Indícios do eterno
Retrato de ERNESTO SABATO, um dos grandes escritores argentinos. A ciência, o comunismo, a morte do filho. A aventura de um homem que sabia que existe uma resposta para aquele que busca (de Passos ago/2017)Físico, ensaísta, escritor, pintor; filho, marido, pai. São muitas as facetas que Ernesto Sabato oferece aos seus pesquisadores; inumeráveis, talvez, os adjetivos para se tentar compreender a sua pessoa, a sua obra, enfim, o seu contributo para o mundo. Mas acima de tudo o que se disse e se poderá dizer, é a sua humanidade - e a busca inexaurível do que constitui a sua pessoa - que fica impressa em todo leitor atento.
Muito jovem adere ao Partido Comunista, convicto de que poderá contribuir para a eliminação da injustiça, para a melhoria da vida de tantos que sofriam a opressão de um mundo cada vez mais materialista, “tecnolátrico” – como ele disse –, desumano. Anos de doutrinamento para enfim chegar à inevitável desilusão: a proposta do comunismo não brilhava mais como antes.
Volta-se para a física e para a matemática, consegue uma bolsa de estudo para trabalhar no Laboratório Curie (França), transfere-se para lá a fim de estudar, mas acaba se defrontando com uma segunda desilusão: testemunha da cisão do átomo de urânio – que depois dará origem à bomba atômica – fica aterrorizado com a capacidade de destruição do homem. Diz Julia Constenla, em sua biografia: “Nem o comunismo nem a ciência conseguirão afastá-lo da incerteza (...). Está sozinho diante do mundo. O único lugar onde pode buscar as respostas às questões que são próprias do homem de todas as épocas é o fundo do próprio coração”.
Ainda que desiludido com as sua anteriores tentativas, Sabato sente que não pode deixar de seguir esse chamado interior que lhe grita para encontrar uma via rumo à resposta para a vida, não só sua, mas da humanidade toda. Sente a responsabilidade de contribuir para preservar “a sacralidade do homem”, como escreve em Antes do Fim. Mas ao mesmo tempo sabe que está sozinho nessa tarefa que irreversivelmente atribui ao escritor: “Os poderosos o chamarão de comunista, por reclamar justiça para os oprimidos e os famintos; os comunistas o chamarão de reacionário, por exigir liberdade e respeito ao ser humano. Nesse tremendo dualismo viverá desenraizado e ofendido (...)”.
«Eu nunca pude acalmar a minha nostalgia, domesticá-la... A nostalgia é para mim uma saudade nunca satisfeita, o lugar aonde nunca pude chegar. Mas é o que queríamos ter sido, o nosso desejo. Tanto é verdade que não se chega a vivê-lo, que se poderia até acreditar que está fora da natureza, não fosse que qualquer ser humano traz em si essa esperança de ser, esse sentimento de que algo nos falta. A nostalgia desse absoluto é como um pano de fundo, invisível, incognoscível, mas com o qual medimos toda a vida»
O que fazer, então? Um impulso vital o incita a continuar a busca, porque precisa chegar a uma resposta. Outro impulso o leva a abandonar a busca: se há tanto sofrimento, quer dizer que o Mal venceu o Bem e não há remédio. Todavia, diante desse último pensamento emerge algo irrefutável: o homem ama, ri, chora, luta pelo que deseja; isto é, a humanidade continua a existir. Sabato oscila “entre o desespero e a esperança, que afinal prevalece, porque do contrário a humanidade teria desaparecido quase desde o início, pois são muitos os motivos para duvidar de tudo”.
Morte e vida. Em sua luta para encontrar o que possa resgatar o homem de si mesmo, recuperando assim a humanidade perdida, Sabato teve que enfrentar uma dor que penetra fundo em seu ser e contribui para orientar aquela busca que havia iniciado na juventude: seu filho Jorge, ao voltar do mar, morre num acidente automobilístico. “Quando ele morreu, tudo ruiu (...) e não consigo conter essa opressão que me sufoca”, diz Sabato. Procurando comunicar essa indizível dor, compara-se àquele que “caminha perdido numa selva obscura e solitária, buscando em vão superar a invencível tristeza”.
