Viver a razão
DocumentoNotas de um diálogo de Luigi Giussani com um grupo de universitários. Milão, 21 de junho de 1996
Colocação. Este ano começamos a fazer a Escola de Comunidade dentro do ambiente e isto se revelou um fenômeno por si só agregador e envolvente, que nos permitiu um relacionamento imediato com as pessoas. A dificuldade que vem à tona, porém, é entender a relação da Escola de Comunidade com a vida, e, em particular, com os conteúdos do estudo, pois, quando se tenta fazer essa relação, a comparação acaba servindo apenas como pretexto ou sendo sentimental. A conseqüência disto é que a pessoa enfrenta seus problemas sozinha ou, no máximo, se realizam as iniciativas juntos. Por outro lado, em uma universidade que exige cada vez mais que se estude, a ponto de não sobrar espaço para outras coisas, estabelecer esta relação é fundamental, caso contrário a maior parte do tempo é vivida de forma acrítica. Tentamos fazer dentro da universidade alguns encontros culturais (dos quais participaram muitíssimas pessoas, sobretudo jovens), mas temos dificuldade para viver esta capacidade crítica no cotidiano. Gostaríamos, então, de lhe perguntar: o que o senhor pretende quando diz que a Escola de Comunidade não é entendida se não se entende a sua utilidade para a vida? E que significa, então, fazer também com que a assembléia de Escola de Comunidade seja vivida deste modo?
Fazer uma assembléia deste modo - respondo começando pela última parte da pergunta - significa refletir o esquema com o qual nós nascemos. A Escola de Comunidade era chamada de “raio”. Quando a comunidade se reunia, a reunião era chamada de “raio”. O “raio” é a experiência pessoal colocada em comum. Cada um devia contar a sua experiência. No final, o mais velho, o mais adulto ou quem tinha mais autoridade procurava dar uma resposta em que estivessem contidas todas as verdades implícitas nas colocações que tinham sido ouvidas. Quero dizer que a resposta à pergunta não pode ser dada senão a quem busca realmente cumpri-la, vivê-la. Diante de um tema colocado como assunto da reunião, uma página do Evangelho ou uma pergunta exemplar, se você não se esforça para entender de que modo o fato de se reunirem possa esclarecer a resposta à pergunta, se você não se esforça, aprenderá apenas fórmulas.
Fico um pouco perplexo ao responder esta pergunta, pois - e eu fazia menção a isto, há poucos minutos, à pessoa que vinha comigo de carro para cá - ela implica a resposta a esta outra pergunta: “Filosoficamente, ou seja, do ponto de vista da razão, qual é a posição diferente que o Movimento assume em relação a todos os outros grupos? Que posição diferente temos, do ponto de vista do olhar, da razão, da observação?”.
Para nós, o ponto da questão está no fato de que a realidade se torna evidente na experiência. Escrevam esta frase, porque é capital. Na experiência: como para João e André, quando viram Jesus: depois daquela tarde, ninguém nunca mais poderia arrancar deles a impressão que tinham tido daquele homem. A definição que dei é importante para mim, tal como é importante a surpresa que João e André experimentaram diante da realidade de Jesus.
De qualquer forma, a minha pergunta queria antes de mais nada dizer: “Rapazes, o que nos importa é a realidade”. Se uma coisa não é real, o que ela nos importa? Aquela coisa não pode servir para nós. Tudo é desvanecente, tudo é passageiro. A realidade nos importa. A realidade! Não: “A realidade é a verdade”, porque isto é sem sentido; mas: “a realidade é o âmbito em que a verdade subsiste”, é a figura com a qual a verdade coincide. Enfim: é verdadeiro o que é real, é real o que é verdadeiro. Pode-se usar, sem filosofar demais, a expressão “realidade e verdade”. Que lhes parece? Esta é a primeira coisa que sublinho. “Verdade”, portanto, coincide para nós com a palavra “realidade”. Que aconteceria, se para alguém essas palavras não fossem coincidentes? Aconteceria que pode existir uma verdade que não seja real. Mas que quer dizer isto? Onde está essa verdade? Onde se encontra? Nas névoas do subsolo ou no ar rarefeito?! A verdade é real. A palavra “real” indica algo “verdadeiro”. Tanto que as palavras “real” e “verdadeiro” podem trocar-se uma pela outra. Se é verdadeiro, existe; se não é verdadeiro, não existe. Se existe, é verdadeiro. Se existe, é verdadeiro somente se percebido na medida em que existe, não na medida em que eu o penso, em que faço interferir um outro fator para acrescentar alguma coisa ou para manifestar uma força que, de outra forma, a palavra não tem. Verdadeiro e real têm um vínculo pelo qual um é o outro, implica o outro - ou, mais simplesmente, é o outro -. Quando as crianças perguntam: “É verdade mesmo?” - você está contando uma história, um conto, uma fábula, e eles dizem: “É verdade mesmo? É verdade verdadeira?” (que é a fórmula do ceticismo entre as crianças) - elas “replicam” e justificam aquilo que acabo de mencionar: é a realidade que interessa, pois a verdade está na realidade.
