O Santo Rosário

Palavra entre nós
Luigi Giussani

O Santo Rosário, a mais difundida das orações que nos legou a tradição popular, consagrou para sempre o aspecto mais humilde da vida de Nossa Senhora. Quando o rezamos, é como se a figura de Maria se impusesse no seu aspecto mais simples e mais oculto. Ao propor-lhes que vivam o Rosário recuperando particularmente a consciência do que Nossa Senhora é na vida do homem e do mundo, sou guiado sobretudo pela impressão mais forte que tive quando em viagem pela Terra Santa. A coisa que mais me causou estupor e fez com que ficasse como que imobilizado em espírito – imobilizado no sentido de tomado pelo maravilhamento – foi o momento em que vi o que ainda existe da pequena casa-gruta em que vivia Nossa Senhora e li o que estava escrito em uma placa pela qual ninguém daria nada: Verbum caro hic factum est – o Verbo aqui se fez carne –. Fiquei como que petrificado pela maneira inesperada como se tornou evidente o método de Deus, que usou o nada, realmente o nada.


Mistérios Gozosos
Como a alegria era familiar ao coração de Maria, mesmo na incomparavelmente profunda sensação de mistério e obscuridade em que ela penetrava dia após dia. O que sustenta essa aparente contradição? A fé. A certeza de que tudo é de Deus, de que Deus é o pai de todos, de que o mundo está destinado a uma positividade eterna. Se ela não tivesse pensado nisso todos os dias, se não tivesse levantado de manhã pensando nisso, se não tivesse feito as coisas durante o dia pensando nisso, se não tivesse ido repousar à noite pensando nisso, teria sido uma teoria abstrata, teriam sido apenas pensamentos.
O mistério que agora nos é proposto é o mistério da Encarnação de Jesus, do Seu Nascimento. Nele se especifica a lembrança geral, a memória geral do nosso relacionamento com Ele, do fato de que fomos chamados por Ele. Ele nasceu, foi concebido e nasceu de uma mulher.

1. Anúncio do Anjo a Maria
As palavras do Anjo podiam causar na jovenzinha a que eram dirigidas uma confusão de maravilhamento e humildade. Mas não a ponto de serem totalmente incompreensíveis; tinham alguma coisa pela qual podiam ser compreendidas pelo espírito daquela menina que vivia seus deveres religiosos. Nossa Senhora as abraçou: “Eu sou a serva do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra”. Não porque entendesse, mas, na confusão que não teve mais fim graças ao Mistério que se anunciava vibrando na sua carne, Nossa Senhora abriu seus braços, os braços da sua liberdade, e disse: “Sim”. E manteve-se alerta todos os dias, todas as horas, todos os minutos da sua vida.
Que palavra pode definir melhor o estado de espírito de Nossa Senhora, esse estado de espírito que gera uma postura e decide sobre a atitude a tomar diante das circunstâncias e de todo o tempo, que palavra pode definir melhor esse estado de espírito que a palavra “silêncio”? O silêncio, exatamente na medida em que está repleto de memória. Duas coisas contribuíam para essa memória, duas coisas determinavam esse silêncio. A primeira era a lembrança do que havia acontecido. Conservava-se intacta, daquilo que havia acontecido, a sua maravilhosidade, o seu mistério verdadeiro, o seu mistério de verdade, porque – e esta é a segunda coisa – algo daquilo estava presente: aquele Menino, aquele jovem presente, aquele Filho presente.

