O jubileu e a vida
Palavra entre nósO jubileu e a vida
Notas de uma palestra de Luigi Giussani em preparação para o Jubileu da Redenção. Catedral de Palmanova (Itália), 15 de junho de 1983
Todos sabem que o primeiro gesto oficial e clamoroso do pontificado de João Paulo II foi a encíclica que começava com a fórmula Redemptor hominis, Jesus Redentor do homem. Redentor do homem significa antes de mais nada que Cristo assegura o significado da vida e, assim, ilumina o destino e dá a força para alcançá-lo. Em outros tempos, se diria: “É Redentor porque é salvador da alma, porque salva a alma”. Mas o Papa não usou a expressão “salvar a alma”; usou o termo “Salvador do homem”. Sem dúvida, o homem é aquele que tem a eternidade dentro das suas vísceras, dentro da sua natureza imortal, mas antes de mais nada é aquele que tem de percorrer o seu caminho nesta terra, tem de viver uma existência no tempo e no espaço.
Cristo Redentor do homem não significa portanto apenas Aquele que assegura ao homem o seu destino eterno, a salvação eterna, como dizia o catecismo antigo, mas também Aquele que salva, ou seja, redime, a vida do homem neste mundo, a vida do homem enquanto caminha, do homem que se levanta de manhã, vai trabalhar, e se deita à noite: Cristo é o Salvador do homem inteiro, hoje e amanhã. Talvez, antigamente, se sublinhasse exclusivamente o amanhã; mas para que nos é dado o presente, de fato, a não ser para o amanhã? Que significa um caminho, a não ser o fim, a finalidade, a meta, o destino? Mas, hoje, creio que o homem precisa que seja completada, precisa sentir completada a proposta, e precisa antes de mais nada entender de que forma Cristo é o Salvador da vida presente.
Explicaram-me que os venezianos, que construíram Palmanova como fortaleza diante do perigo turco e do imperialismo nórdico, definiam esta cidade, construída somente para esse fim, “propugnaculum Patriae, propugnaculum Italiae e propugnaculum Fidei”: posto avançado de defesa da Pátria, desta nossa região do Friúli, da Itália e da Fé. Parece-nos estranha essa unidade profunda que, tempos atrás, era habitual na consciência cristã, pois a Fé, que vibra na consciência da pessoa, sempre se torna luz e energia para os relacionamentos e, portanto, fonte de vida social, ligando assim, ao longo do tempo, o destino do indivíduo com o destino da sua gente, do seu povo.
Creio que ninguém tenha feito ressurgir essa visão unitária como João Paulo II – pois ele a possui até na medula dos ossos e no coração –. Ele a possui no fundo do coração, pois a fé, na tradição polonesa, nunca deixou de fazer parte dessa unidade, dessa profundidade e unidade de concepção.
Destino de felicidade
Mas eu gostaria, a princípio, de deter-me no aspecto tradicional, imediato e último da primeira encíclica de João Paulo II: Cristo Redentor do homem, como Aquele que salva o homem e o seu destino; pois, como diz o grande filósofo judeu americano Heschel, não interessa tanto ao homem aprofundar as suas origens quanto entender bem aonde vai parar, qual é o seu destino.
Se uma mulher fosse tão reflexiva que, ao dar à luz seu próprio filho, ao olhar para ele e ao tomá-lo nos braços pela primeira vez, se perguntasse aonde ele iria parar, qual seria a sua finalidade, que seria dele, se na intensa emoção daquele momento pensasse nisso, se naquele momento uma mulher pensasse dessa forma, seria assaltada por um temor inesperado, pois ela não pode proteger seu filho, não pode proteger a sua criatura como a protegia em seu ventre e em tudo mantê-la segura. Eu me lembro de uma senhora que vinha se confessar regularmente, todas as semanas, muitíssimos anos atrás; tinha uma menina, e a certa altura parou de vir. Voltou depois de um mês e me disse: “Sabe, tive um segundo filho”. E antes que eu lhe desse parabéns, me disse: “Sabe qual foi o primeiro sentimento que tive mal me dei conta de que tinha nascido? Não pensei se estava bem, se era um menino ou uma menina, mas: ‘Aí está, começa a ir embora’”. Esse é o sentimento mais dramático que, consciente ou não, vigora no coração de uma mulher que se torna mãe, pois, à medida que o tempo avança, aquela criatura, que é tão sua, parece cada vez mais tornar-se não sua, justamente enquanto destino. Se, portanto, ao dar à luz um menino, uma mulher pensasse: “E agora, aonde vai parar?” e não houvesse um destino de felicidade, seria um crime ter dado à luz, pois não apenas matar é um crime, mas também colocar alguém em condições de ser morto; sem um destino de felicidade, não seria crime apenas infligir suplícios e dores a um ser vivo, mas também colocá-lo em condições de sofrer dores, até atrozes.