Vocês querem um exemplo disto, recente, no sentido de dois ou três meses atrás, quando apareceu nos jornais uma discussão entre cientistas a respeito da verdade e do infinito? Os cientistas podem usar a palavra “infinito” como um famoso físico a usou: “Infinito? Infinito quer dizer um finito que se estende indefinidamente. Pode-se conceber a realidade como infinita no sentido de que o infinito é uma coisa que se alarga, que se dilata sempre”. E eu dizia: “Não! Infinito é uma outra coisa!”. Infinito é um não-finito. Por isso, o infinito é uma outra coisa: é uma realidade, e indica uma natureza, uma estrutura, algo que nunca, em nenhum sentido, pode ser concebido como finito. O finito, se fosse dilatado por milhões de séculos, se fosse dilatado até o infinito, no sentido matemático do termo, seria sempre finito. Dá para entender? Não é possível identificar o infinito com o finito que se dilata. Não é possível. O infinito é uma outra coisa! Não é finito! É uma “coisa”, que não é finita. Se é uma “coisa”, posso imaginar tomá-la com as mãos, olhá-la com os olhos, dizer-lhe: “desgraçada”, “delinqüente”, “tu”, “bom”, “misericordioso”. Se é uma coisa, devo poder dizer, tal como digo a um amigo ou a um inimigo, tal como digo a um estranho: “Não tem de quê!”, de uma forma tão boa, tão espontânea, que o outro se admira e diz no seu coração: “Como é ‘gentil’ este sujeito!”. “Gentil” no sentido de bom.
Confesso que errei, pois como é possível responder a uma pergunta sem responder a todos os fatores que ela põe em jogo? Porque, tendo dito isto da realidade - a realidade é verdade -, é preciso ir em frente: como é possível conhecer a verdade, como é possível conhecer a realidade? Como é que faz um cientista para conhecer uma estrela distante, que os antigos não teriam podido registrar? Só os telescópios modernos podem torná-la tão próxima que o cientista consegue analisá-la: deve, portanto, trazê-la para mais perto. Que quer dizer trazer para mais perto esta estrela distantíssima que para os antigos, mais sérios observadores, teria sido como que uma não-existência? Como fazem para torná-la existente? Para falar com ela como se estivesse presente? Como fazem para tornar presente a si uma coisa que está distante? Somente se ela, esta coisa que está distante, entra na experiência. Que quer dizer que “entra na experiência”? Quer dizer que eu a vejo como se fosse este copo, como se fosse o amigo, como uma das coisas que agarro no conjunto formado por uma coletividade de pessoas e de coisas que desponta sabe lá de onde e que vai sabe lá para onde, mas que a certo ponto se torna evidente. É como o Tubo de Quincke (que eu estudei no segundo grau), que é um aparelho para realçar que nota é dominante em um certo acorde: quando uma certa coluna sonora passa pelo Tubo de Quincke, se a nota dominante for um ré, por exemplo, o Tubo grita aquele ré de maneira que supere a escuta das outras notas. A realidade entra na nossa mira, como conteúdo do nosso jogo, da nossa atividade, e é agarrada por nós, na medida em que entra, em que a deixamos entrar, na experiência. Por isso, verdade e realidade fazem-se reconhecer na experiência. Mas o que é a experiência? Pensemos no verbo antes usado: “A realidade se evidencia na experiência”: na experiência torna-se evidente o que existe. E então, o que é a experiência? Poderíamos dizer: “A experiência é o tornar-se evidente da realidade”.
Você não pode dizer: “Senhor, Deus do céu e da terra”, sem partir de uma experiência, de fatores definidores de que a sua experiência está carregada. Lembrem-se daquela página da Escola de Comunidade, em O senso religioso, onde se imagina, vocês são convidados a imaginar que um homem nasça, ou melhor, que vocês mesmos nasçam com vinte anos, já com a consciência dos vinte anos, que no primeiro instante de vida já tenham a consciência dos vinte anos. Qual é a primeira coisa que se imporia a vocês? A primeira coisa, em sentido absoluto, que vocês perceberiam? Imaginem. Estou dentro do ventre de minha mãe. Um empurrão. Saio e abro os olhos. O primeiro aspecto da realidade que toca o olhar, que nesse caso hipotético já tem a consciência madura dos vinte anos, a primeira coisa que me toca, se eu abrisse os olhos com a consciência que tenho agora, não é “tu, ele, ela”, mas é “tudo junto”, esta realidade feita de mil pessoas, a realidade, o mundo inteiro, tudo o que existe. Ora, para dirigir-se a Deus dizendo: “Deus do céu e da terra”, a pessoa tem de já ter feito experiência disto, não pode deixar de partir da experiência deste Deus, desta “realidade” estranha, não imaginável, não definível por ela. Se a pessoa nunca se perguntou: “A realidade, tudo isto, como é que existe? Quem é que a fez?”, se a pessoa nunca se perguntou isto, é como uma criança despreparada ou como um analfabeto diante de um texto a ser lido.
Assim, eis o nosso método para esclarecer o problema do homem como religiosidade - que é o problema mais profundo e totalizante do homem -: é necessário antes de mais nada tornar experiência pessoal o relacionamento entre o homem e a realidade enquanto originada. É realidade, se entra na experiência. Mas como Deus faz para entrar na sua experiência? Entra na sua experiência se você o deixa entrar. Colocar a pergunta: “No fundo, no fundo, de que é feito o mundo? No fundo, no fundo, porque existe esta coisa que se chama céu e terra, ou a minha ação pequena e mirrada?”, colocar-se estas perguntas é trazer à luz do dia o fato de que a realidade não se faz por si, mas impõe-se nela algo que nós não definimos. Na nossa experiência, a realidade se evidencia; não “se forma”, não “se faz”, não “se constrói”, mas se evidencia, torna-se evidente. Torna-se evidente uma coisa que já existe. Por isso, a realidade torna-se conhecida na experiência: ou seja, quando é percebida como algo que já existe.
