A moça que esculpe o templo
Ela viu a Sagrada Família num livro. E decidiu “estar por perto”. Hoje, Shiho Othake, jovem escultora japonesa, trabalha com Etsuro Sotoo, “discípulo” de Gaudí. E encontrou o caminho que sempre procurou (de Passos, junho 2013)“Aos poucos”. Este é o seu lamento, mas é também a primeira coisa da qual acha graça, porque o traz escrito no nome: Shiho. Dois ideogramas que, em japonês, querem dizer caminhar com boa vontade. E ela, de fato, tem de ir por tentativas, uma prova depois da outra. Modela a massa com os pés, com as mãos, faz, olha, refaz com cera e a seguir com gesso. No fim vai passar ao bronze. Trata-se do projeto das três portas da Fachada da Natividade da Sagrada Família. Serão enormes campos com hera e flores de abóbora, onde se espalham pequenos animais, como a minhoca que tem agora na palma da mão que, por si só, é o fruto de quase um dia de trabalho. É preciso ir devagar, ainda que quisesse correr, sobretudo agora que diz que encontrou “o caminho”.
Primeiro o amor. Na Vigília Pascal recebeu o Batismo. No fim de uma missa solene, recolhida, celebrada à luz das velas na cripta da Sagrada Família, o padre não se conteve: “Dèu n’hi do!”. Uma expressão catalã que não se pode traduzir e que é mais ou menos como caramba! Não estava errado. A história de Shiho Othake, a jovem escultora que trabalha com Etsuro Sotoo, um dos artistas que colheram a herança de Antoni Gaudí, vale a Sagrada Família inteira.
No pequeno laboratório de dois pisos, tudo está amontoado, há instrumentos de todos os gêneros pendurados, pequenos moldes, frutos e flores de gesso. Num lugar mais alto, atrás de prateleiras e celofanes, entreveem-se paredes de pedra, esboços de abóbadas. Então nos lembramos de que nos encontramos na Sagrada Família, que é catedral e oficina. Quando Shiho entrou no atelier de Sotoo pela primeira vez, pensou que queria ser para ele como o ar. “Necessária, mas transparente”. Não apenas dando espaço, porque o espaço é o que é, o da oficina de um velho artesão, mas “estando aqui, fazendo o que ele precisar”.
Ela é de Tóquio, a primeira vez que viu a Sagrada Família foi num livro de escola. Uma fotografia. Ao vê-la, apaixonou-se. Depois da licenciatura em Belas Artes, começou a ensinar, mas de vez em quando vinha a Barcelona para ver esta igreja pela qual se sentia chamada. “Um dia, disse a mim mesma: a Sagrada Família está ali. Se quero estar próxima dela, tenho que ir viver lá”. Em 2010, aos 28 anos, muda-se. Arranja trabalho como garçonete num restaurante perto do Templo e tenta entrar em contato com Sotoo. Quer aprender com ele. Assim, quando o encontra numa conferência, começa o cerco. Ri: “A certa altura ele rendeu-se, e disse-me que podia vir para cá. Para fazer a limpeza”. Três anos depois, e depois de meses inteiros passados só o vendo trabalhar, agora colabora no seu projeto. Mas nunca houve um momento em que Sotoo lhe tenha dito: está bem, estás contratada. “Aconteceu. Devagar”. Precisamente. “Nunca contrato jovens que me consideram um ídolo, a mim ou à Sagrada Família, porque estão enganados”, conta Sotoo numa pausa do seu trabalho, contínuo e silencioso: “Mas vi que a Shiho não estava aqui por isso. Estava à procura de outra coisa”.
Chegou a essa conclusão porque, para ela, fazer a limpeza não eram um pretexto. “Uma pessoa pode vir aqui para limpar, mas distraidamente, para ver o meu trabalho. Ela limpava. Dava tudo de si”. Continua a fazê-lo, debruçada sobre os insetos, coberta de pó de gesso, concentrada a observar. Até podemos não perceber totalmente aquilo que nos conta, o fato de “falar” com a pedra, de “ser” aquela libélula que está moldando, ou de “entrar” nas poucas palavras que o mestre lhe diz. Mas aquilo que se percebe perfeitamente é que ela quer bem aos insetos, às folhas e à cera. E que aprende a querer bem à realidade juntamente com Sotoo. É a frase pendurada na porta do escritório: “Para fazer bem as coisas, primeiro é preciso amor e só depois a técnica. Gaudí”. Tudo nasce da relação com a experiência do pai da Sagrada Família, sobretudo quando era criança, doente numa casa de campo. Só a natureza era sua amiga. “Penso muitas vezes naquela sua solidão, gostaria de lhe fazer companhia”, diz Sotoo. Na base da Fachada da Natividade estão esculpidas galinhas e outros animais. Ele as olha e sente o calor do sol que as toca, os cheiros, a brisa que passa. “Penso naquilo que procuram, de que precisam: a comida”. E é isso que lhes quer doar. Esculpir é doar. Por isso as portas serão um campo com insetos. “O que vive na terra é feliz, mas sem saber o porquê”. O porquê acontece um pouco acima, é Jesus, entre Maria, José e os bordados de pedra. O campo será de hera, porque é o símbolo da obediência, “a condição total da vida”, diz Sotoo.
