninguém mais reconhecia a novidade que ele carregava, tanto que quando foi dizer na sua cidadezinha: “Os profetas falaram de mim. O Messias desejado sou eu” 26, quiseram expulsá-lo, jogá-lo montanha abaixo. Mas imaginem o que deveriam sentir e entender os seus concidadãos: “É louco! É louco!”. Ou então: “É um louco perigoso, pois fala de uma forma que renega todas as nossas profecias; elimina o povo”, que para o judeu é justamente o sujeito adequado da relação com Deus (o qual, se vem se comunicar ao homem, não passa pelo caminho normal da geração humana: horruit virginis uterum, seria preciso dizer!).
Seja como for, esse homem, depois de trinta anos, sai de sua casa, abandona sua mãe – “abandona”, não sei, diz a sua mãe que voltará quando Deus quiser (mas já havia dito isso no templo, com doze anos! 27) – e encontra esses dois; depois, na manhã seguinte, encontra-os com Simão, depois encontram Filipe, e depois Natanael: pensem neles, indo para casa, para as suas famílias, dizendo essas coisas (pois é preciso dizer à família as coisas em que se crê; o primeiro amor à família é esse, mesmo que a família o martirize). A certa altura – todas as coisas se passam de uma certa forma, a pergunta amadurece cada vez mais: “Quem será este homem?” ou , como depois lhe dirão os fariseus: “Até quando nos manterá com a respiração em suspenso? Diga quem você é e de onde vem!” (e possuíam seus registros de nascimento, que indicavam que ele nascera em Belém, filho de fulana de tal e fulano de tal) –, a certa altura o fato de aquele homem se dizer Deus foi a explicação completa do apego que tinham a Ele. Incluindo São Pedro, que – mesmo depois de Cristo lhe ter respondido: “Afaste-se de mim, Satanás” 28, pois ele lhe dissera: “Você jamais será morto”, e depois que, mesmo tendo-lhe dito isso, ele o traiu (São Pedro é o mais perseguido como pecador nos Evangelhos!) – dá a Ele tudo.
Notas:
[1] Associação eclesial formada por pessoas do movimento de Comunhão e Libertação que fizeram uma escolha de dedicação a Deus num caminho marcado pela virtude que a Igreja chama de virgindade. A Associação Memores Domini foi reconhecida pelo Pontifício Conselho para os Leigos em 1988.
[2] Cf. L. Giussani. É possível viver assim? Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998, pp. 13-62.
[3] Id., ibid., p. 24.
[4] Jo 14, 6.
[5] Cf. L. Giussani. “Touché o della vera conoscenza”. In: Si può (veramente?!) vivere così? Milão, Rizzoli, 1996, pp. 58-65.
[6] Cf. L. Giussani. O senso religioso. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2000, pp. 24-26.
[7] Cf. Id., ibid., pp. 149-151.
[8] Cf. L. Giussani. “Se não fosse teu, meu Cristo, me sentiria criatura finita”. In: Litterae Communionis nº 59, setembro/outubro de 1997, p. XXI.
[9] Cf. Jo 2, 1-11.
[10] Cf. Mt 8, 23-27; Mc 4, 35-41; Lc 8, 22-25.
[11] Cf. Mt 8, 2; Mc 1, 40; Lc 5, 12.
[12] Mt 9, 23-25; Mc 5, 35-43; Lc 8, 49-55.
[13] Cf. Mt 16, 13-16; Mc 8, 27.29; Lc 9, 18-20.
[14] Tu, ou da amizade. Notas das meditações de L. Giussani nos Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação de 1997. Cf. também L. Giussani. O milagre da mudança. Notas das meditações de L. Giussani nos Exercícios da Fraternidade de Comunhão e Libertação de 1998.
[15] Cf. Mt 16, 13-17.
[16] Cf. Mt 16, 18.
[17] Cf. L. Giussani. Na origem da pretensão cristã. São Paulo, Companhia Ilimitada, 1990.
[18] Cf. 1 Cor 15, 28.
[19] L. Giussani. Porta la speranza. Gênova, Marietti, 1997. Cf. alguns capítulos desse livro publicados em Litterae Communionis nºs 63 a 66, de maio/junho a novembro/dezembro de 1998, na seção “Documentos”. GS é a sigla de Gioventù Studentesca (Juventude Estudantil), o primeiro núcleo do movimento de Comunhão e Libertação.
[20] Cf. Jo 1, 35-51.
[21] Cf. L. Giussani. “Dalla simpatia profonda la morale”. In: “Tu” (o dell’amicizia). Milão, Rizzoli, 1997, pp. 275-321.
[22] “Il n’est pas d’idéal auquel nous puissions nous sacrifier, car de tous nous connaissons les mensonges, nous qui ne savons point ce qu’est la vérité”: “Não há ideal ao qual possamos nos sacrificar, pois de todos nós conhecemos a mentira, nós que não sabemos o que é a verdade” (A. Malraux. La Tentation de l’Occident. Paris, Bernard Grasset, 1926, p. 216).
[23] “Ciascun confusamente un bene apprende/ nel qual si queti l’animo, e disira;/ per che di giugner lui ciascun contende”. Dante. Purgatório, canto XVII, vv. 127-129.
[24] “Te Deum” . In: La preghiera del mattino e della sera. Roma, Libreria Editrice Vaticana, 1989, p. 1835.
[25] Cf. Mt 3, 17; Mc 1, 11; Lc 3, 22.
[26] Cf. Lc 4, 16-29.
[27] Cf. Lc 2, 41-50.
[28] Cf. Mt 16, 21-23; Mc 8, 31-33.