Daqui surgem as duas outras frases nas quais poderia ser resumida toda a nossa cultura.
a) A primeira pergunta seria, então: “De que é feita a realidade?”. Esta realidade impõe-se aos nossos olhos como algo que já existe. Se eu nascesse com a consciência dos vinte anos, iria me dar conta, seria obrigado a admitir algo que já existe. A realidade aparece como um já existe. Existe por causa de algo outro, pois surge um algo outro em relação ao que eu vejo!
b) A segunda pergunta seria: “Como é possível entrar em relação, como é possível conhecer alguma coisa deste “algo outro”, deste Deus - chamemo-lo logo desta forma, para apressar - ?”. Somente se Ele se revela, se Ele se torna Jesus. Deus se revela quando se torna homem, na medida em que se torna homem, na medida em que se identifica com algo evidente na experiência. E Ele se fez homem! Se Deus se fez homem, só é possível conhecê-lo de maneira adequada e respeitosa por este caminho. Portanto, conhece-se Deus no homem Jesus Cristo.
c) Terceira pergunta: “E este Jesus Cristo, onde está?”. Resposta: este Jesus está na companhia de homens que O reconhecem e que se chama Igreja. Igreja: a companhia dos homens que O reconhecem.
Estas são as três grandes fórmulas de resposta às três grandes perguntas, mais sérias do que qualquer outras que existam, e que fazem o coração ou a mente do homem encherem-se de raiva.
Como você consegue dizer: “Eu Te amo, ó Deus”, sem que você saiba conscientemente o que quer dizer amar? Somente na medida em que você fez experiência do amor é que pode dizer: “Eu Te amo, ó Deus”. “Ó Jesus, de amor inflamado”. Que quer dizer “Jesus, de amor inflamado”? Jesus, de amor inflamado? Deus feito homem, um homem que disse: “Filipe, tu me perguntas de que parte venho, mas quantas vezes eu o disse e tu não entendeste? Filipe - dizia Jesus, na última ceia, antes de encaminhar-se para morrer - quem vê a Mim vê o Mistério”. Certamente é uma coisa impressionante imaginar como aqueles doze homens ficavam em volta daquele homem, de um homem como eles - do qual conheciam a cozinha em que havia comido, a oficina em que tinha trabalhado - que falava desta forma. Na medida em que Jesus, como Deus, não se torna experiência, não entra na nossa experiência, não podemos reconhecê-lo adequadamente, com aquela solidez, ainda que dificuldade, com aquela sugestividade, ainda que enigmaticidade, com que a realidade se apresenta aos nossos olhos. É assim que você, aos quinze anos, pretende já ter uma namorada, e junta-se com ela, como se diz (jovens “se juntam”): você não pode realizar o amor, um amor humano, que seja humano, que seja amor, a não ser referindo-se de algum modo à experiência de amor que você já fez, a do amor de sua mãe e de seu pai - por mais repugnante que lhes possa parecer esta relação -, a não ser referindo-se a uma experiência de amor já feita. Por isso, o que você faz agora é validado por aquilo que você fez antes. Tal como sua mãe se comportava com você, tal como seu pai lhe falava, da mesma forma você fala, tende a falar com ela, ou com ele. Há um spring, há uma fonte diferente, até diferente, daquilo que você tinha aprendido antes, mas é diferente porque ainda não está madura. À medida que amadurecer, você vai entender que o amor ao pai e à mãe têm em última instância o mesmo rosto, o mesmo vigor, a mesma força que tem o amor entre o homem e a mulher.
Percebo que estou indicando distâncias abissais, como de uma margem à outra do grande Rio Amazonas - onde, ao longo de mil quilômetros, uma margem não enxerga a outra -. Será necessário tempo e aprofundamento. Por isso, concluo, o problemaque a nossa amiga colocou antes é o problema de tornar parte da experiência a realidade que nos interessa discutir, ou descobrir, ou servir, para torná-la útil à afirmação desse “eu” que parece pequeníssimo como uma folha de mato no mundo, um botão que acabou de aparecer em um ramo no início da primavera, e no entanto é feito para o Infinito. Como dizia Dante: “Cada um confusamente se apega a um Bem no qual se aquiete a alma”. A alma se “aquieta” quando tudo tem resposta. Como a fome, quando recebe o alimento que a satisfaz, se aplaca. Assim é, em última instância, o fato do amor.
Colocação. Diante destas observações, que exprimem o que nós encontramos, que indica o fato de que depois a pessoa sinta o estudo dividido, sinta o cotidiano dividido? Que deve fazer?