Ritmo e silêncio. Ele e Shiho nunca falam do trabalho que fazem a priori. “Sotoo me ensinou que não encontro a resposta na minha cabeça. Tenho que fazer, é do fazer que nasce a ideia. Falamos só a partir das provas, daquilo que se pode ver e tocar. É como se Sotoo me dissesse continuamente: mexa-se, você deve se mover. E eu, mesmo sabendo que ele tem sempre a solução, não lhe peço, porque quero encontrá-la”. Como quando lhe disseram, de um dia para o outro, que tinha de ir para o Paraguai, pintar as paredes de uma clínica de crianças em fase terminal. “Eu não sabia nada, estava assustada. Ele me disse: mesmo que não saiba ou não possa fazer nada, olha para o que está lá”. Chegou à clínica do padre Aldo Trento e nem sequer ali lhe explicaram nada. “Estive sempre com os doentes, com Aldo e os seus amigos. Sempre com eles, olhando para eles. No fim, fui eu que senti a necessidade de fazer alguma coisa por eles. Uma manhã me pus a pintar aquelas paredes”.
Sotoo trabalha no escritório do segundo piso, que dá para a bancada de trabalho de Shiho através de uma pequena janela. De vez em quando se levanta para observá-la. “Eu faço o meu trabalho, mas estou sempre pensando nela, naquilo que está fazendo”. Se entender que ela está tendo dificuldades, com o pretexto de ir ao banheiro, passa ao lado dela. E, o simples fato dele estar ali, a muda. Quando estavam esculpindo juntos os pináculos de três metros para colocar nos topos, ficavam duas, três horas, sem falar. Só trabalhando. Um dia, apareceu uma equipe de televisão para filmá-los e antes de irem embora, um dos operadores aproximou-se de Shiho: “Você não conseguia acompanhar o ritmo dele. Mas ele, de vez em quando, esperava por você. Acompanhava-lhe com o som”. “Eu não tinha percebido”, diz ela, “e, no entanto, havia momentos em que de repente me sentia bem. Era por isso”.
O grão de mostarda e o nome. “A Sagrada Família existe para que ela possa crescer”, diz Sotoo olhando para ela, sentada ao seu lado, sempre com a cabeça levemente inclinada. “Só quero que se sinta contente quando erra. Porque, se não errasse, não saberia quem é, onde está e com quem está”. Detém-se: “Não saberia por que trabalha”. Diz que o importante é que ela tenha uma pergunta, que é necessário viver com uma pergunta que esteja dentro de nós como o sangue. “Se a necessidade não surge em Shiho, a minha resposta de nada valerá. A resposta verdadeira faz sempre nascer uma nova pergunta”. Mas para isso é preciso sofrer. “Procurei outro caminho! Mas não existe. O sofrimento é necessário”. Como a pedra sofre quando é esculpida. “É colaborar com o desígnio de Deus. As razões pelas quais se trabalha são tantas, sobrepostas, e para chegar à verdadeira é precisa uma grande viagem”. Aprendeu com Gaudí que só é possível em conjunto: “O homem não pode trabalhar sozinho, não constrói nada. E eu, o que posso desejar mais da felicidade, se não alguém que me acompanhe?”. Até a preparar o almoço um para o outro. “Juntos também se aprende a dar valor. Ela sabe fazê-lo, porque dá valor até a um grão de mostarda”. Fala com todo o ardor de comunicar ao outro o próprio coração. “Deveria arrancá-lo do peito e lhe dar nas mãos. Mas isso não se pode fazer. Isso vai ser no Céu, onde não haverá palavras. Mas o convite de Deus é este, para nos doarmos assim”. Shiho deixou a sua família por uma igreja que viu numa fotografia. Mas aqui se descobriu mais filha dos seus pais que ainda vivem em Tóquio. “Estar perto da Sagrada Família é estar perto do meu pai”. Sempre o adorou. É um homem feliz, que a educou fazendo-a amar todos os seus desejos. A tal ponto que começou a ter um maior do que os outros: ser como ele, que é católico, ao contrário do resto da família. “Mesmo não sendo batizada, tinha dentro de mim o desejo de Deus. Mas tinha medo de acreditar, e não o dizia, porque na nossa cultura não se fala disso...”. Foi em Barcelona que começou a conhecer melhor o cristianismo, no trabalho, nos rostos dos novos amigos, no catecismo. “Quando estava em Tóquio, perguntava-me sempre: por que existo? Por que trabalho? Eu me perguntava qual era o meu caminho. Com a fé o encontrei, e com o Batismo o comecei”. Sotoo é testemunha disso, todos os dias. Mas há uma coisa em que não a deixa enganar-se a si própria: “O Batismo não tem nada a ver comigo nem com a Sagrada Família nem com Gaudí. É puramente ela. Ela e Deus. Muitos amigos estão com ela, mas ela está diretamente ligada a Deus”. Por isso lhe beijou as mãos e a abraçou na Vigília Pascal. “Devia ajoelhar-me quando a vejo”.
O nome cristão de Shiho é Montserrat. Todos lhe sugeriam nomes de santos, de gente “a caminho”, como ela queria. Mas por fim escolheu a Virgem padroeira da Catalunha, ao olhar, um dia na missa, para a estátua da Morenita que, segundo a tradição, não quer ser afastada do seu monte. “Precisava de alguma coisa que ‘está’. Só assim posso caminhar”.