Questões de ambiguidade
Da campanha eleitoral americana aos debates na ONU, os «novos direitos» tornaram-se os pontos de divisão da política. E, aqui, joga-se o futuro. Dom Silvano Tomasi, observador da Santa Sé nas Nações Unidas, explica-nos o motivo (de Passos, abril 2012)«Há quem defenda que os direitos dos gays e os direitos humanos são separados e diferentes, mas na realidade são a mesma coisa.» Palavras de Hillary Clinton. A promoção dos direitos dos gays, tendo como horizonte as eleições presidenciais de novembro, tornou-se uma prioridade na agenda política de Barack Obama. Entre outras coisas, a Casa Branca vai condicionar as ajudas ao Terceiro Mundo ao respeito pelos direitos dos homossexuais. Começam a aparecer os lobbys que interessam. Como no caso de Lloyd Blankfein, número um do Goldman Sachs, com um casamento feliz e três filhos, que foi o rosto de uma campanha a favor dos casamentos gay.
Os chamados “temas éticos” tornaram-se, de há alguns anos para cá, o terreno de uma batalha política aberta. Aborto, eutanásia, casamentos e adoções para os homossexuais. De Washington a Paris, de Madri a Londres, de Roma a Berlim. Abandonados os confrontos ideológicos no campo da economia, hoje a batalha trava-se no campo da vida e da família.
A temperatura do debate está subindo. E ultrapassa as fronteiras dos países. E na sede da ONU, os direitos dos homossexuais estão precisamente na ordem do dia. Em janeiro, o secretário-geral Ban Ki-moon falou do assunto em um discurso aos países africanos. E o conselho dos direitos humanos, na sessão de março, também agendou o tema, retomando a resolução intitulada “direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero”. Um documento que realça a preocupação com os “numerosos atos de violência e de discriminação” contra as pessoas homossexuais. No ano passado, quando foi votada, a resolução foi aprovada por maioria, e o Conselho dividiu-se em dois: foram a favor os países europeus e americanos, e contra os árabes e africanos. Nessa ocasião, o observador permanente da Santa Sé junto da ONU, Dom Silvano Maria Tomasi, sublinhou a necessidade de respeitar o direito de todos, mas quer alertar-nos para o uso de termos jurídicos ambíguos, como “orientação sexual” e “identidade de gênero”. Porque as palavras são importantes, sobretudo quando se fala de direito internacional.
Dom Tomasi, quais são as dúvidas da Santa Sé em relação ao documento votado no conselho dos direitos humanos?
O problema é que não havia a necessidade de novos documentos. Para conseguir o que se pede nesta resolução, é suficiente que os Estados respeitem a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, que os Governos se comprometam com o que subscreveram.
O senhor afirmou que o termo “orientação sexual” cria confusão no âmbito jurídico. Por quê?
Esta expressão nunca foi claramente definida nos instrumentos jurídicos das Nações Unidas. Uma disposição legal torna-se difícil de aplicar sem uma definição clara dos termos a que se refere.
Onde é que se encontra a ambiguidade?
No uso comum de “orientação” entendem-se os sentimentos, as atrações que as pessoas sentem. Mas o Direito não se ocupa de sentimentos, mas de comportamentos. Se em um texto jurídico usarmos estes termos, corremos o risco de confundir os comportamentos, sobre os quais é justo poder fazer distinções, com as inclinações, que não devem servir de base para uma discriminação. O risco é que confundindo os planos, se justifique qualquer tipo de ação.
O mesmo é válido para a expressão “identidade de gênero”?
A sexualidade humana, como qualquer atividade voluntária, coloca-se numa dimensão moral. É uma atividade que põe a vontade a serviço de uma finalidade. Não é uma “identidade”. Em outras palavras: a sexualidade faz parte do fazer, não do ser. As pessoas, por isso, podem controlar livremente os seus próprios comportamentos. Certamente que a sexualidade tem profundas raízes na personalidade. Mas negar a dimensão moral da sexualidade leva à negação da liberdade das pessoas neste campo. E isto, em última instância, mina a dignidade das pessoas entendidas como seres livres.
Os que propõem esta terminologia dizem: nem sempre a identidade corresponde à natureza física…
O meu corpo é aquilo que é. Não é por pensar que sou diferente que posso mudar este dado. Há um realismo que é próprio da tradição cristã: uma mesa é uma mesa, um homem é um homem, uma mulher é uma mulher. Se isso estiver claro, depois podemos discutir e perceber o resto para dar uma resposta humana e compreensiva.