Cada um de nós tem como ponto de partida a percepção de uma divisão. Pois, se uma coisa é nova, não é algo que eu já tenho, por isso eu tenho como ponto de partida a percepção de que aquela coisa ainda é dividida de mim. Devo conquistar a unidade com ela. Exatamente como o rapaz faz com a moça: são duas coisas divididas, mas a afeição remete o indivíduo àquele apego ao que tem na sua frente, àquela compreensão, àquela afirmação, àquela tomada do que tem na sua frente, graças ao qual se tornam uma coisa só. E é na medida em que a pessoa é ajudada nesta experiência de unidade que se entende que o que parecia unir mais é o que mais separa, como o instinto a um nível inferior, e o que parecia inatingível ou abstrato torna-se mais poderosamente fonte da afeição, da sugestividade, da simpatia, de uma dedicação.
Colocação. A minha pergunta parte de uma palavra com a qual nos deparamos tanto no trabalho de Escola de Comunidade quanto no trabalho em cima dos textos de juízo durante as eleições e em outros momentos. Esta palavra é “povo”. Gostaria de pedir-lhe que nos introduzisse melhor na compreensão desta palavra. Nós percebemos que, por exemplo, esta palavra lança uma luz nova também sobre a palavra companhia, pois a Escola de Comunidade diz que a intervenção de Deus torna-se concreta na história de um povo, e um povo tem as suas leis, os seus cantos, os seus condutores. Isto me faz entender mais (aconteceu assim também na minha vida) que encontrei uma história particular, feita de pessoas precisa; enfim: um povo.
“Companhia” quer dizer estar juntos por alguma coisa; estar juntos sem o “por alguma coisa” aborrece, acaba por aborrecer, sufoca. Companhia é igual a estar juntos por alguma coisa. A dignidade da companhia é definida pela dignidade do “alguma coisa”. Estar juntos para comer anchovas é uma coisa, é um certo valor, mas estar juntos para estudar Dante ou para entender os mistérios da evolução do universo, nos quais o homem começou a se introduzir, é diferente. Companhia é estar juntos por alguma coisa que se chama “escopo”. Uma companhia sem escopo não existe. “Povo” é uma companhia que tem como escopo levar a própria contribuição à imagem da história. Companhia é estar juntos tendo como escopo dar a própria contribuição ao desenvolvimento da humanidade que se chama “história”. Desenvolvimento em sentido quantitativo (por isso, eis a companhia do homem e da mulher) e em sentido social, como compreensão que se sustenta, que se motiva e que se busca juntos (eis a cultura), ou como estar juntos para enfrentar a história com maior força, do ponto de vista de uma maior força, de uma maior segurança, de maior hegemonia (isto pode se chamar Estado, aliança entre Estados, ou pode se chamar Império).
Colocação. Que relação há entre a maneira como foi sublinhada a companhia agora e tornar parte da própria experiência a realidade que nos interessa seguir, como o senhor disse, concluindo as passagens que fez antes?
A experiência se torna tanto maior, desenvolve, por assim dizer, o seu organismo, a riqueza do seu organismo, quanto mais contribuições a realidade deixa entrar na sua percepção crítica, na sua visão, no seu olhar vigilante e analisador. Como um médico radiologista quando olha para a chapa que tem de analisar: quanto mais contribuições tem aquela chapa, mais rico se torna o conhecimento do que ela retrata. Quanto maior é a contribuição da realidade que entra na experiência, mais a pessoa se torna potencializada, homem, gigante, personalidade, mais é capaz de desembaraçar-se diante das adversidades e de lançar-se cheio de imaginação criativa sobre o que se torna útil para ele, sobre o que lhe é oferecido.
Colocação. Eu compreendo cada vez mais que o Movimento é o lugar da minha pessoa, onde o que eu sou não é conservado como em um refrigerador, mas é abraçado, cuidado e recolocado continuamente em movimento, onde a companhia dAquele que fez o meu coração é tornada palpável. Percebo todo o risco de que, ao invés de ser o lugar do pedido, se torne o lugar da estagnação, na onda daquilo que já se sabe, que já se crê saber, ou dentro de uma absoluta tranqüilidade, tendo ainda por cima a tranqüilidade “religiosa”. Muitas vezes ficamos mais preocupados com as conseqüências técnicas e com os discursos que aprendemos do que com a exigência infinita que temos e que o mundo tem. O risco maior que corremos parece-me ser o “esquema” na vida, a aplicação de um esquema.
Não existe uma verdadeira companhia se ela não é filtrada pelo desejo de uma busca da verdade, ou seja, da realidade enquanto desejável e em última instância aberta às exigências do coração tal como elas são reclamadas pelo conceito de razão que a nossa comunidade, do ponto de vista cultural, sempre exprimiu. Não é companhia, se não esclarece qual é o seu escopo. Se um rapaz e uma moça se juntam sem imediatamente colocar-se como tarefa esclarecer a si mesmos que sentido tem essa relação, jogam a sua própria grandeza dentro da lixeira da instintividade pura, da instintividade maligna. É o perigo de contradizer-se logo. Não se está em companhia, se não é esclarecido o escopo para o qual esta é feita. O que nos mantém juntos? A companhia por excelência é a companhia do homem como tal, do homem como realidade do mundo, como realidade na história, como realidade destinada a algo além, maior, sempre maior. Então, neste terceiro caso, se entende que a companhia é o que ajuda você a se dar conta deste Outro, deste maior para o qual você é feito, a dilatar as fronteiras da sua alma, a encher de resposta cada vez mais adequada a sede do seu coração.
Colocação. Se eu penso na minha experiência pessoal, o Movimento é realmente o que me impede de estagnar, é realmente o fator, em certo sentido, de uma irrequietude, não de um tranqüilismo. Quando, ao contrário, a nossa companhia produz este tranqüilismo, é um sinal de alarme.