2. Maria vai visitar Isabel
A Palavra de Deus não é uma expressão literária, mas o indicador de um acontecimento; é sempre um fato: a Palavra de Deus é Cristo. A Sua palavra parte da promessa de um acontecimento. A figura de Nossa Senhora está toda cheia de memória, da palavra do seu povo, e toda voltada para o que os acontecimentos significam (o anúncio do Anjo, a saudação de Isabel). Por isso, a expressão que Isabel usou foi a melhor coisa que se poderia dizer de uma pessoa: “Feliz aquela que acreditou no cumprimento da palavra do Senhor”.
A cada um de nós também, com a transmissão da fé, foi dito que a vida tem um destino. Na sinceridade do nosso coração pode se repetir de maneira verdadeira o eco do Magnificat. Qualquer que seja a condição atual da nossa vida, ela é gratidão, porque é caminho para aquele destino em que veremos a Deus.
Nossa Senhora, no dia seguinte ao anúncio, envolta pela luz matutina nova, decidiu ir logo ajudar a prima Isabel, que, pelo Anjo, soubera estar grávida de seis meses; e percorreu a pé aqueles cento e vinte quilômetros de estrada de montanha, velozmente, como diz o Evangelho. Caridade: é o que nasce dessa luz matutina com a qual também nós levantaremos todas as manhãs, com a qual enfrentaremos todas as horas do dia, as horas onze, ou as horas quatro, ou as horas vinte e duas do dia; essa luz matutina nos dá uma ternura para com os homens, para com os homens desconhecidos e para com os homens hostis, para com os homens estranhos; não mais estranhos, mas parte de nós.

3. Nascimento de Jesus em Belém
O Natal nos obriga a afundar o olhar até a raiz, até aquele ponto onde surgem as coisas, onde as coisas se insurgem, onde o Ser irrompe no véu do nada, ou melhor, irrompe nesse nada que se cobre do véu do aparente, que se abriga na tenda que o pastor desmontará depois de tê-la usado um dia e jogará fora para que não lhe pese no caminho. “Veio habitar entre nós”. O acontecimento da presença dAquele que é o único que pode desencobrir o mistério das coisas, ou seja, o mistério do Ser, ou seja, o mistério da vida. Desvelar o Mistério significa desvelar algo que continua a ser mistério. Nenhum homem jamais viu o Seu rosto, o rosto do Ser: nenhum homem! Mas Tu, ó Menino que vem, vieste para desvelar esse Mistério, o Mistério que nenhum homem jamais viu.
Com alegria no coração adoremos Cristo que nasce, que nasce todos os dias do mistério de hoje, do mistério de um hoje. Cristo nasce. Com a alegria do coração, a nossa memória firme seu olhar sobre Ele e liberte-se em um novo canto; que a nossa vida se torne nova, pois o canto da vida é a própria vida. Que se torne nova, todos os dias nova, que se renove. Porque esse é o fruto da certeza da sua misericórdia, da certeza de que a sua potência é maior do que a nossa fraqueza. Certos do “Deus conosco”. Só dessa certeza pode vir a alegria, só da certeza do “Deus conosco” pode vir a alegria. Não há nenhuma outra fonte.
A consciência dessa Presença é maior do que qualquer coisa que a pessoa possa fazer pelos outros. Nós fomos chamados a ter consciência dessa Presença; por isso, além do desejo de uma afeição cotidiana a Ele, nós temos de desejar com todo o coração que a nossa vida dê testemunho disso no mundo, que por meio de nós o mundo venha a se dar conta, ou seja, que a nossa vida seja de fato conscientemente imanente, que participe da vida do povo de Deus, do Seu povo, povo que Lhe pertence, todo cheio de boas obras.

4. Jesus é apresentado no Templo
Quando Nossa Senhora foi ao templo, oito dias depois, para oferecer seu Primogênito, no grande templo com o qual todo judeu identificava a majestade de Deus, ela certamente se sentia como que nulificada pela grandeza e pela majestade de Deus. Mas, ao perceber a grandeza do templo, um sentimento a penetrava e prevalecia: a grandeza de Deus era o Menino que tinha nos braços, era o Menino que chorava, era o Menino que ela amamentava. Vendo de que coisa Deus fez nascer aquele que é o fator decisivo da história e do mundo, como dirá o velho Simeão, e que divide o mundo em dois – pois é uma proposta diante da qual o coração do homem se divide em dois, e todos os corações dos homens se dividem em dois –, vendo de que coisa nasceu Aquele que as portas dos infernos não poderão mais destruir, uma força humana que é a maior de todas, vendo de que coisa surgiu, a pessoa fica como que petrificada pelo maravilhamento.
Todo o resto pode ser compreendido por todos os homens – o senso religioso, eles o chamam –, mas esse impacto e esse acontecimento é totalmente impensável, imprevisível, totalmente novo, total e verdadeiramente incompreensível: Deus feito parte da nossa experiência, da experiência do nosso eu, da experiência da maternidade de Nossa Senhora, da experiência de cada ação que fazemos.