Quem pode saber se essas condições acontecerão ou quem pode evitá-las com certeza? Quem pode fazer um projeto que não implique essa possibilidade? A única coisa que torna razoável nascer é o anúncio e a segurança de uma finalidade boa, do fim bom ou, como eu disse antes, é a palavra que só a Fé pronuncia com seriedade, a palavra mais séria da vida, que, fora da Fé, é enfraquecida e esvaziada de todo o seu grande conteúdo: a palavra “Felicidade”.
Só a certeza de um destino de felicidade torna razoável ser mãe. E há um gesto mais natural do que ser mãe? Não! Assim, não existe nada mais necessário, mais adequado, mais próximo da carne de uma mãe, e portanto da expressão mais original da natureza, do que aquela Voz que entrou no mundo e não vai mais embora: ninguém mais arrancará dos ouvidos do homem essa voz “física” que assegura ao homem o seu destino feliz. “Que adianta – disse uma vez essa voz entre as pessoas que a cercavam de todos os lados em uma praça – se ganhares o mundo inteiro e depois perderes a ti mesmo? Ou que obterá o homem em troca de si mesmo?” 1. E é esse valor supremo da pessoa que uma mãe, concretamente, na prática, sente e vive quando olha e quando se dirige para seu próprio filho – mesmo que tenha sete anos, mesmo que tenha doze anos, pois o “tu” que se refere a qualquer um é inconfundível. O que ela percebe é a irredutibilidade desse mistério do destino de felicidade que é o homem!
Por amor a cada homem
Eu me lembro, e sempre me lembrarei, tanto é verdade que o conto de tempos em tempos aos meus amigos mais jovens, daquela vez em que fui visitar uma missão em torno do Rio Amazonas, próximo à linha do Equador, um território imenso que os padres do PIME 2 cobriam por partes; cada um tomava para si uma região, de modo que em um ano reviam ao menos uma vez todos os habitantes daquele território em que não existem estradas, mas somente rios na floresta, e que, mesmo sendo quase tão grande quanto a Itália, tinha só sessenta mil habitantes. Quando um desses padres ia para a “desobriga” 3, como eles diziam, recebia a absolvição in articulo mortis, pois era um perigo mortal aquela viagem em meio às florestas infestadas de serpentes e outros animais. Um dia era a vez de um certo padre Titta ir, e ele então me disse: “Venha você também”. Eu não percebi o tom de brincadeira com o qual ele me disse aquilo; respondi logo que sim e fui. Veio a noite e, a certa altura, eu o vi colocar botas que chegavam até a virilha e depois, sorrindo, enfiar-se em um pântano. O lodo chegava até acima dos seus joelhos. Era preciso um minuto para caminhar um metro, e já havia uma nuvem de insetos que o incomodavam. Eu fiquei ali parado, olhando, e ele me disse: “Você não pode continuar daqui”. Ele teria de marchar oito horas daquela forma, à noite, para ir encontrar um “caboclo” (que vivia da extração da borracha das árvores, ganhando pouquíssimo), para ir encontrar uma só pessoa, uma! Eu ainda me vejo naquela posição, enquanto o padre missionário ia embora com aquela dificuldade e, a cada pouco, voltava-se para acenar para mim com um sorriso irônico, e eu pensava: “Ele faz todo esse esforço, arrisca a vida para ir encontrar um homem que talvez jamais tenha visto, e que nunca mais veria, um só homem”. E diante do sol que se punha, eu me lembro que tinha diante dos meus olhos muito mais do que a luz cegante, eu tinha diante dos meus olhos a grande idéia que veio à tona na minha alma: “O que é o cristianismo? É o amor ao homem, não à humanidade, mas ao homem, ou seja, a toda pessoa nascida de uma mãe”.
