Franco Bonisoli. O perdão às costas
O ex-terrorista das brigadas vermelhas conta o seu caminho: um muro de ideologia rachado por «acentos de humanidade». O abraço do filho de Bachelet, a amizade com Agnese Moro e os bilhetes de um padre «que me quis bem»...Setembro de 1974. Numa rusga dos carabinieri são detidos Renato Curcio e Alberto Franceschini, chefes das Brigadas Vermelhas. Um acontecimento que representa um abanão para a organização terrorista, ao ponto de, alguns dias depois, Mara Cagol, mulher de Curcio, dizer a Franco Bonisoli: «Se quiseres voltar para casa, ainda vais a tempo. Não sabemos o que irá acontecer amanhã». Franco tem dezanove anos, mas as palavras da brigadista não beliscam a escolha que fez há pouco tempo: a clandestinidade. A militância activa no Partido Comunista, primeiro na escola e depois na fábrica, já não lhe chega. É um jovem brilhante; os seus pais, operários, fiéis ao comunismo, estão orgulhosos deste filho, diplomado com altas classificações no curso nocturno, que faz política e se bate pelos ideais do partido. Mas para ele não é suficiente. Quer mais. Quer a revolução contra o sistema, contra o Estado. Para mudar definitivamente. Por isso alista-se nas Brigadas Vermelhas, que conheceu em Reggio Emilia, a sua cidade. Quer dar tudo de si. E para ele, naquele impasse histórico, “tudo” tem um nome: luta armada.
São os anos de chumbo, os anos negros da República. Os atentados e os sequestros de matriz terrorista estão na ordem do dia. Franco faz parte do comité executivo das Brigadas. Nunca recua. Ou tudo ou nada. A 2 de junho de 1977 faz parte do comando que atinge o jornalista Indro Montanelli. Em 1978 participa no massacre da via Fani, onde é sequestrado Aldo Moro; é também da sua metralhadora que partem os golpes que matam os homens da escolta. Seis meses depois do assassínio do presidente da Dc (Democracia cristã, nt.), é detido no covil milanês da via Monte Nevoso. Condenado a quatro prisões perpétuas, em meados dos anos oitenta dissocia-se da luta armada e a sua pena é comutada por uma pena com termo limitado.
Mas durante a detenção nas prisões especiais, através dos encontros imprevistos, algo começa a rachar-se dentro de si. Aqueles ideais pelos quais teria dado a vida e pelos quais tinha tirado a vida a pessoas inocentes perdem consistência. Abre-se um abismo. Parece o fim de tudo. E, pelo contrário, é o início de uma «segunda vida», como ele hoje gosta de dizer.
Com ele, que desde 2001 é um homem livre, repercorremos o caminho que o levou a tornar-se amigo de Agnese Moro, filha do estadista assassinado. E que leva a pronunciar a palavra «perdão», como dom recebido e depois voltado a dar.
Partamos do início desta história. Porquê a decisão da clandestinidade?
Foi acima de tudo uma escolha existencial. Queria dar a minha vida por aquilo em que acreditava, ser coerente até ao fundo com os ideais da luta operária. Uma escolha totalizante, que se tornou numa espiral da qual era impossível sair, porque se paravas para pensar e te surgiam dúvidas, surgia o medo de ti mesmo. Mas as dúvidas e o medo eram sinais de traição. Isto não era possível. E quem cedia era um elemento espúrio num corpo são, não percebíamos que o mecanismo de ideias que tínhamos criado era errado em si mesmo. O erro estava na origem. É o domínio da ideologia. E quanto mais o regime carcerário era duro - os Kampi, como chamávamos às prisões -, mais nos convencíamos de que os nossos ideais eram justos, que devíamos lutar.
Mas a certa altura, alguma coisa acontece.
São os anos dos processos, que para nós eram o momento de encontro, de fazer o ponto da situação e redefinir a linha a seguir quando se voltava para a prisão. Praticamente, eram uma espécie de congresso. Ao mesmo tempo, graças à arrogância que nos caracterizava, “processávamos” os magistrados. Em suma, estávamos sempre em luta. Em março de 1983, o doutor Giuseppe Suraci, director da Vallette, a prisão de Turim para onde tínhamos sido transferidos, diz-nos: «Vamos fazer uma comissão de detidos com três de vocês. Levantem os problemas, depois venham ter comigo e conversamos sobre eles». Esta sua abertura ao diálogo desarmou-nos. E não ficou por aqui. Um dia trouxe-me o Nicolò Amato, o magistrado que no processo Moro tinha pedido 36 penas perpétuas e com quem eu tinha esbarrado mais vezes: ele detinha a ordem, eu subvertia-a. E agora estava ali, com o cargo de director do sistema carcerário italiano. Suraci tinha-o convencido a vir. Falámos durante mais de uma hora à porta da cela. Eu mantive-me nas minhas posições ideológicas “puras”, mas havia alguma coisa que não se encaixava. E depois há a história das mulheres… as nossas companheiras.
Tiveram um papel importante?
Fundamental. As cartas que nós, homens, escrevíamos, estavam cheias de “revoluções”, de “estratégias”, de “luta”, etc. E elas, a um dado momento, começaram a introduzir as palavras “amor”, “doçura”. Ainda em Turim, na parede que separava a ala feminina da masculina, havia buracos através dos quais nos falávamos e por onde as mulheres faziam passar pulseiras, fios. Eram sinais, marcas de ternura, de uma humanidade que desorientava.
Alguma coisa se estava a desfazer?