5. Jesus é reencontrado no Templo entre os doutores
Experimentemos nos identificar com a realidade de Nossa Senhora. Quem era a sua autoridade, a autoridade para ela e para seu esposo, José? A presença daquele Menino, que talvez ainda não falasse, que quando começou a falar e a agir deu aquele golpe de cena aos doze anos, que impressiona como um instante de Mistério que levanta o seu véu; a autoridade era aquela Presença, por isso a regra era a convivência com aquele Menino, com o Menino deles. Tudo isso vive como consciência. A consciência é um olho arregalado para o real, que como tal não passa. Factum infectum fieri nequit : não se pode impedir que uma coisa que é feita, seja. O que é feito permanece para sempre. A regra de Nossa Senhora era a presença daquele Menino. Assim, roguemos a Nossa Senhora que nos ajude a participar dessa consciência com a qual viveu; que uma Presença constitua a regra da nossa vida, e portanto a companhia da nossa vida e a autoridade na nossa vida e a doçura na nossa vida. Esse ideal deve ser o ideal rogado, pedido, solicitado, mendigado, de todos os dias.

Voltemos a ti, ó Nossa Senhora, para que purifiques o nosso coração de toda essa névoa que normalmente o envolve e impede que nossos olhos vejam, em toda a potência e inexorabilidade da tua presença determinante, o significado, o sentido, a consistência de qualquer coisa que tocamos, qualquer que seja a formulação em que nos flexionemos.
Nossa Senhora, faz com que sejamos fiéis em olhar para a tua presença todas as vezes que tu nos acordares, todas as vezes que for necessário para nós; para isso os Angelus da manhã, do meio-dia e da noite constituem os alicerces da nossa beleza e da nossa construtividade no mundo.
Aconteça conosco, ó Espírito de Deus, como aconteceu com Nossa Senhora: o mistério do Verbo se fez carne nela, se fez parte da sua carne e coincidia com as suas expressões. Que a memória de Cristo se torne, assim, carne da nossa carne, torne-se parte de todas as nossas ações, conselho para cada pensamento e chama para cada afeição, e mova-se em nós em todos os nossos movimentos, de manhã até a noite, ao comer e ao beber, em todo o viver e no nosso morrer.


Mistérios Dolorosos
Nossa Senhora sentia que a criatura que tinha em seu ventre teria de morrer um dia – e isso toda mãe, mesmo tentando não pensar, sente –, mas não que ressuscitaria. Esse é o único acontecimento comparável ao mistério do início; tal como a semente se formou dentro do seu seio, da mesma forma, tendo chegado a maturidade do tempo, ressuscitaria; aquele homem ressuscitaria. Mas ela não sabia disso. “Faça-se em mim segundo a tua palavra”, na boca de Nossa Senhora, é o mesmo que: “Senhor, seja feita a tua vontade” na boca de Cristo. A correspondência entre o Angelus e a Cruz está no fato de que ambos dizem: “Faça-se em mim segundo a tua palavra”. É o gesto da obediência na sua pura essencialidade. A sua pura essencialidade gera, de alguma coisa que Deus pede, uma arrancada para passar por uma cruz e uma ressurreição das quais brota uma fecundidade sem limites, uma fecundidade que tem o limite do desígnio de Deus. A fecundidade brota da virgindade. Só assim se pode conceber a virgindade.

