Perth. O presente da ternura
John viveu o confinamento na Austrália, obrigado a ficar em casa com filhos e netos. Uma situação aparentemente ideal, mas nada fácil: «Fui obrigado a dar alguns passos, inclusive tendo os pés lavados por minha filha na Quinta-feira Santa»Olho para a experiência destes meses – na Austrália nós também tivemos de viver o confinamento – e penso que estive entre os privilegiados. Tenho um trabalho fixo na universidade e o período de confinamento coincidiu com um semestre sabático. Fiquei em casa com minha mulher, minhas filhas Emilia (19 anos) e Elena (34 anos, com síndrome de Down). Os outros filhos, quando precisavam, deixavam os netos aqui para ajudarmos. Por si só, era a situação ideal, em que depois de 40 anos de casamento tínhamos a possibilidade de passar o tempo todo com as pessoas que amamos. Um sonho. Mas não foi nada fácil e fui obrigado a dar alguns passos.
A primeira dificuldade foi viver, no mesmo espaço físico, duas dimensões que no meu dia a dia normal ficavam separadas. Os justos limites entre profissão e família foram rompidos e era difícil para mim, mas também para meus netos, viver uma sem atrapalhar a outra. Assim recorri ao expediente dos sapatos: «Quando o vovô estiver de sapatos, significa que está trabalhando e não pode ser incomodado. Quando estiver de pantufas, significa que está à disposição». Foi uma das minhas tentativas, meio cômica, de me ajudar a estabelecer uma ordem, pois eu via o risco de que, além de me perder nas coisas, eu me perdesse a mim mesmo.
Mas é claro que o maior desafio foi na relação com minha mulher. A experiência destes meses nos mostrou que não somos suficientes um para o outro. De onde tiramos isso? Vivíamos no que poderia ser chamado um maravilhoso oásis conjugal, mas às vezes nos irritávamos. Dou um exemplo. Em janeiro fomos em peregrinação à Terra Santa, um gesto para celebrar nossos quarenta anos de casamento. Experiência extraordinária e inesquecível. Algumas semanas depois, alguns amigos nos pediram que contássemos sobre a viagem. Começamos a preparar o momento em que íamos explicar como tinha sido e mostrar as fotos da viagem. Aconteceu que nos pusemos a brigar. E eu me perguntei: «Com tudo o que vivemos e vimos juntos, como é que agora estamos brigando justamente sobre a forma de contar aquela experiência maravilhosa?»
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Olhando para esses meus limites, nasceu em mim uma grande ternura. Uma ternura por mim mesmo, pela minha humanidade, e por minha mulher e minha família. Somos o que somos, incapazes de nos dar sozinhos a felicidade. Eu vivi essa ternura como uma forma mais clara de força. Uma força que deve ser conquistada. Uma vez ouvi do Papa Francisco dizer que Deus mostra Sua onipotência por meio de Sua misericórdia, que é a forma de Sua ternura.
Aqui na Austrália também foram suspensas as celebrações religiosas com a presença do povo. Normalmente, a Missa de Páscoa é a ocasião para convidar as nossas filhas, que pararam de frequentar a Igreja. É um gesto que elas aceiram, como sinal de unidade conosco. Este ano, porém, sabíamos que uma proposta do gênero não poderia valer para uma celebração acompanhada por streaming. Assim decidimos propor às nossas filhas viverem o Tríduo Pascal não por videoconferência na internet, mas na nossa casa, com a oração comum, a leitura dos textos e a repetição dos gestos da liturgia. Era um jeito para estar em comunhão com a Igreja universal, mas também com a nossa família.
Acendemos o fogo da Vigília Pascal, com o qual alimentamos o nosso pequeno círio pascal. E repetimos o gesto do lava-pés na Quinta-Feira Santa. Assim deixamos que nossa filha Elena lavasse nossos pés. Ela já conhecia esse gesto, porque alguns anos atrás o nosso pároco havia feito a mesma coisa com ela. E sabia que valor tinha para nós. Eu tive de descer de todos os meus pedestais para aceitar aquele gesto. Como Pedro, que, relutante a princípio, aceitou ser servido por Cristo. Dificilmente vou esquecer o sorriso no rosto de minha filha enquanto me lavava os pés.
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Hoje as coisas estão voltando lentamente à normalidade. Seria banal dizer que agora sou mais capaz de apreciar as coisas da vida. Mas vejo que a capacidade de silêncio e de ternura pela minha humanidade não é algo passageiro. É um dom, porque eu não teria sido capaz de produzir em mim essa mudança. E agora que voltei a lecionar na faculdade, que tenho uma relação direta com meus colegas (mesmo com os mais difíceis), vejo que essa ternura nascida em relação a mim mesmo começa a ser um olhar novo também por quem está ao meu redor.
John, Perth (Austrália)