Uma companhia assim produz, torna-se fator de obtusidade, torna obtuso o que a natureza, no relacionamento com tudo o que está à nossa volta, lança como desafio, como provocação, como curiosidade, como sede de posse, como desejo do acontecimento, como espera de um destino. A natureza não erra na origem: é o gesto de Deus que nos faz. Não aderir à natureza original é o que confunde os termos, que desequilibra as coisas, que faz que com o tempo se torne impossível a certeza do caminho, não a felicidade que é própria de um outro mundo, ou seja, de um outro nível desta vida (o outro mundo é um outro nível desta vida, pois o outro mundo já existe neste mundo e é preciso descobri-lo, e para descobri-lo é necessário um sistema que não é o das medidas decimais ou dos quilogramas)... A companhia, se perde a consciência de que o seu escopo, em última instância, é ajudar cada indivíduo neste dramático e fascinante percurso, torna-se a fonte da obtusidade. Por isso, tudo se torna tendencialmente pesado e em última instância duvidoso. “Vai você, que é valente”. A gente se acha mais inteligente do que quem faz esse percurso, pois lhe diz: “Você que agüenta, que o faça”. Mas, se você não procura fazê-lo como ele, perde-se a si mesma, perde a sua humanidade, e sem este vínculo, o que fará? Será presa dos sonhos noturnos ou das instintividades diurnas de todos os outros.
Colocação. Pelo trabalho da Escola de Comunidade deste ano e pelo que aconteceu sobretudo nos últimos tempos, isto é, pelos relacionamentos que nasceram desde que o senhor veio à Universidade em Chieti, eu me dou conta de que a possibilidade de ser presença, ou seja, de ser nós mesmos, está em aderir, arriscando, a um Outro, em arriscar aderir à proposta de um Outro, ou seja, no sim a um relacionamento. O que eu queria lhe perguntar é como este “sim” permanece no tempo, porque eu me dou conta de que mal paro um pouco para pensar, mal experimento fazer as coisas sozinho, isto se perde, prevalece a instintividade.
A companhia é a expressão, mas também a condição com a qual, por natureza, o homem fica no caminho que começou - na busca que começou, na afeição em que já tentou criar alguma coisa, comunicar -. A companhia é o instrumento pelo qual o homem é “mantido de pé”. Mesmo quando escorrega, mesmo que se tornasse fraco por causa de uma doença, é ajudado a manter-se: arrastam-no atrás, a companhia arrasta-o atrás de si, mesmo quando ele não tem mais nenhuma força. Antes de mais nada, a companhia é o instrumento para tornar contínuo o “sim”.
Portanto, este “sim” permanece quando continuamos fiéis, permanecendo dentro da companhia, mesmo que sobrevenha uma nuvem em que não se vê mais nada. Uma pessoa que, por causa de uma nuvem que avançou sobre seus passos, abandonou a companhia, pode não encontrá-la mais, mas pode não encontrar mais nem mesmo a essência daquela companhia, o escopo. Nunca se deve ir embora. A lei da companhia é simplíssima: se você entrou nela, ou estava louco ou então estava certo, de algum modo estava certo, correspondia ao que você era. Se você encontrou uma companhia da qual pode dizer isso, ou pôde dizer isso uma vez, fique nela. Juro a você que a sua vida será sempre retomada, nunca mais se perderá, nunca mais se extraviará. Por isso, a fidelidade à companhia é o instrumento para dizer “sim” à companhia.
Colocação. Não lhe parece que um dos maiores defeitos que temos é o de, quase insensivelmente, agir como se tudo dependesse de nós?
Oh, sim! Quero dizer que pelo meu temperamento, pela minha formação e pelos acasos da minha vida, graças a Deus, eu nunca tive por um só instante a temeridade ou a estupidez ou a superficialidade de espírito de dizer ou imaginar que eu pudesse fazer tudo por mim mesmo. É uma tentação que eu nunca tive. Para quem, ao contrário, a tiver tido, pobrezinho, digo: “Olha que três se distingue do zero da mesma forma como um se distingue do zero, ou seja, zero é zero; se alguém é 0,0000001, já é alguma coisa. Assim, se você diz: ‘Tudo depende de mim’, é como se afirmasse que você não é zero”. Mas, mais zero do que isso! Você não existia. Então, se não existia e agora existe, o que em você se desenvolve e avança é algo que encontra aquilo que lhe mata a fome, aquilo que lhe mata a sede em algo outro. Por isso, enquanto você permanecer e a cada instante que permanecer no círculo de si mesmo, você será sufocado.
Colocação. Há algum tempo, algumas pessoas mais adultas, falando com o senhor, diziam: “Nós já raciocinamos como você, portanto o problema da razão está resolvido. Aquilo em que ainda estamos atrás, no entanto, é um problema afetivo, não amamos como você ama”. O senhor respondeu que era exatamente o contrário: “Vocês não percebem as coisas como eu”. Eu gostaria de lhe fazer uma pergunta um pouco articulada: em primeiro lugar, por que devemos perceber as coisas como você; em segundo lugar, o que quer dizer isto; em terceiro, como se faz isto?