1. Jesus no horto das oliveiras
“Minha alma está agora conturbada. Que direi? Pai, salva-me desta hora [ante o pensamento do sacrifício, ante o pensamento da morte, da renúncia de si...]? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim [por isso, por essa condição fui escolhido, chamado, educado amorosamente pelo mistério do Pai, pela caridade do Filho, pela luz quente do Espírito. Minha alma está agora conturbada. Que direi? “Pai, salva-me desta hora? Manda embora esta condição, Pai, some com esta condição...” Devo dizer isso? Mas foi precisamente para esta hora que eu vim!]”. Assim, poderei dizer no final: “Pai, glorifica o teu nome [glorifica a Tua vontade, concretiza, realiza o teu desígnio], que eu não compreendo [porque ele não compreendia a grande injustiça]. Pai, glorifica o Teu nome, diante do qual estou em temor e tremor, em obediência, ou seja, em amor: a minha vida é o Teu desígnio, é a Tua vontade”.
Quantas vezes – ao rezarmos ao Espírito e a Nossa Senhora – teremos de reler este trecho para nos identificarmos com o instante mais lúcido e mais fascinante em que se exprimiu a consciência do homem Cristo Jesus; ela pode ser reconhecida, desde os seus recônditos mais profundos até os cumes mais altos do seu exemplo de amor ao Ser, de respeito à objetividade do Ser, do amor à sua origem e ao destino, e ao conteúdo do desígnio do tempo, da história. “Pai, se é possível, que eu não morra; contudo, não a minha vontade, mas a tua seja feita”. É a aplicação suprema do nosso reconhecimento do Mistério, ao aderirmos ao homem Cristo ajoelhado e banhado do sangue que lhe escorre pelos poros da pele na agonia do Getsêmani: a condição para se ser verdadeiro em um relacionamento é o sacrifício.

2. Atado à coluna, Jesus é flagelado
A companhia do Homem-Deus à nossa vida tornou-se tragédia, inconcebível, inimaginável, que desafia a imaginação de qualquer um. Em todos os séculos da história, não se pode imaginar – nem por hipótese, nem que fosse em uma fábula – uma tragédia maior do que esta: a companhia de Deus feito carne esquecida, ultrajada pelo homem; uma tragédia que nasce do cinismo de seguir os nossos instintos. Encontram-se, em torno desse “lenho”, a maldade do homem que perde a consciência do chamado do Infinito e as desgraças que esse crime provoca, de forma tal que a morte do Homem-Deus é a soma e o símbolo de todas essas desgraças. Mas, ao mesmo tempo, encontra-se aí também a potência irresistível de Deus, pois justamente essa suprema desgraça, essa maldade, torna-se instrumento para uma vitória sobre a própria maldade e para a sua redenção. Esse é o enigma que Deus mantém na vida, pois esse grande desígnio de bondade, de discernimento, de sabedoria e de amor tem de ser provação, tem de pôr em prática a idéia de provação. Por que provação? Porque o mundo está no mal, o mundo está posto sobre o Maligno.

3. Jesus coroado de espinhos
Aquela cabeça pequenina, que Nossa Senhora, como toda mãe diante do filho recém-nascido, terá tomado nas mãos sem a apertar, terá acariciado com delicadeza como toda mãe faz, terá olhado com maravilhamento e com admiração, estava destinada a ser coroada de espinhos. Salve caput cruentatum. Como Nossa Senhora experimentava em si as conseqüências desse mal do mundo, sem retaliação e sem acusações, mas como dor que já era imensa e viria a culminar no olhar para a morte de seu Filho!