Como diz o Papa – que, quando fala de humanidade, repete sempre: “Falo de cada homem”, e de tanto em tanto diz: “tu” –, o cristianismo é o amor ao homem que só Deus poderia ter, pode ter (um amor maior do que o de uma mãe). “Cristo, Deus feito homem por amor ao homem, deu a si mesmo por mim e morreu por mim” 4, dizia Paulo. Não existe nenhuma realidade humana, nenhum empreendimento humano que olhe para o homem dessa forma, que olhe para o homem como pessoa e olhe para a pessoa como ser que tem um destino incomparável, irredutível, um destino eterno. Tudo o que o homem faz, qualquer homem no fundo, por um outro homem, mesmo na melhor das hipóteses não pode evitar o que observava um filósofo leigo como Kant: “O homem não pode fazer nada por outro homem sem que haja uma ponta de interesse, um critério de contrapartida, uma expectativa”.
A pureza absoluta, a verdadeira gratuidade, chama-se “caridade”, no sentido literal da palavra, pois em grego gratuidade se diz charis. Ela só é possível para quem busca realmente seguir a Cristo, como aquele padre que está gravado ainda na minha consciência e no meu olhar. Cristo é a salvação do homem, Aquele que assegura à mãe que terá um filho a razoabilidade do acontecimento, Aquele que assegura ao homem a eternidade do seu destino e a resposta à sua inesgotável sede de perfeição ou de satisfação (duas palavras que em latim querem dizer a mesma coisa), ou de felicidade.
Um acontecimento que toca o tempo, o instante
Por isso, aquela tarde na sinagoga, quando todos tinham ido embora escandalizados pela maneira de falar de Cristo: “Comereis da minha carne”, diante da pergunta que rompeu o silêncio, dirigida aos pouquíssimos que haviam ficado: “Vós também quereis ir embora?”, São Pedro irrompeu para responder: “Nós também não compreendemos o que tu dizes, mas, se te deixarmos, para onde iremos? Só tu tens palavras que dão sentido ao viver” 5.
Eis, então: Cristo é redentor do homem, não apenas para a salvação final, mas também para este tempo de existência que o homem percorre nas mais variadas condições, justamente porque essa certeza sustenta a alma, conforma a alma, o coração do homem que caminha todos os dias; pois não há nada que faça respirar agora, no preciso momento em que a pessoa pensa e escuta isto, não há nada que faça respirar, que reconforte e faça viver, como este anúncio seguro e certo: “Vinde a mim, vós que estais esgotados por causa da vida e eu vos restaurarei; eu vos restauro, tomai sobre vós o meu jugo, vinde comigo, pois o meu jugo é suave e o meu peso é leve” 6. Por isso, então, do fundo do coração, essa Redenção toca o tempo, toca o instante em qualquer condição.
Não há proposta nenhuma, eu disse antes, que faça respirar totalmente, a plenos pulmões, não há promessa nenhuma e nenhuma alegria fora do horizonte dessa certeza, pois a alegria que o homem consegue obter é uma alegria falsa, não no sentido ruim do termo, mas porque, para manter-se até mesmo durante aquelas poucas horas, precisa esquecer ou renegar alguma coisa.