Perceber as coisas como um outro “quer dizer” identificar-se com a maneira com a qual ele se coloca diante do real, busca discernir seus fatores (como um médico radiologista diante da chapa) e busca comparar cada um desses fatores que vê com o critério que tem em si mesmo, que é o seu coração, que é o sentido da experiência originária. Identificar-se com um outro quer dizer procurar entender os seus critérios, a maneira, o ponto de vista a partir do qual encara o real, e todo o jogo de medição da relação que existe entre os fatores que ele vê e a sede da sua alma. O fato de você se sentir na alma como eu me senti significa identificar-se comigo, repetir em você como eu me coloquei diante das coisas, como olhei para este quadro e como, fator por fator, julguei isto com base na evidência (ou seja, com base nas exigências) do meu coração.
É tão importante “porque” esta é a identificação com algo que se experimentou humanamente como um algo mais, mais, mais, mais! Aliás, que fez vir mais sede do que se tinha antes. E por isso, paradoxalmente, é verdadeira companhia a que se tem com a pessoa com o qual se torna maior para mim o que eu desejava antes, ou seja, sinto-me ainda mais distante do escopo a ser atingido, sinto-me ainda menor do que eu me sentia antes. Paradoxalmente, unir-se a quem já é mais adulto do que nós, unir-se a uma experiência maior do que a nossa, faz com que nos sintamos menores, mais mesquinhos, mais tímidos, mais temerosos, mais cheios de dúvidas; mas ao mesmo tempo é como dois braços que nos estreitam e que não nos deixam mais. E por mais que a pessoa se deixe cair morta, estes dois braços não a abandonam um milímetro, e quando ela se reanima encontra-se ao menos um quilômetro mais à frente do que antes. Na companhia, aquilo a que se chega não é pensável antes. Quando nós dizemos que o amor verdadeiro do homem à mulher está muito mais no momento em que o homem identifica a posse da mulher com algo que nunca pensou antes, ou seja, que existe uma posse maior do que a posse puramente animalesca, instintiva, dizemos que estar em companhia significa não deixar-se deter diante de nenhuma negatividade, de nenhuma negação, mas também de nenhum sacrifício, de nenhuma dificuldade; e a propensão, o desejo do maior, do mais verdadeiro, torna-se mais importante do que qualquer outra coisa.
O “como” é estar na companhia. Você, há alguns anos, estava na nossa companhia, na companhia do Movimento, estava nesta companhia, coloquemos, com expoente 3, agora você está nesta companhia com expoente 33. Antes, quando eu o conheci no princípio, você era muito menor do que eu o vejo agora, não porque você cresceu ao longo destes sete anos, mas porque “cresceu”. Depois de sete anos, muitas pessoas que conheci há sete anos estão, ao contrário, menores do que antes: não seguiram a ninguém, não desfrutaram da companhia de ninguém, não se identificaram com nada, por isso se afundaram em redemoinhos ou em nuvens de poeira de palavras: aspectos ressecados de abordagens mentais das quais se perde o sentido original e pelas quais, portanto, a pessoa é sufocada; e a pessoa não se liberta mais deste sufocamento.
Colocação. O trabalho deste ano teve como fruto tão bonito quanto inesperado, para mim e para alguns amigos meus, a unidade, no sentido de que a pessoa não consegue mais dizer eu sem implicar os outros. Eu gostaria de saber: como esta coisa, que no fundo é milagrosa, porque não é uma coisa nossa, pode se tornar mais útil para a minha vida e não decair para a conivência?
Quanto mais você busca as razões da resposta que a companhia dá às suas questões. É uma frase de São Pedro aos primeiros cristãos: “Buscai dar as razões do desejo que há em vós”. Dar as razões, a qualquer um, do desejo que está em vocês! Da questão, do desejo, ou do convite ou do exemplo que a comunidade lhes dá. Compreendam as razões. Ao contrário, normalmente, o que acontece? Nasce uma esperança vaga, que logo se atenua por causa da nossa preguiça. Depois, este entorpecimento se torna tão pesado que a comunidade se transforma em uma fardo, um peso a mais, um artifício a mais. A comunidade não é algo a mais na nossa vida, mas algo que se identifica cada vez mais com a nossa vida e a torna cada vez mais leve, cada vez mais pensativa, cada vez mais clara no entendimento das coisas, amante em seu conteúdo, como capacidade afetiva. Quanto mais se fica na companhia, mais ela nos torna capazes de entender e capazes de amar.
Colocação. Como se cai no risco de estarmos juntos nos justificando?
Não nos perguntando as razões. Tchau!
Colocação. Além de lhe perguntar que significa perceber a realidade como o senhor a percebe, gostaríamos também de lhe perguntar como o senhor está vendo a vida do CLU, ou seja, quais são as questões que sente mais urgentes para nós.