4. Jesus no caminho para o calvário
Deus, que veio viver entre os homens, vai para o patíbulo: derrotado, um fiasco; um momento, um dia, três dias de nada, nos quais tudo acabou. Essa é a condição, a condição do sacrifício no seu significado mais profundo: parece uma derrota, parece que não se consegue, parece que os outros é que têm razão. Ficar com Ele, mesmo quando parece que tudo está acabando ou já acabou, ficar ao seu lado como fez Sua Mãe: só essa fidelidade nos leva, cedo ou tarde, à experiência que nenhum homem fora da comunidade cristã pode fazer no mundo: a experiência da Ressurreição.
E nós somos capazes de deixá-lo por outro amor, somos capazes de deixar esse Cristo que se entrega à morte para nos salvar do mal, ou seja, para que nós mudemos, para que o Pai eterno regenere em nós o que o crime do esquecimento venceu! Esse homem, que se lança sobre a cruz para empunhá-la, para abraçá-la, para pregar-se sobre ela, para morrer, uma coisa só com aquele lenho, “nós o deixaremos por outro amor”? Esse Homem dá tudo por nós, e nós temos de deixá-lo por outro amor?

5. Jesus morre na cruz
Nós somos pecadores e a morte de Cristo nos salva. A morte de Cristo faz com que nosso passado se torne bem, qualquer que seja ele, mas o nosso passado está cheio da sombra que se chama pecado. E é a morte de Cristo que nos salva. Não podemos reconhecer Cristo na cruz sem entender e sentir imediatamente que essa cruz tem de nos alcançar, que não podemos mais fazer objeções ao sacrifício; não há mais objeção ao sacrifício desde que o Senhor morreu.
Justamente por meio do nosso olhar fito sobre a cruz – onde está Aquele que nos olha com o olhar fito da eternidade, fito de piedade e de desejo de salvação, tendo piedade de nós e do nosso nada –, por meio do olhar fito sobre a cruz, torna-se experiência de redenção aquilo que seria uma coisa tão estranha a ponto de parecer abstrata para nós, arbitrariamente criada. É fitando a cruz que nós aprendemos a perceber nela experimentalmente a Presença que invade e a necessidade irresistível da graça para a perfeição da nossa vida, para a alegria da nossa vida. É em Nossa Senhora que a adoração do nosso coração encontra o seu exemplo e a sua forma. Com efeito, a cruz não foi condição apenas para Cristo: a morte de Cristo na cruz salva o mundo não isolada em si mesma. Não é sozinho que Cristo salva o mundo, mas com a adesão de cada um de nós ao sofrimento e à cruz. É o que diz São Paulo: “Completo, na minha carne de homem, o que falta das tribulações de Cristo, da paixão de Cristo”.

Contigo, ó Maria, reconhecemos que a renúncia que é pedida à nossa vida não é castigo, mas condição para a salvação da vida, para a sua exaltação, para o seu incremento. Maria, faz com que a nossa oferta, a oferta da nossa vida ajude o pobre mundo, este pobre mundo, a enriquecer-se na consciência de Cristo e a alegrar-se no amor a Cristo.

Mistérios Gloriosos
Nossa Senhora, quando rezava com as palavras dos profetas, quando esperava, como humilde e fiel judia, não podia imaginar que aquela semente seria concebida, e como seria concebida. Não podia pensar, quando o via brincar, pequeno, quando começou a ouvi-lo chocar a mentalidade comum, o que aconteceria depois da sua morte, na sua morte. Aquela semente colocada em seu seio, aquela semente que depois foi colocada no seio da morte, da mesma forma como fez dela a rainha do mundo, fez da morte a sua última escrava, venceu-a. É a vitória sobre a morte.
É preciso rezar a Nossa Senhora com todo o coração, porque nela começou todo o Mistério; uma vez que Deus é o único que trata o homem segundo a totalidade do seu eu, ela começou a entender quando começou a ser mãe, quando disse: “Sim”. Foi então que ela começou a entender. Começou. Era ainda um infinitésimo, mas começou a entender. E o que começou a fazer? Começou trazer em si, a “tomar conta”. Do quê? Da Realidade de cada coisa que existe no mundo. Concebendo a Cristo, começando a tomar conta de Cristo, começou a conceber, começou a tomar conta de cada coisa que existe no mundo, pois cada coisa que existe no mundo é feita de Cristo. “Tudo nEle consiste”.