Mas, diante desse Homem e da promessa que ele era (as pessoas iam atrás dele por isso, por essa promessa que ele era!), as pessoas diziam: “Este, sim, fala com autoridade!” 7. A autoridade, todos nós sabemos, é a experiência de um encontro que permite retomar a vida, que permite voltar a sentir mais profundamente a si mesmos. Aquelas pessoas diziam: “Ninguém nunca falou como esse Homem!” 8, pois o grande critério que se aplica na mesquinhez das nossas escolhas cotidianas (um filme que escolhemos ver, ir ou não à escola, a maneira como a pessoa decide estar em casa depois do trabalho) é único: é essa sede de felicidade que nos impele do fundo. Nenhuma promessa, a não ser Aquela, escancara o coração e os pulmões, alimenta, restaura. Dentro dessa aura, dentro desse clima que ela instaura, até os fardos se tornam toleráveis.
Neste instante, lembro-me de uma moça, que morreu há algumas semanas: até três ou quatro anos atrás ela se revoltava profundamente com toda a sua vida, que fora um martírio de um ponto de vista físico e familiar; e depois, tendo adquirido a fé, se apaziguou. Há seis meses, o câncer veio à tona; quando, dois meses antes, ela o soube com clareza, passou a telefonar a todos os seus amigos, que não via há dez, vinte anos, dizendo: “Venham me ver, pois dentro de pouco tempo morrerei”. E ela me disse, quando lhe expressei a edificação que aquilo incutia em mim: “Eu sou feliz, e digo também aos meus colegas de trabalho: ‘Vocês, que são inteligentes, não têm algo pelo qual o instante é pleno, pode ser desfrutado plenamente. Para mim o instante se torna pleno e eu sei – acrescentava – o que quer dizer oferecer’”.
Não existe nenhuma promessa mais humana, não existe nenhuma promessa humana, a não ser Essa. Por isso tem valor o que dizia São Paulo: aderir a Cristo, a Pietas (pietas é uma palavra latina que significa a relação que nos liga com os princípios do nosso ser, e por isso se diz que se tem piedade pelos pais, pietas in parentes, ou então pela nossa terra, pietas in patria, ou então por Deus, pietas in Deum9), ou seja, a relação com Cristo “ad omnia utilis est”10, é útil para todas as coisas, tendo em si a promessa para os séculos futuros e para o presente. É sobretudo isso que João Paulo II tem na frente de seus olhos quando propõe Cristo Redentor.
Uma desproporção radical
Gostaria que nós compreendêssemos melhor tudo isso, indicando os dois fatores que Cristo põe em jogo, ao entrar na nossa vida. Em primeiro lugar, Cristo chama a atenção do homem para o que até muitos teólogos parecem ter esquecido depois do Concílio Vaticano II (raramente, muito raramente ouviu-se falar disso nos vinte anos após o Concílio): o homem não é capaz de ser homem por si mesmo. Eu explico isso aos meus amigos mais jovens desta forma: “Digam-me se existem três experiências mais humanas do que estas: o amor do homem pela mulher, o amor dos pais pelos filhos, e o amor, a paixão, pela vida dos homens no seu sentido geral, ou seja, a política (a política é interessar-se pelos homens para que vivam melhor). Digam-me, por favor, se existem três fontes de egoísmo maiores do que essas, pois o homem tem no fundo de si a divisão”. A doutrina cristã chama a isso de pecado original.
Eu me permito ler alguns trechos de um discurso do Papa sobre esse tema: “[O homem] tem de lidar com a pobreza radical da sua condição de criatura, comprimida entre limites de toda sorte; além disso, ele tem de tatear em meio às sombras espessas que bloqueiam o caminho no qual se esforça a sua inteligência sedenta de verdade; ele, sobretudo, experimenta os pesados grilhões de uma fragilidade moral, que o expõe aos mais humilhantes comprometimentos [e ao egoísmo].
