Alex Sigov na Praça Maidan.

Carta a uma amiga russa

Alex Sigov, estudante ucraniano, escreve à professora moscovita Tatiana Kasatkina no início de março. Fala do verdadeiro espírito da Praça Maidan, os preconceitos e a desinformação. “Ainda que estourasse a guerra, permanecerei sempre o seu amigo de Kiev”

Cara Tatiana,
nestes dias me parecia não haver particular necessidade de explicar de que modo eu vejo a situação. Come a senhora sabe, eu não sou um político, não sou um militar e nem um jornalista. Mas sou um cidadão de Kiev, que ama muitíssimo a sua cidade e o seu país. Amo-os a tal ponto que me sinto a vontade, seguro e sereno em qualquer outra cidade do mundo. A senhora me propôs compartilhar consigo os meus pensamentos; faço-o com alegria. É porque certas cartas é mais desejável escrevê-las para um Amigo do que para a onívora internet.

Eu estou cansado. Estou cansado de pensar continuamente na política. Cansado de sentir-me refém deste rio de informações irrefreável que é preciso sempre peneirar para poder encontrar nelas uma migalha de verdade. Mas eu estou firmemente convencido de uma coisa: se eu tivesse que ceder logo agora, sentir-me-ia cansado pelo resto da vida. E isto não cabe absolutamente nos meus planos! Portanto a única saída é combater o cansaço, fazer alguma coisa. Surpreende-me quantas centenas de outras pessoas ao meu redor fazem o mesmo: é uma reação em cadeia. Mas não é disto que agora estamos falando. Estamos falando da Ucrânia e da Rússia. E, Deus queira, da verdade.

O que está acontecendo aqui entre nós?

1. A anulação da lei das línguas. O Parlamento, para obter o consentimento do Maidan tomou uma decisão puramente populista: anular a lei das línguas, visto que o Maidan é, na sua maioria, composto por falantes ucranianos. Qual foi a reação do Maidan? A maioria pensou que todos tivessem enlouquecido: que tem a ver agora esta lei, quando o nosso pedido era o de encaminhar um processo para punir a morte de dezenas de pessoas e, por acréscimo, que tem a ver uma lei que faz insurgir a Ucrânia oriental? De qualquer forma, a lei das línguas não foi anulada, porque Turchinov, fazendo as vezes de presidente, se recusou a assinar o decreto.

2. O Setor de direita (isto é, o mal absoluto). O líder do Setor de direita, Dmitrij Jarosh, encontrou nestes dias o cônsul de Israel para lhe assegurar que o antissemitismo é uma coisa inaceitável para eles.
Eu não digo que o Setor de direita não é de direita, digo somente que é absolutamente manejável.

3. Baderovcy\fascistas\nazistas\extremistas. Vamos admitir mesmo que existam e que já tenham chegado a Kiev, onde um em cada dois (se não mais) tem um sobrenome russo, hebreu, polonês, alemão ou outro ainda. Como é que conseguiram? Será que chegaram em silêncio, caladinhos, e convenceram todos os quatro milhões de habitantes de Kiev? Ou talvez os russos ainda acreditem que Kiev não tenha apoiado o Maidan; e que os jornalistas ocidentais foram todos comprados para não dizer ao mundo a verdade? Sei por experiência, com efeito, que os franceses e os alemães são sempre mais rápidos que os russos a reagir à retórica radical da direita. Entretanto agora se calam.

4. A propaganda russa. É difícil explicar como a gente se sente quando diariamente todos nós (e eu em particular) somos submergidos por toneladas de indisfarçáveis mentiras e provocações por parte do Kremlin. Alguns exemplos: A) a televisão russa mostra um enxame de carros em fuga no confim Rússia-Ucrânia (e na realidade se trata do confim com a Polônia); B) um habitante da Criméia fala de contínuas ameaças (e na realidade descobre-se que pagaram um ator profissional para a entrevista); C) as mulheres que choram em Sebastópolis dizendo ter chegado de uma Odessa “flagelada” (e na realidade aquelas mesmas mulheres estavam em Kharkov o dia antes); D) O herói de Kharkov que içou a bandeira russa (e na realidade é um provocador chegado diretamente de Moscou). E outras coisas ainda.

5. A remoção de Lenin. Eu não amo Lenin e estou feliz por ele não estar mais em Kiev, na praça Bessarabskaja. Mas entendo que tirar agora os monumentos de Lenin e até mesmo destruí-los, quer dizer neste momento assustar mortalmente muitas pessoas. Afinal, toda cidade tem o direito de decidir a quem e onde erguer os monumentos nas próprias ruas. Mas será que procede mesmo logicamente o silogismo: quebramos o Lenin = agora irão nos matar todos? Mas que é este pânico?! Quem tirou os monumentos de Lenin não foram uns misteriosos fascistas, mas gente que odeia o comunismo e gente assim existe em todas as regiões da Ucrânia.

6. Eu não nego que existam pessoas de direita na Ucrânia. Muito menos nego que em Kharkov, Sebastópolis, Doneck e em outras cidades milhares de pessoas tenham participado aos meetings pró-Rússia. Esta é a nossa realidade ucraniana. A nós cabe encontrar caminhos para a reconciliação, para o respeito e a compreensão recíprocos. Cabe a nós com isto viver.

E não entendo quem quer fazer a guerra contra nós. A senhora certamente não, assim como não o querem todos os outros meus amigos russos. Não o querem todas aquelas pessoas que na Rússia foram às ruas corajosamente para protestar. Além disso, dificilmente irão combater aqueles que os rotularam com covardia. Aqueles que por dias inteiros incitam à guerra pela internet, partirão por últimos. E eu, se for necessário, irei defender a Ucrânia. E já me alistei voluntário. Eu que não quero. Eu que serei sempre o seu amigo de Kiev.

Alexis Sigov, Kiev