1. Jesus ressuscita da morte
Morreu para ressuscitar, pois a glória de Deus por meio da sua vinda ao mundo não é a cruz, mas a ressurreição. Morreu para ressuscitar e ressuscitou para ficar. O milagre pelo qual se entende que é Deus mesmo que continua entre nós é a unidade, a impossível unidade entre os homens.
O mistério pascal, antes de mais nada, é para nós chamado de atenção para o maior acontecimento que o tempo da história pode hospedar em si. Todo o tempo e a história são feitos para isto: para que existam pessoas que renasçam no Batismo, renasçam a partir da morte e ressurreição de Cristo; a fé em Cristo morto e ressuscitado torna-nos novas criaturas. Este é o verdadeiro sujeito da vida do mundo, o sujeito verdadeiro, aquele que ouve a voz da verdade, a voz dAquele que é a Verdade, dAquele que morreu para testemunhar a Verdade que Ele é: quem vive a consciência de ser uma nova criatura. Essa criatura nova que o Batismo traz para dentro de nós – não obstante deixe todos os traços do homem velho em nós e, portanto, estabeleça um confronto, uma luta que não podemos evitar todos os dias –. Nessa novidade, trazida pelo Batismo, o nosso eu, lentamente, confunde-se cada vez mais com Cristo. Dizer “Eu” significa dizer cada vez mais “Tu”, “Tu, ó Cristo”, e julgar de maneira diferente quer dizer julgar segundo a Sua mentalidade: metanoeite, mudem de mentalidade. E amar quer dizer cada vez mais amar o que Cristo ama e como Cristo ama, por que Cristo ama: a identidade entre nós e Cristo, ou seja, a vida como memória.

2. Jesus ascende ao céu
A Ascensão é a festa do humano. Com Jesus, a humanidade física, carnal, entra no domínio total com o qual Deus faz todas as coisas. Cristo desce até a raiz de tudo. É a festa do milagre: um acontecimento que por sua força chama a atenção para o mistério de Deus.
Por isso a Ascensão é a festa na qual todo o Mistério se concentra e onde se concentra toda a evidência das coisas. É uma festa extraordinária e estranhíssima, onde todos os rostos de todas as coisas se encontram para gritar ao homem ignaro, distraído, sombrio e “malvisto” a luz de que são feitas; para dar-lhe de novo o significado pelo qual ele entrou em relação com todas as coisas, para gritar-lhe a tarefa que tem nas coisas, a sua parte entre as coisas. Pois tudo depende dele: todas as coisas foram feitas para o homem.
Qualquer um que tenta dar testemunho do Senhor com a sua vida já faz parte do mistério da sua Ascensão, pois Cristo elevado ao céu é o Homem pelo qual tudo é feito, o Homem que começou a tomar posse das coisas do mundo.

3. O Espírito Santo desce sobre Maria e os Apóstolos
Veni Sancte Spiritus, veni per Mariam. Vem, Espírito Santo (o Criador). Vem por meio de Nossa Senhora. Por meio da carne do tempo e do espaço, porque Nossa Senhora é o início da carne como tempo e espaço: é por meio dela que o Espírito vem.
É através de Nossa Senhora que toda a renovação do mundo passa; tal como passou por Abraão a escolha do povo eleito, da mesma forma o novo e definitivo povo eleito – do qual fomos chamados a participar – passa pelo ventre de uma menina, pela carne de uma mulher. Por isso a simpatia e a afeição por ti, mãe de Deus e mãe nossa, é grande, como a que se tem por teu Filho.
O Espírito é a energia com a qual a Origem, o Destino e o Tecido de tudo, mobilizando tudo segundo o seu desígnio, invadiu a nossa vida e levou-a até o coração desse desígnio, quer quiséssemos ou não. A única condição é que não o tivéssemos recusado, ou seja, que não o recusemos, ou seja, que não o venhamos a recusar. O Espírito nos revelou que Cristo morreu e ressuscitou, e esse é o significado exaustivo da minha vida.
Este é o dom de Cristo ressuscitado, o dom do Espírito, que nos cura na raiz, nos dá de novo a grande possibilidade, que é reconhecer que tudo vem de Deus por meio de Cristo, que é o método usado por Deus.