Não tenhais medo de chamar a atenção dos homens de hoje para as suas responsabilidades morais! Entre os muitos males que afligem o mundo contemporâneo, o mais preocupante constitui-se de um assustador enfraquecimento do sentido do mal [nós o dissemos antes: o homem, para ficar tranqüilo, tem como arma renegar ou esquecer, mas isso não é razão]. Para alguns, a palavra ‘pecado’ tornou-se uma expressão vazia, por detrás da qual não devem ser vistos mais que mecanismos psicológicos anômalos, que devem ser reconduzidos à normalidade mediante um oportuno tratamento terapêutico [basta um pouco de psicanálise e tudo se remedia]. Para outros, o pecado se reduz à injustiça social, fruto das degenerações opressivas do [chamado] ‘sistema’, e imputável, portanto, àqueles que contribuem para a sua conservação [por isso, basta mudar de sistema, escrevia há cinqüenta anos um grande poeta inglês, profeta da nossa época, Eliot: “Amiúde tentam os homens escapar à treva que no fundo os corrói e ao seu redor se alastra, sonhando com sistemas tão perfeitos em que o bem seja de todo dispensável” 11, ou seja, eliminando a responsabilidade da pessoa]. Para outros, ainda, o pecado é uma realidade inevitável, devida a inclinações da natureza humana que não podem ser vencidas, uma realidade que, portanto, não pode ser atribuída ao sujeito como responsabilidade pessoal. Há, enfim, aqueles que, mesmo admitindo um genuíno conceito de pecado, interpretam de maneira arbitrária a lei moral e, distanciando-se das indicações do Magistério da Igreja, alinham-se passivamente à mentalidade permissiva do costume corrente” 12.
O homem de hoje, diz o Papa, procura de todas as formas evitar a responsabilidade, que é pessoal, eliminando justamente o pecado. A consideração dessas diferentes posturas revela o quanto é difícil chegar a um autêntico sentido do pecado, se nos fechamos à luz que vem da palavra de Cristo.
“Quando nos apoiamos unicamente no homem, na sua visão limitada e unilateral, chegamos a formas de libertação que acabam por preparar novas e muitas vezes mais graves condições de escravidão moral”. Foi o que disse o Papa no final do discurso que fez no Meeting de Rímini em 1982, quando afirmou que o homem, na época moderna, fez de tudo para tornar mais humanas, mais possíveis de se viver a terra e a vida, mas o resultado foi que o homem está cada vez pior enquanto homem; e disse também que essa degradação parece não poder ser detida.
A primeira verdade para a qual o Ano Santo chama a nossa atenção, que Cristo nos impõe, é que o homem é pecador. “Pecado”, em todas as línguas ocidentais, qualquer que seja a formulação, quer dizer “faltar”, tanto é verdade que é igual a “defeito”, que em latim quer dizer justamente “faltar”, como quando faltam à pessoa os sentidos. O pecado é faltar a si mesmos. O pecado é dizer amar a mulher quando isso não é verdade, é dizer amar os filhos quando isso não é verdade, é dizer querer o bem da humanidade quando isso não é verdade; é a “não verdade”, tanto que São João, no quarto Evangelho, identifica a palavra “pecado” com a palavra “mentira” 13. Quando Cristo disse: “Todos vós sois maus” 14, queria dizer que o homem é incapaz de realizar aquilo que sente como exigência por natureza, é incapaz de realizar a si mesmo.
O homem que olha para si mesmo não pode evitar a tentação de um abatimento e, justamente para evitá-la, a mentalidade social dominante procura eliminar essa consideração de si na sua substância e refutar a idéia de pecado, ao passo que sem a idéia do pecado (que paradoxo!) o homem é uma marionete, sem a idéia de pecado é um mecanismo, pois não teria liberdade.
O Papa teve a coragem de dizer, no discurso à Unesco de 2 de junho de 1980, que sem que se realize em Cristo, a razão deixa de ser razão.
A primeira coisa que o Ano Santo deve produzir em nós, portanto, é o despertar do sentimento de que somos pecadores, da incapacidade do homem de chegar até mesmo ao que aspira em alguns sobressaltos ideais do seu coração.
