O infinito contra o tédio
Intelectual não alienada, Olga Sedakova vê com preocupação a evolução da sociedade russa. Nós lhe pedimos que lesse, a partir de Moscou, a reflexão de Julián Carrón sobre a Europa. A seguir, as suas respostas (de Passos, agosto 2014)Qual o aspecto da crise da Europa, vista de Moscou? Com os olhos de Putin, e da maioria dos russos, ela aparece como a crise de um império em decadência: corrupção dos costumes e dos valores. À frente da grande mobilização a favor dos “novos direitos”, o Governo de Moscou se apresenta aos seus cidadãos como o baluarte da tradição da Rússia cristã. Olga Sedakova, que nasceu em Moscou em 1949, uma das vozes mais intensas da poesia russa contemporânea, não está de acordo com a versão oficial. Para ela, não é uma novidade, pois o primeiro livro ela o publicou em samizdat (publicação clandestina, porque proibida pelo Governo) em 1978.
Ela leu a apresentação do padre Julián Carrón do Documento de CL (publicado no site de Passos) relativo às eleições europeias. Lança um olhar sobre a Rússia e a Europa. Duas realidades bem diferentes. No entanto, a leitura feita pelo sacerdote espanhol dos desafios contemporâneos parece dizer algo importante também para quem, como ortodoxa russo, procura não se render à visão predominante na sociedade.
A situação na Rússia é mais grave do que na Europa?
É diferente. A situação europeia me preocupa, mas a nossa é terrível. Quando os ucranianos dizem que querem os valores europeus, pensam naqueles citados pelo padre Carrón: pessoa, trabalho, progresso e liberdade. Desejam-nos porque não os têm e esperam que a Europa não os tenha perdido completamente. Se a Europa os perdesse por completo seria uma verdadeira tragédia. A nossa esperança está ligada ao futuro da Europa, mas hoje está claro que essa ligação não é mais óbvia.
Não se trata de uma utopia dos ucranianos?
Não, eles desejam para si os valores europeus tradicionais e gostam deles talvez mais do que os próprios europeus.
A Rússia oficial se apresenta ao mundo em polêmica com o desvio cultural europeu. O que está acontecendo?
Putin diz ser o defensor dos valores tradicionais. É algo bastante cômico, porque aqui os valores tradicionais foram destruídos há muitos anos. Eu me pergunto como se pode conservar o que já foi destruído.
Que nome têm esses valores tradicionais russos?
Hoje se pensa somente no valor da família. Trata-se, na realidade, de uma polêmica em relação à exigência, no Ocidente, de leis para o casamento entre homossexuais. Mas não se fala nada de trabalho, nem de pessoa, nem de liberdade. A única coisa que se aproxima da família é o patriotismo: cada um deve estar disposto a dar a vida pela pátria. O valor último não é a pessoa, mas a pátria. Essa não me parece uma posição cristã.
Padre Carrón sustenta que para recuperar os fundamentos da sociedade cristã o caminho não é o retorno a um Estado confessional. O que pensa disso?
Agrada-me muito a observação, porque o problema não é a afirmação dos valores enquanto tais, mas o testemunho e a mensagem cristã. Para nós, na Rússia, continua-se a falar de valores... Mas ninguém diz, por exemplo, que não é lícito roubar. “Não roubar” é um valor da tradição? É um dos Dez Mandamentos. Mas aqui todos roubam! Como podemos ser um baluarte dos valores cristãos?
A Duma [Assembleia Nacional da Rússia] votou uma lei para barrar a difusão do aborto.
Sim, esse também é um dos pontos sobre os quais se insiste. Família, homossexual, aborto. Mas não penso que seja esse o sentido da mensagem cristã. Nos tempos de Stalin, o aborto era proibido, e as mulheres morriam porque abortavam clandestinamente, sem médico. Existia a proibição, mas não a razão por que era errado abortar. Assim, não havia problema se o aborto fosse feito clandestinamente. Acho curioso que Stalin tenha se tornado o novo modelo de moralidade. A sociedade tardo-stalinista era, poderíamos dizer, vitoriana. O divórcio, por exemplo, era muito difícil de se conseguir, em alguns casos até mesmo proibido. Mas, mais do que uma defesa da família, era um modo de limitar a liberdade.
No debate sobre os “novos direitos” se contrapõem fascínio e aversão. Por quê?
Causa-me medo essa direção. Fala-se de algo que até pouco tempo atrás era impensável. Padre Carrón explica bem de onde nascem essas exigências e diz que quem exige esses direitos concebe a liberdade como absoluta. Reivindica-se o direito até de escolher o próprio sexo. Mas isso não me parece que tenha a ver com a tradição. Ninguém, antes de nascer, é perguntado se deseja ser homem ou mulher. É algo que tem a ver com a natureza, portanto.
Dom Giussani dizia que, frente aos problemas da sociedade, é preciso aprofundar a natureza do sujeito. O que isso significa para a senhora?