Eu, na resposta, aponto o meu “limite”: o meu limite é uma extrema, agradável confiança na razão concebida e utilizada o mais coerentemente possível, a custo de ter de fazer escaladas ou de continuar o caminho de joelhos, mas seja como for cada vez mais intensamente obedientes à resposta que a razão dá. O que sinto faltar mais hoje é o que considero mais necessário, a primeira coisa necessária para não sermos escravos da mentalidade, para não nos tornarmos homologados à mentalidade de todos: entender as razões (o que eu disse antes). Mas entender as razões tem um grande “defeito”: que para entender as razões é preciso colocar a pergunta. O que é mais grave em nós é não colocar a pergunta, não procurar onde está a pergunta, não procurar definir bem a pergunta, redefinir bem a pergunta. Definitivamente: não é que eu esteja acusando no CLU uma tendência a não colocar perguntas; o que acuso é que é preciso empenhar-se em responder, em encaminhar as respostas segundo a originalidade evidente da pergunta. “Para que eu existo? Como faço para existir?”. O problema é responder à originalidade desta pergunta! “Que quer dizer ser amado?”. O problema é responder à originalidade desta pergunta, à originalidade evidente desta pergunta! O que nos impede de sermos assim? Seguir a mentalidade de todos: a mentalidade de todos não tem outro escopo a não ser afirmar o Estado, e tão somente isto. O Estado, ou seja, aqueles que detém o poder, e tão somente isto. Nem pai e mãe têm como escopo, facilmente, o que pertence a eles por natureza (sendo pai e mãe): o amor paterno e materno. Normalmente, pela fraqueza do indivíduo, pela fraqueza dada pela conivência com a estrutura social, até mesmo o pai e a mãe só querem o poder sobre o filho, ou seja, por exemplo, que o filho cresça de acordo com a imagem que eles fizeram. Mas o pai e a mãe, a paternidade e a maternidade são o ponto em que o erro pode encontrar mais facilmente, mais imediatamente, um arrependimento. Se você diz a eles: “E o destino de seu filho?”, aí é que é mais fácil encontrar alguém que lhe diga: “Sim, você tem razão, eu nunca havia pensado nisto”. Pois, quando um pai se encontra diante de um filho que se casa, um filho que vai para o convento, um filho que se torna padre, um filho que segue uma profissão “tal”, um filho que se arrisca, por ofício, em uma situação grave do ponto de vista físico, então se revigora nele aquilo que por natureza deveria ter existido desde o princípio: um amor, que é quando se quer o bem do ser que se diz amar.
Colocação. Gostaria de perguntar, visto que o senhor está insistindo muito conosco, o que é a amizade, ou seja, quando somos amigos? E, além disso, queria perguntar sobre a paciência, pois com muita freqüência, quando ouvimos as coisas que o senhor nos diz, temos uma impaciência de vivê-las logo, de mudar logo; então, gostaria de entender melhor o que é a paciência e como fazer, para onde olhar, para que a paciência seja plena, e não seja uma espera vazia, mas um trabalho.
Eu já o disse antes. Somos amigos quando estamos juntos por um escopo comum. Por isso, o que é a amizade? A sua dignidade depende do escopo que vocês têm. Humanamente falando, não há nenhum escopo maior do que o de dar a própria contribuição de protagonismo exemplar a toda a história: carregar na história, tornar história, a minha personalidade, ou seja, levar à história, à companhia de todos, a contribuição da minha personalidade. Esta fórmula a que me referi agora não é entendida, não pode ser compreendida logo. Logo, diante da verdade, diante de uma coisa verdadeira, mesmo que não se compreenda nada, é impossível, é difícil evitar uma impressão primordial, como a sensação que se tem certas vezes na aurora da manhã, quando o sol ainda não surgiu, mas é como se já tivesse, mal despontando, surgido; porque há uma luz tal em um certo ponto do globo, que você fita o olhar ali, esperando dali; e é dali que vem. Por isso, se vocês persistem em uma companhia com pessoas com as quais se uniram para aprender o caminho da vida e do seu destino, se é por isto que vocês se uniram, não o perdem mais. Haverá talvez regiões imensas sufocadas pelos miasmas, pervertidas por inclinações injustas, na vida amarga de vocês, essa vida desnorteada de sentimento, capaz de perder o tempo. “Perditum non redit tempus”: esta, que é a primeira fórmula em latim do meu primeiro ano do ginásio, permaneceu em mim como uma grande fixação. “Perditum non redit tempus”, o tempo perdido não volta mais. É falsa, em última instância, mas é a companhia que faz você entender que é falsa a objeção que é feita ao seu passo de hoje pelo comportamento que você teve antes. Antes você teve um comportamento tão bizarro que agora está desesperado de si mesmo. Nunca! Na companhia isto é sempre, sempre, vencido. A companhia o ajuda - e sem ela não há ninguém que o possa ajudar -, a companhia o ajuda a superar até o grande katekon, a grande obiecto, que é a objeção da sua abjeção: o seu erro nunca se torna uma razão contra, nunca.