Sempre repito um trecho de uma obra do escritor protestante Ibsen, no qual fala de um homem que busca por toda a sua vida a honestidade absoluta. Na última cena, quando está de pé no centro do palco, perto de sua cabana em meio ao declive da montanha, de repente ouve que a avalanche iminente despenca sobre si e grita a Deus, ao mesmo tempo em que o barulho da avalanche vai-se tornando cada vez maior: “Responde-me, ó Deus, na hora em que a morte me arrasta! Pode o homem, com toda a sua vontade, conseguir realizar um só gesto perfeito?” 15. Não creio que essas coisas sejam abstrações ou sutilezas próprias de espíritos particulares: esse, a meu ver, é o veneno ou o remorso que se arrasta dentro de nós todos os dias e que suga as nossas melhores energias. Antes de mais nada, é o chamado de atenção para aquilo que somos: sede de Infinito, ímpeto ideal, mas incapazes, até no mais breve gesto de todos os dias, de sermos tão gratuitos quanto é lei para nós, para o ser espiritual, de termos um amor gratuito, a capacidade do amor gratuito, verdadeiro, claro, em tudo, pelo homem e pelas coisas, por nós mesmos. Temos de continuar a nos cobrir com a mentira para poder suportar a nós mesmos, temos de esquecer ou renegar, para nos suportar.
O Protestantismo chegaria a esse ponto e depois diria: “Mas, apesar de sermos assim, Cristo no final nos salvará”. Quem viu o filme daquele outro grande artista protestante, Dreyer, certamente terá se impressionado com isso, pois essa é a idéia fundamental do grande espírito de Martinho Lutero: um sentimento vivíssimo do que o homem é, que Cristo revelou com clareza, do homem pecador; porém, esse Cristo, que revela você como pecador, o salvará da mesma forma quando você morrer.
Misericórdia: o início de um mundo novo
Não é assim o anúncio cristão: o anúncio cristão não é apenas Cristo, Deus, que chega para você porque você é culpado e pecador, mas é Deus que morre e ressuscita e coloca na carne e nos ossos da humanidade a possibilidade de pertencer a essa Ressurreição. A Ressurreição de Cristo constitui o início de um mundo novo, constitui a origem de uma possibilidade de retomada não para o homem no além, mas para o homem no aquém. Cristo ressuscitado é mais forte do que o pecado e do que a morte, junto com Cristo nós podemos – esta é a palavra – mudar. Somos como doentes que há muito tempo não conseguem ficar de pé, mas que, com o braço por sobre os ombros de um enfermeiro ou de um familiar, podem começar de novo a dar os primeiros passos.
Só na companhia desse Homem, que é Deus, o homem pode mudar; e por isso a virtude própria, a característica própria do coração do cristão é a esperança. A esperança não como normalmente é vivida do mundo, que para afirmar-se precisa censurar, ou seja, esquecer, mas aquela que nasce da consideração clara da nossa própria miséria, do nosso próprio pecado. São João diz aos primeiros cristãos, na sua Primeira Carta, que nós cremos no Amor16. Reconhecer a Presença desse Deus que se fez uma pessoa entre nós, a tua presença, ó Cristo, isso me reconforta e me faz retomar: mil vezes erro, mil vezes estou certo de ti, mil vezes tu me dás de novo a coragem de retomar. Quantas vezes teremos de perdoar? Sempre! Perdoar não quer dizer: “Coloquemos um pano por cima”. Perdoar quer dizer fazer reviver, fazer renascer. A verdadeira palavra que o Papa usa para o Ano Santo, a grande palavra, a palavra com a qual Deus definiu definitivamente a si mesmo (não o Deus do pensamento, não o Deus dos mortos, mas o Deus dos vivos, o Deus verdadeiro, aquele que entrou na história) é a palavra Misericórdia.
Uma moça, uma vez, me telefonou da casa de repouso em que estava internada e me disse: “Sabe, padre Giussani, entendi o que é a misericórdia”. Eu perguntei, um pouco atordoado: “O que é?”. “É a Justiça que recria”, e depois desligou. Raramente meus professores me disseram uma verdade como essa. “Justiça que recria”, pois não encobre o que eu sou, mas me dá a força de uma Presença, por isso me reconstitui mil vezes por dia. O homem não é mais definido pelo seu erro, mas é definido por essa Presença, reconhece essa Presença como tudo de si. Isso se chama amor, pois o amor é afirmar um Outro. Por isso, o homem não é mais definido pelo seu erro, mas é definido pelo amor, ou seja, por reconhecer a ti, ó Cristo.