Mas que consequências há, do ponto de vista jurídico, confundir “orientação” com “comportamento”?
Há o risco de que quem se opuser à equiparação do matrimônio tradicional com a convivência entre parceiros do mesmo sexo possa ser acusado de discriminar os homossexuais, ou violar um direito do homem. Além disso, também é ameaçada a soberania dos Estados.
Em que sentido?
É necessário fazer tudo para que os Estados respeitem a dignidade da pessoa humana, e por isso exigir que não haja violência e discriminações. Mas é preciso equilibrar esta exigência com a liberdade dos povos. Ou seja, é preciso respeitar o princípio da subsidariedade. Os Estados devem honrar as responsabilidades que assumiram nos tratados, mas ao mesmo tempo não podem ser obrigados, por decisões globais internacionais, a irem contra o que acreditam ser o bem da pessoa e o bem da família.
Hillary Clinton afirmou que os direitos dos gays e os direitos humanos são a mesma coisa. Concorda com esta afirmação?
É um exemplo clássico de formulação ambígua que se presta a várias leituras. Se significar que a pessoa humana tem direitos fundamentais que devem ser respeitados independentemente dos comportamentos das pessoas, então estou de acordo: eu não posso atacar uma pessoa porque não concordo com o seu comportamento sexual. Mas temos que levar em conta que já existem instrumentos no direito internacional aos quais recorrer, porque se referem a todos indiscriminadamente. Porém, isto não quer dizer que podemos criar novos direitos baseados em emoções o sentimentos particulares que protegem grupos minoritários.
O que está em jogo?
Para a Igreja, o casamento entre homem e mulher deve ser reconhecido como o contexto natural, melhor, quer para a educação dos filhos, quer para o bem da sociedade. Há uma grande diferença entre o casamento e a união de duas pessoas do mesmo sexo, precisamente do ponto de vista da contribuição que o primeiro dá à sociedade. São duas realidades qualitativamente diferentes.
Por que razão os debates esquentaram nos últimos anos?
Por um lado, porque a violência e a discriminação dos homossexuais existem, e são inaceitáveis. Por outro lado, há quem queira promover uma cultura diferente, que se baseia em pressupostos antropológicos diferentes daqueles que Igreja propõe. Hoje em dia, pensa-se que o indivíduo se realiza quando satisfez as suas exigências físicas, emotivas ou intelectuais. Ou seja, existe uma concepção do homem dobrado sobre si mesmo. Ao passo que o conceito cristão de pessoa é o contrário. Eu alcanço a minha satisfação quando estou em relação. A pessoa está em relação com os outros e com o outro. Esta abertura, depois, consegue ser abertura para a transcendência.
Portanto, não está só em jogo a defesa da família e do casamento…
Estamos diante de duas maneiras de olhar para o futuro. Se a cultura pública internacional se mover com base em um individualismo fechado sobre si mesmo, levará a consequências sociais que, com razão, devem nos preocupar. Nos últimos anos, cresceu o ativismo dos que querem fazer passar como normal aquilo que não o é. O critério ético é deduzido não da natureza, mas das convenções sociais partilhadas pela maioria. Esta indiferença ética pode levar a consequências desastrosas. A questão da orientação sexual transformou-se num símbolo, mas não é, em si mesma, a questão central. O que está em jogo é uma forma de conceber a vida, de pensar a civilização e o bem da convivência social.
Na agenda política de muitos países, os chamados “termos éticos” ocuparam o lugar das discussões sobre a economia. Por que, em sua opinião?
Vejo a origem disso na filosofia do Woodstock, nascida na década de 1960. Nessa altura, os protestos já não eram em função da justiça social, mas sobre a satisfação emotiva do indivíduo. O centro de gravidade deslocou-se de uma preocupação comunitária para uma estritamente pessoal. Começou a afirmar-se uma liberdade total, que tornava o indivíduo cada vez mais senhor de si mesmo. Com o fim da guerra-fria, hoje vemos que as ideias do século XX não conseguem expressar uma proposta social real e nos encontramos diante de um paradoxo. O pensamento de Woodstck, nascido de uma recusa da dimensão social da pessoa, hoje dá origem a pressões a nível social.
Qual é a missão da Igreja neste debate?
A Igreja deve continuar a anunciar o Evangelho. Nós devemos reafirmar, de forma livre e desinteressada, qual é a natureza humana. Devemos afirmar que o homem não se realiza apenas na satisfação dos seus desejos biológicos e emotivos. É preciso demonstrar isso com a nossa vida. Encontramo-nos em um momento no qual o testemunho cristão se encontra quase no começo. No ponto de partida.