Acervo da Laje: beleza, memória e presença
O que é o bem comum? Para responder a essa pergunta escolhemos colocar um exemplo de iniciativa social que, nos anos, está mudando algo ao seu redor. Entrevista com José Eduardo Ferreira Santos, publicada na Revista Passos de abrilA cultura do subúrbio ou periferia é esquecida e muitas vezes fica invisível nas cidades. Contra esse destino, o pesquisador e professor José Eduardo Ferreira Santos* começou a desenvolver um trabalho acadêmico sobre o subúrbio de Salvador, e em 2011, teve a ideia de garimpar as obras e a produção artística desses locais, descobrindo e catalogando mais de 50 artistas junto a Vilma Santos, professora e fundadora do Acervo da Laje, e Leandro Souza, produtor cultural. Assim surgiu o Acervo da Laje, localizado em uma pequena casa no bairro de Plataforma, na periferia de Salvador (BA), reunindo pinturas, quadros, máscaras, conchas, cerâmicas, madeira e azulejos, entre outras obras, além de ser espaço educacional e agora em duas Casas. Na Casa 1, onde encontramos o início da exposição geral do Acervo e a Casa 2, construída para receber as pessoas, realizar oficinas e exposições, contando com uma bela vista, única e Salvador, com a ponte férrea São João sobre a Enseada do Cabrito.
José Eduardo Ferreira Santos conversou com a economista e responsável pela Aventura de Construir, em São Paulo, Silvia Caironi, sobre esse empreendimento cultural.
O que significa construir o bem comum em seu trabalho no Acervo da Laje?
O Brasil é pródigo em manifestações e protagonismo comunitário. Essa é uma presença constante na nossa história e o Acervo faz parte desse trabalho. É um espaço de pesquisa sobre as artes visuais e a memória nas periferias que até então eram consideradas invisíveis no Brasil. É um trabalho de educação à Beleza, de educação à Memória no espaço que é museu, casa e escola. A ideia é dialogar para que, nos tempos de crise e dificuldade, não esqueçamos que temos memória, pertença e protagonismo emergindo da sociedade civil, das pessoas, dos casais, dos grupos, do coletivo... porque o bem comum é feito não somente por guetos, mas da diversidade de pessoas, por cada um que está procurando dar sua resposta da forma mais sistemática e operativa possível. O trabalho do Acervo, sendo que trabalhamos com cultura e arte, é para não nivelar por baixo aquilo que estamos vendo na baixa e velha política. Tentamos manter aceso o protagonismo dinâmico das pessoas. Primeiro, mantendo aceso o nosso protagonismo, das pessoas dos bairros, das periferias, dos grupos, de muita gente que está dialogando de forma bem sistemática.
O Papa Francisco diz que é “fundamental empreender iniciativas que suscitem amplas colaborações...” O Acervo da Laje é um grande sinal disso: o que implica para vocês trabalhar para os jovens e, ao mesmo tempo, buscar a colaboração dos artistas idosos, dentro das periferias, dentro das favelas para resgatar e não perder a cultura, a tradição, a memória? Vocês trabalham para os jovens e resgatam a memória dos idosos que é um dos pontos importantes para o papa. O que implica para vocês trabalhar desta forma?
Uma sociedade que não respeita a longevidade, que não respeita a memória, tem dificuldade de se estabelecer. No desenvolvimento humano o aspecto intergeracional é muito importante: você aprende com quem chega e com os mais velhos. Para nós é uma gratidão ter essas polaridades dialogando – tanto a infância, como as pessoas adultas ou mais velhas – porque é um espaço onde tem uma democracia no sentido de uma possibilidade de coexistência, de democratização das artes. Aqueles artistas potentes, como Prentice Carvalho, Reinaldo Eckenberger, o próprio Claudio Pastro e tantos outros que doaram peças para nós, revivem a cada visita. Essa potência é passada para os mais novos que não deixam isso apagar. Temos ali um encontro porque o artista nasceu para isso, para ser eterno, para existir. E as técnicas e o modo autoral, característico deles, possibilitam às novas gerações entenderem que também podem ser e expressar suas formas de estar no mundo através da beleza. Encontrando a beleza se provoca o surgimento de outras possibilidades de autorias. Um artista experiente é uma potência porque dá o melhor que tem, ele é uma força de autoria alcançando sua plenitude, digamos assim. Então, no Acervo, o que tem de bonito é que trabalhamos com todos os níveis de artistas, e temos esta alegria de conviver com gente que ainda está produzindo e oferecendo o que há de melhor para nós. A intergeracionalidade é uma experiência da força da beleza que une ao invés de separar por públicos específicos.