O homem, antes de tomar decisões concretas, precisa conhecer a si próprio, precisa conhecer a própria vocação de homem. Mas como? Não sei, talvez seja necessária uma nova pedagogia... O homem precisa saber quem é ele e o que é o homem em geral.
Como a senhora o descobre?
Fui muito atraída pelo mundo interior, espiritual, desde a infância. Sempre o considerei atraente. Eu falava comigo mesma e sentia em mim vozes diferentes daquelas que sentia em torno de mim, na família ou na escola. É a intuição, que existe também no contexto da cultura materialista, como a de um regime comunista. Talvez se precise ensinar às crianças a estarem atentas. Hoje tudo contribui para a distração, mas na distração ninguém encontra a si mesmo.
Por que não podemos desejar que a lei defenda o que preocupa aos cristãos?
Fazer ou não fazer algo só porque a lei o impede não comporta o uso do coração e da razão. Não há convicção. No dia em que a proibição legislativa desaparecer, nada impedirá que as pessoas se comportem como se a proibição nunca tivesse existido.
Como se pode ajudar, e ajudar os outros, a desenvolver esse nível de liberdade que vem antes das leis?
De novo: a atenção. É uma prece da alma, uma prece espontânea. É essa atenção que falta ao homem moderno. Pode-se até pronunciar as palavras de uma oração, mas falta esse estado de alerta.
“O que o homem busca nos prazeres é um infinito, e ninguém renunciaria à esperança de conseguir essa infinitude”. O que desperta na senhora o desejo desse infinito de que fala Pavese?
Para mim é natural, não posso dizer por que e como. Sem esse desejo de infinito não gostaria de viver. Seria tedioso. Viver por menos do que isso seria a morte, não seria interessante.
Há alguém que a senhora sente próximo dessa dimensão?
Eu me sinto bastante sozinha, mas não a única. Há pessoas que são minhas amigas, mas são poucas. Gosto, por exemplo, na nossa Igreja, do movimento chamado dos kocetkovtsy, fundado pelo padre ortodoxo Georgij Kocetkov. É uma realidade bastante semelhante a Comunhão e Libertação. Sou amiga deles e visitei essas comunidades em diversas cidades russas. São grupos de fraternidade: me agradam muito porque se trata de gente viva.
Em que sentido?
São felizes, amam-se mutuamente, sabem fazer as coisas juntos. Gostam somente das coisas boas, leem bons livros. É uma realidade nova para nossa Igreja, onde jamais existiram movimentos de leigos. Padre Georgij começou com cinco pessoas e hoje são milhares. Mas a Igreja oficial não está disposta, tem muitas dúvidas. Sobretudo porque eles traduziram as liturgias do eslavo eclesiástico para o russo moderno.
Por que sente próximas essas pessoas da dimensão do desejo infinito?
Vejo pessoas que se despertaram. O povo comum, em geral, está como que adormecido em relação à vida. Eles, ao invés, estão conscientes de que a vida deles está ligada à dimensão do mistério infinito.
O que mais a impressionou no texto do padre Carrón?
A insistência no testemunho de Cristo em relação aos valores cristãos. A alegria que nasce do encontro com Cristo, que vem antes de todo o resto. Gosto da ideia de que Cristo mesmo é o centro da vida. É mais importante do que as leis e as normas. Esse é o cristianismo autêntico e é isso que pode tocar o coração do homem. As normas não são capazes de fazê-lo. Às leis podemos obedecê-las, mas elas não nos fazem felizes. Claro, se violamos as normas somos infelizes, isso sim. Mas respeitar todas as regras, inclusive as justas, não é suficiente para nos fazer felizes.
É por isso que nem as “leis cristãs” bastam para tornar cristã a sociedade?
Sim, claro. O ponto é que existam testemunhas a serem observadas. Pessoas que tenham em si essa santidade, essa alegria, essa paz. Essa é a influência do cristianismo. Meu padre espiritual, por exemplo, podia até não me dizer nada: me bastava observá-lo, olhar o seu rosto, os seus movimentos. João Paulo II também era assim. Bastava olhá-lo para se entender que era um santo. O mesmo acontecia com o metropolita Antonij Blum, que conheci pessoalmente.
Mas se tivesse que descrever essa diversidade que via, o que diria?
O metropolita Antonij dizia: somente nos olhos da pessoa humana podemos ver o Reino dos céus. Não é um pensamento; deve-se ver que a pessoa tem em si algo desse Reino. Que nem todos os outros têm essa luz. Essa é a diferença.
A senhora fala de pessoas excepcionais, é possível ver isso em pessoas comuns?
Sim, certamente. Mas a essas pessoas não interessa aparecer assim. Estão concentradas em outras coisas. E é isso que as torna interessantes. Cada pessoa é criada por Deus e por isso tem algo dessa luz; mas viver ou não viver dessa luz depende da nossa livre vontade.