Longe de se convencer de que não há nada que possa bater ao ritmo do seu coração, e que – ao contrário – a vida é praticamente uma armadilha, Sabato começa a perceber que agora tem mais necessidade do que antes de alcançar aquela eternidade pela qual no fundo anseia, a única coisa que pode restaurar a sua alma ferida: “Posso dizer que o tempo da minha vida se quebrou e que depois da morte de Jorge não sou mais o mesmo; me transformei num ser extremamente carente, que não cessa de buscar um indício que me mostre aquela eternidade na qual poderei abraçá-lo de novo”.
A partir dessa consciência da necessidade, começa um reconhecimento, dentro da realidade mesma, desses indícios que possam conduzi-lo ao seu destino: “Não há outro modo de alcançar a eternidade do que aprofundando o instante, nem outra maneira de alcançar a universalidade a não ser através da circunstância vivida”. Tudo se torna sinal: a música, uma mesa bem apetrechada, um livro, as flores, os animais, a beleza de um único gesto, todas essas “pistas que os homens vão deixando para trás, como as pedrinhas que Hansel e Gretel deixavam cair, na esperança de serem reencontrados”; todos sinais desse Absoluto que todo homem busca, inclusive ele próprio. “Na irremediável solidão deste amanhecer escuto Brahms, e sempre através de suas melancólicas trombetas volto a entrever, embaçada mas certa, a soleira do Absoluto”.
A busca de sempre, com uma trajetória mais definida. É o que lhe possibilita encarar de frente a dor pela morte do filho, e tantas outras dores: a doença da sua amada Matilde, a pobreza, a injustiça e a violência em seu país e no mundo. Fixar-se na realidade torna-o mais inteligente, mais sensível. Entender que está buscando o Absoluto torna-o mais humano. Entende que essa saudade “não pode ser explicada, mas a sente como a memória de uma harmonia que era a nossa mais autêntica forma de existir”. Começa a perceber que esse “pano de fundo” feito de saudade de eternidade é “invisível, incognoscível, mas com ele se mensura toda a vida”. Deixar-se agarrar pelos indícios do Eterno presentes na realidade leva-o a querer comunicar essa descoberta aos outros, sobretudo aos jovens, aos quais se dirige com ternura: “A vida no mundo deve ser abraçada como uma tarefa estritamente pessoal, e precisamos estar prontos para defendê-la (...) porque essa é a nossa missão”.
A grandeza que, ao fim, Sabato descobre no quotidiano é que lhe permite afirmar com certeza que “a vida é aberta por natureza”, o que significa que a vida é positiva, tem dentro de si um germe de vitória, embora não o vejamos sempre com clareza. “Uma doença pode ser a abertura, a irrupção de algum milagre na vida: uma pessoa que nos ama apesar do nosso fechamento. (...) Amor que nunca se recebe como algo óbvio e que pertence sempre à categoria do milagre”.
Sabato pôde constatar – vivendo no mundo, deixando-se tocar por aquilo que o cerca – que há uma resposta para aquilo que se busca. Verificou que parte da resposta implica arriscar mais, e mais vezes, pelo outro, e que se deve sempre esperar com os braços abertos “que uma nova onda da história nos acompanhe”. Porque “talvez – diz ele – ela já esteja acontecendo, de um modo silencioso e subterrâneo, como as sementes que palpitam sob a terra no inverno”.
QUEM É
Nasce em 1911, em Rojas (Buenos Aires), décimo de onze filhos de dois imigrantes italianos. Depois da carreira de físico, dividido entre a Argentina e Paris, em fuga do Partido Comunista, ao qual havia aderido, em 1945 abandona as ciências para se dedicar à literatura. É Albert Camus quem descobre a sua grandeza. Tendo ficado sozinho após a morte do filho Jorge e da esposa Matilde, casa-se com Elvira, com quem terá Mario. Após a ditadura militar (1976-1983) é nomeado presidente da Comissão nacional sobre os desaparecidos, que produz o dossiê Nunca mais.
Sabato morre em 2011, dois meses antes de completar cem anos. “Mal comecei a aprender a viver – escreve ele – e já vou morrer!”. O que alimenta todos os seus escritos é o que chama de “o combate decisivo”, isto é, “recuperar toda a humanidade que perdemos”.
Entre os seus livros, variados ensaios sobre o homem e três romances: O Túnel (1948), a sua obra mestra Sobre Heróis e Tumbas (1961) e O anjo do abismo (1973). A coleção das suas memórias está em Antes do fim (1988).