Uma vez encontraram São Francisco de Assis no bosque de Verna com o rosto por terra, repetindo continuamente: “Quem sou eu, quem és Tu?”. Este é o anúncio do Ano Santo: uma esperança renovada.
A esperança em uma Presença
Na Guatemala, durante a visita pastoral de março de 1983, João Paulo II disse que Cristo é a nova arma de um mundo novo. Mas essa esperança não se apóia em meus recursos ou nos recursos desse eu projetado, que são a sociedade, os chefes, as coisas que o homem cria; essa nova vida, essa esperança se baseia nessa Presença. No fundo, a fé é reconhecer uma Presença, e reconhecer essa Presença dá ânimo novamente mil vezes por dia, qualquer que seja a posição em que nos encontremos, até na morte, e portanto dá a capacidade de abrir-se aos outros com pureza, ou seja, com gratuidade. Por isso Cristo, Redentor do homem, não tem valor só no além, mas no aquém, que é o hoje, o aquém que é esta hora, que é daqui a uma hora, dentro da companhia em que estou, dentro da companhia em que estarei; e, portanto, essa esperança não tem limites, abraça o mundo.
Por sua natureza, essa esperança é social, por sua natureza não existe problema ou exigência ou situação humana pela qual não se sinta tocada e pela qual não se sinta interessada de maneira positiva. A grande fórmula da vida cristã expressa por São Paulo é: “In spe contra spem”17. Por isso, o cristão é eminentemente um homem que insiste no impacto com as pessoas e com as coisas em qualquer condição, mesmo na política, pois essa Presença moveu as águas do nosso grane, terrível, horrível estado, do nosso grande pântano de impotência, essa Presença entrou ali e moveu tudo, e essas ondas vão até as margens extremas, quer dizer, abraçam o mundo até os extremos confins da terra. Por esse motivo não há mais nada que seja estranho ao meu instante concreto; vivo então o meu instante concreto com uma tentativa de amor que se chama, na linguagem cristã, “oferta” pelo mundo inteiro. Essa oferta me faz chorar com dor pela minha mesquinhez e me escancara na alegria de uma esperança justamente porque não se apóia em mim, mas passa através de mim, usa de mim. Por isso, mesmo que eu seja tão mesquinho a ponto de poder dar muito pouco, dou esse pouco. A essência íntima de todo Ano Santo está justamente em um movimento espiritual de fé e esperança que faz com que os fiéis convirjam, com um ímpeto renovado, para Cristo Redentor. Uma parte desse movimento espiritual são vocês, aqui, mas esse movimento só pode subsistir com a responsabilidade de cada um, tal como é.
Notas:
[1] Mt 16, 26; Mc 8, 36-37.
[2] PIME: Pontifício Instituto das Missões; nde.
[3] “Desobriga”: visita que os padres fazem periodicamente a regiões que não têm clero, para desobrigar os fiéis, ou seja, possibilitar o seu acesso aos sacramentos; nde.
[4] Cf. Gl 2, 20.
[5] Cf. Jo 6, 22-71.
[6] Cf. Mt 11, 28-30.
[7] Cf. Mc 1, 27; Lc 4, 32.
[8] Jo 7, 46.
[9] Esse uso da palavra “piedade” não permaneceu em português; ndt.
[10] 1 Tm 4, 8.
[11] Cf. T. S. Eliot. “Coros de ‘A Rocha”. In: Poesia. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981, p. 186.
[12] João Paulo II. “Anunciai o Ano de graça do Senhor”, a bispos italianos durante a Celebração do Jubileu, 14 de abril de 1983.
[13] Cf. Jo 8, 44.
[14] Cf. Mt 7, 11; 12, 34; Lc 11, 13.
[15] Cf. H. Ibsen. Brand. Milão, Rizzoli, 1995, p. 240.
[16] Cf. 1 Jo 4, 16
[17] Rm 4, 18: “Esperando contra toda a esperança”.