4. Maria é elevada ao céu
Na Ascensão, o Senhor, com a sua Ressurreição, tornou-se o dominador do mundo, e por isso há alguém entre nós que salvará tudo o que somos, que é tão poderoso a ponto de salvar a nossa vida, a ponto de conservá-la toda, para dá-la toda de novo a nós perdoando-nos os nossos pecados. A demonstração disso é o mistério da Assunção, no qual o Senhor tomou a humanidade de Nossa Senhora e não a deixou à mercê da morte, nem por um momento.
Com o mistério da Assunção, o Senhor diz: “Vede, eu não deixarei que perdais nada do que vos dei, do que usastes, do que saboreastes, até daquilo que usastes mal, se fordes humildes diante de mim. Ou seja, bem-aventurados os pobres de espírito: se reconheceis que tudo é graça, que tudo é misericórdia, porque os vossos critérios são nada, o meu critério é tudo”. Nossa Senhora já está nesse nível último, profundo do Ser, do qual todos os seres extraem sua consistência, sua vida e seu destino. Para isto foi elevada ao céu, onde está o mistério de Deus: para que fosse para nós mãe cotidiana do acontecimento.
A glorificação do corpo de Nossa Senhora indica o ideal da moralidade cristã, a valorização de cada momento, o valor de cada instante. Por isso a valorização da vida, da nossa existência, da vida do corpo do mundo, é a exaltação da matéria vivida pela alma, vivida pela consciência que é relacionamento com Deus, é a valorização da nossa vida terrena, não porque agraciada por particulares circunstâncias, mas porque por meio de cada uma das menores coisas se veicula a nossa relação com o Infinito, com o mistério de Deus.

5. Maria é coroada Rainha na glória do Paraíso
Rainha do céu quer dizer rainha da terra, rainha da verdade da terra, da terra na sua verdade permanente, porque veritas Domini manet: a verdade do Ser permanece.
A espera da volta de Cristo – e isto cada um de nós é chamado a experimentar – é a paixão, a alegria, a esperança cheia de alegria daquele dia em que todo o mundo será realmente si mesmo, toda a humanidade O reconhecerá e Cristo realmente será “tudo em todos”. Esse momento é o significado de tudo o que existe, é o significado de todo o tempo, de tudo o que se faz, e é o vértice, o coração da esperança. Porque a glória do homem depende disso, nessa adesão o homem começa a gritar a glória de Deus. A nossa vida procura a glória porque é feita para ela, e a glória não é algo prometido para o amanhã, mas uma promessa já iniciada e já cumprida; e que se realiza para nós na medida em que a nossa pessoa se oferece e reconhece que a consistência de tudo é Cristo. O Paraíso não está em outro lugar: será aqui. O Paraíso é a verdade total entre ti e mim, na relação entre ti e mim; é a verdade total na relação entre mim e a imagem que me vem pelo pensamento, entre mim e as coisas.
O Paraíso é uma festa que “compie omne festo che’l core ha bramato” (“realiza toda a alegria de que é ávido o coração”).

Que a mão de Nossa Senhora nos introduza no Mistério, porque esse é o sentido dos nossos dias, o significado do tempo que passa; que o seu olhar nos guie no caminho, que o seu exemplo nos eduque, que a sua figura constitua o desígnio do nosso propósito. Mãe generosa, que geras para nós a grande presença de Cristo, nós queremos ser consolados, confortados, alimentados, enriquecidos, amamentados por essa presença que renasceu da tua carne, e por isso te pedimos que nos tornes partícipes da tua liberdade, da tua disponibilidade, da tua vida.