E, depois, o tempo. O tempo é necessário, entra como fator necessário do conhecer. Somente para Lúcifer, somente no conceito de anjo como puro espírito, segundo a tradição hebraico-cristã, é que o tempo não entra. Para nós, o tempo entra na definição do nosso agir humano, do nosso agir razoável, do nosso pensar, portanto da nossa afeição, do nosso amar. A pessoa, aos trinta e oito anos, ama de maneira diversa de aos dezoito, mas não banalmente, não é uma frase banal. Pois o tempo, somente o tempo, muda. A companhia é função também da salvação que o tempo como tal dá. Jesus disse a frase mais bela que já tenha sido dita sobre isto: “Na vossa paciência possuireis a vida, a vossa vida”. Poderíamos traduzir: possuireis o ser, o vosso eu coincidirá com o ser, o vosso eu coincidirá com o olhar infinito e com o amor infinito, o vosso eu coincidirá com Deus: Filii Dei estis, filhos de Deus sois. A objeção: “Mas isto é tudo fantasia”, é tão fácil quanto impossível de se sustentar. Realmente, o homem é feito para uma coisa sem fim. E de fato as exigências com as quais se coloca diante de toda a realidade, estas exigências, por natureza são exigências infinitas. Infinito não é igual a “finito que se alarga”. Isto pode acontecer por milhares e milhares de séculos, mas é sempre finito. Por isso, o finito é mensurável, essencialmente mensurável. O Infinito é algo que é infinito desde o primeiro instante. É a definição de Santo Tomás da eternidade: o infinito é algo que é infinito como tal, que é definido pela sua infinitude. Ele nos excede por todos os lados, porque não é nós. Que é que mede, então, a nossa paciência, que nos faz possuir este Outro supremo? O que mede a nossa paciência é a humilde afirmação da Sua existência a todo tempo que passa, aos dez anos, aos vinte anos, aos trinta anos, aos quarenta anos. Quando a pessoa, aos setenta-oitenta anos, morre, é simplesmente - com mais simplicidade - mais capaz de afirmar esta totalidade como o seu Senhor, diante do qual pode estar como o Filho Pródigo entre os braços do Pai desenhado por Rembrandt.
Seja como for, digo agora uma coisa que queria dizer. Vejam, por favor, que a resposta em que me excedi, no início, a minha insistência inicial é o ponto capital do ponto de vista de uma autoconsciência, do ponto de vista de um homem que não é só um “puxador de carroça”, mas que teve um certo “saldo positivo” de perguntas e de provocações na vida, ou seja, que foi destinado a uma maior riqueza explosiva e expansiva na vida. O primeiro problema, do ponto de vista cultural, é capital: a realidade. Por quê? Porque se vocês vão a Bolonha ou a Turim, certos intelectuais lhes põem em questão a palavra realidade. Sartre põe em questão a palavra realidade; Kafka põe em questão a palavra realidade - não, Kafka não, porque é demasiado realista. O horror do homem moderno, culturalmente falando, é completar as teorias niilistas que desembarcaram no mundo, como o exército americano na França, com as páginas de Nietzsche, com o niilismo de Nietzsche. Ao contrário, a realidade é realidade. Na minha primeira aula no Colégio Berchet, entrei dizendo: suponham que eu, professor, fique doente e venha um outro professor suplente: “A que ponto vocês chegaram?”, pergunta. Resposta: “Ao problema: o que é a realidade”. “O que é a realidade? Segundo a criança, é uma coisa assim, segundo o adulto é uma coisa assado; enfim, são pontos de vista diferentes, cada um tem o seu ponto de vista”. Trata-se de um professor relativista, para o qual a realidade é o que aparece a cada um, como aparece a cada um. Depois este professor também adoece, porque há uma epidemia, e então vem um outro suplente. “A que ponto vocês chegaram?”. “A: que é a realidade”. “O que é a realidade? Este é um copo, está claro? Demonstrem-me que é um copo!”. Este é um professor que pertence a uma outra região filosófica, a um outro temperamento filosófico, para o qual a inteligência é ceticismo, é desenvolver, no contato com a realidade, ceticismo. Não se pode saber nada de nada. Aristóteles responderia, e eu respondo, neste segundo caso: é coisa de loucos perguntar-se as razões daquilo que a evidência mostra como fato. Diante do fato, a demonstração do fato é o próprio fato. É preciso adquirir a segurança a nível destas coisas. A realidade, então, é percebida: é um copo, é um grande mecanismo para contribuir a criar aqueles “negócios” que vão para o céu, os rojões, etc. A realidade é aquilo que se demonstra à evidência, é o que mostra a sua existência à evidência, o que é existente, a existência daquilo que se mostra como tal à evidência.
Esclarecer todas estas coisas, além disso, coloca-nos em um caminho bonito, nos dá vontade de registrar de forma cada vez melhor as palavras, de experimentar o sabor da definição mais clara, mais evidente, mais insistente. Eu saí da minha escola, da primeira aula no primeiro ano do segundo grau clássico, com uma grande alegria. Fui embora naquela manhã do Berchet, tomei a via Lamarmora quase cantarolando, porque entendia que tinha entrado na escola - ou seja, no lugar em que a sociedade incha as suas palavras e para onde faz confluir todos os seus esforços - para defender a razão. Sem razão não há nem mesmo fé, mas simplesmente uma sentimentalidade. Mas usar a razão significa ser capazes do ofício mais sofisticado que existe, o mais simples e o mais sofisticado. O “mais sofisticado”, porque dá indícios do ponto por onde se entra em uma galeria em que é preciso estar juntos, não perder o passo, manter o fôlego. Viver a razão: isto não leva, mas dispõe, abre, escancara, ao desconhecido supremo, ao ponto imprevisto, como dizia Montale, àquele imprevisto do qual todos dizem que é melhor não falar.
Colocação. Fomos ajudados a fazer um balanço das atividades de um ano. Este diálogo deve ser retomado no trabalho das férias, a começar pelas anotações, não pelas cópias mimeografadas...
A começar pelas anotações que estão nas cópias mimeografadas, mas introduzidas na lembrança desta hora, e sobretudo comparadas com a exposição que se faz do mesmo tema no livro da Escola de Comunidade, pois o melhor, “er mejo”, é o livro.