O Papa fala também de trabalhar para os pobres. O que te anima a oferecer uma experiência tão positiva e cheia de beleza e de esperança numa das favelas mais violentas e pobres de Salvador?
O que fazemos é trazer à tona o que, até então, não era trazido. Porque, geralmente, você conceitua uma favela como perigosa ou pobre e não vê que ali tem outras formas de expressão que tiram o significado só da pobreza. O que fazemos é o que aprendemos como professores. Desde muito cedo olhamos a periferia, a favela, sob diversos pontos de vista. E um deles é este: a potencialidade nasce também onde tem vulnerabilidade e o que nos anima é essa provocação. Não está dado que ali só tem a vulnerabilidade. É espantosa a quantidade de artistas, de profissionais. nas periferias, e como os moradores chegam ao Acervo com quadros para doação. E não é uma obra nossa, mas começa a se expandir porque quando uma pessoa chega com um quadro, essa é uma dimensão política da estética, no sentido de que a beleza tem que ser compartilhada para ser cada vez mais nossa. Isso vai gerando novas imagens dessa periferia que é potencializada. A pobreza é uma situação e não só uma condição à qual a pessoa é relegada, mas como situação na qual pode ser protagonista e se dar conta de que ela está diante de algo que a excede e que é dela. Para você ter uma ideia, mesmo sendo considerada uma das favelas mais perigosas de Salvador, nestes últimos oito anos, nenhuma pessoa foi assaltada lá. E olha que são milhares de pessoas que visitam o Acervo. Existe uma dinâmica, um protagonismo que deveria ser mais fomentado nestas comunidades. É aquilo que vocês fazem em São Paulo, por exemplo, com a Aventura de Construir: ver a pessoa que está em situação de vulnerabilidade e ajudá-la a se expressar cada vez mais. Para nós é interessante ver surgir e se desenvolver essas novas dinâmicas de afirmação, essas experiências positivas de autoria, de criação, de beleza. Porque o papel pedagógico é de quem vem depois e vai encontrar essas experiências. Isso ajuda na formação concreta dentro de um bairro periférico que começa a ter essa experiência pela primeira vez no Brasil; de ser bairro periférico, mas que tem escola, museu e residência e faz experiência do todo, de unidade dentro daquela realidade que poderia ser uma confusão, mas que de certa forma começa a ordenar aquela experiência que poderia ser dissolvida e começa a educar as pessoas e a cidade a entender que a beleza e arte podem estar também nas periferias e em suas lajes. Como temos feito com o Projeto Ocupa Lajes em 2016 e em 2018 que vem realizando oficinas com os artistas e suas diversas linguagens, bate - papos, visitas guiadas ao Acervo da Laje e exposições artísticas nas lajes das periferias de Salvador.
Qual a importância do trabalho intergeracional?
Acho uma coisa bonita o sopro de diálogo na política, na vida cotidiana entre os jovens e os idosos. Esse chamado é importante porque faz com que trabalhemos de modo intergeracional aprendendo a respeitar as primeiras autorias e criando as nossas autorias. Se aprendermos a dialogar com os mais velhos de modo respeitoso e reverente, vamos criar espaços de mais diálogo e de convivência. Acho que tem uma beleza nascendo aí, se começarmos a cuidar disso.
*José Eduardo Ferreira Santos é Mestre em Psicologias, doutor em Saúde Pública, pós- doutorando, Pesquisador e Professor pelo Programa Nacional de Pós - Doutorado (PNPD - CAPES) no Programa de Pós - Graduação em Família na Sociedade Contemporânea na Universidade Católica do Salvador (UCSAL).