Sim. Dei-me conta disso quando voltei a entrar, ainda em 1983, em Nuoro. Dum ponto de vista racional não sei dar uma explicação, mas de facto comecei a deixar de acreditar naqueles ideais. A experiência de diálogo e de abertura de Vallette tinha-me feito ver que o nosso discurso era um discurso auto-referencial, a revolução das massas não existia. Foi um momento de profunda crise. Já não me revia na luta armada, mas sobretudo, apesar de naquela época se falar de um projecto de amnistia, não acreditava que fosse possível uma reintegração minha na sociedade. Não era para mim.
Porquê?
Tinha arruinado a minha vida, a vida da minha família, tinha arrastado neste desastre tantos companheiros e, sobretudo, as vítimas. A minha existência estava perdida. Comecei a viver com a morte ao lado, a pensar que a minha história se fechava comigo. À noite, sozinho na cela, pensava e chorava. Não havia solução. Depois, num passeio, encontrei o Franceschini. Começámos a falar.
O que é que ele disse?
Que sentia a morte ao seu lado. Exactamente como eu. Falou-me do encontro com o padre Silvio Mesiti, da prisão de Palmi. Por esses dias, lemos no Corriere della Sera a notícia de um congresso de capelães onde se falava de dignidade humana. Também para os detidos. Falámos disso com o nosso capelão, o padre Salvatore Busso, um homem simples que, durante anos, tinha introduzido pacientemente, nos postigos das nossas celas, bilhetinhos numa tentativa de diálogo. Tratava-nos como pessoas, que tinham errado, mas homens.
Foi precisamente em Nuoro, em dezembro de 1983, que começaste a greve de fome. O que pretendias obter com isso?
Nada. Era uma escolha de vida. Tínhamos rompido a espiral do ódio e da violência. Tínhamo-nos tornado no elo mais fraco que estava desorientado, com o qual não se podia contar. Na carta ao padre Salvatore escrevemos: «Onde sugamos gotas de vida começamos a retomar a nossa vida, comendo o nosso corpo».
E ele?
Estava preocupado connosco, com terroristas. Importava-se com a nossa vida. Impensável. Se eu não estou morto, é graças àquele padre. Estávamos no Natal e o padre Salvatore decidiu que não iria celebrar a missa porque “irmãos” seus estavam a morrer. Todos os jornais falaram disso, começou a passarela dos políticos. Aos poucos, outros companheiros aderiram.
Por que razão o fizeram?
Era preciso que alguém dissesse: «Rapazes, acabou. O rei vai nu». Não como os colaboradores da justiça – eu vejo a coisa assim – por um interesse pessoal, mas arriscando a tua pele sem nenhum objectivo. Foi o início da minha subida ao Purgatório. Abriu-se para mim a possibilidade de uma segunda vida através dos encontros, dos factos que eu, como ateu, defino como providenciais.
Algum em particular?
Com o Giovanni Bachelet (filho de Vittorio, morto pelas Brigadas em 1980, nr). Quando me viu abraçou-me e perguntou-me pela minha filha. Eu estava à espera de arrogância, até de insultos, e em vez disso falava-me daquilo que me era mais querido no mundo. Em momentos como estes, tomas consciência do erro cometido e já não tens justificação: «fi-lo por um ideal». E ao mesmo tempo, sentes o perdão em ti. Não por palavras, mas como algo que te volta a ser dado.
Nesta “subida”, a um dado momento, dá-se uma escolha importante: a dissociação.
Sim. Para mim significava: assumo todas as minhas responsabilidades salvaguardando a minha dignidade e usufruo das possibilidades que o Estado me oferece. Isto significou revisitar de forma crítica o passado e dizer abertamente: «Sou um derrotado, porque o erro está implícito na escolha da violência». A crítica deve ser feita até ao fundo, para não conservares a patente de combatente veterano. Deitas fora a couraça, o papel que tinhas. É assim que começa o diálogo com o outro, apercebendo-te de toda a profundidade, aceitas viver e não sobreviver. Talvez seja precisamente este o perdão a mim próprio: pôr a minha vida, esta segunda vida, ao serviço dos outros. Como as vítimas ou os voluntários que se puseram à disposição reconhecendo-me como pessoa.
O encontro com as vítimas começou na prisão e prosseguiu depois da saída definitiva da prisão em 2001, usufruindo dos benefícios da lei sobre a dissociação e da nova lei de reforma penitenciária.
E continua. O diálogo com estas pessoas, marcadas pela dor, procurei-o enquanto homem livre porque queria dar-me sem nenhum condicionamento. Um longo percurso que para mim culminou na amizade com a Agnese Moro.
O que é que aconteceu?
Participava nos encontros entre as vítimas e os responsáveis da luta armada de que se fala em Il libro dell’incontro (ver Tracce, janeiro de 2106, nr). O Padre Guido Bertagna, um dos responsáveis deste caminho que durou oito anos, insistia para que eu e a Agnese nos encontrássemos. Tenho uma lembrança muito viva da primeira vez. Convidou-me para sua casa e eu levei-lhe uma plantinha. Falámos muito e todas as suas palavras ficaram gravadas na minha cabeça. Ainda nos vemos, e num dos encontros disse-lhe que me podia perguntar qualquer coisa. Respondeu que não tinha perguntas em especial, queria que eu lhe falasse da minha mulher, dos filhos, daquilo que fazia. Ficou impressionada quando lhe contei que, ainda na prisão, pedia licença para ir falar com os professores da minha filha. Era eu que lhe interessava, a minha vida. E o perdão passou através daquele encontro: ela deu-se a mim a ponto de não querer um lugar neutro para o encontro, mas a sua casa. A Agnese gosta de repetir que para manter um diálogo é preciso estarmos desarmados. E assim foi. Para mim, no início, tudo isto passou através dum capelão de Nuoro que me reconheceu como pessoa e que me quis bem sem condições.