Maria Leitão, Bebé, no campo Dadaab.

No Quênia, boas notícias de Dadaab

É o maior campo de refugiados do mundo. Com um buraco negro: o futuro. Contudo, Maria Leitão (Bebé) oferece cursos aos jovens. E aqui, onde “a esperança humana não existe”, acontece algo novo, e ela se sente em casa
Davide Perillo

“Desde o primeiro dia não consegui dormir durante várias noites. Encheram-me de perguntas e eu não tinha uma resposta pronta. Ficava girando na cama e me perguntava: o que é a esperança para eles? E para mim?” Eles são os refugiados de Dadaab, Quênia: quatrocentas mil pessoas, aglomeradas no maior campo de acolhimento do mundo, a uma hora de carro da fronteira com a Somália. Ela é Maria Leitão, chamada Bebé, 49 anos, portuguesa, que chegou ali há pouco mais de um ano. Trabalha para a FilmAid, uma ONG americana. Já morou no Timor Leste e no Haiti, conhece sofrimentos e grandezas de lugares onde a necessidade é tudo. Mas não esperava encontrar no deserto uma cidade suspensa no tempo, sem raízes e sem amanhã.

O cenário são filas de barracas montadas desde 1990 pela ACNUR, a Agência da ONU para os refugiados. Areia, calor, e uma cerca ao redor. “Vêm de toda a África: Sudão, Burundi, Ruanda, Congo, Etiópia… Todos os países onde existem problemas políticos ou catástrofes naturais, como a seca”. Há pessoas sem estudo e licenciados em Latim, bandos de criminosos e mães de família. “Há quem tenha nascido lá e está com vinte anos. Outros acabaram de chegar”. Mas para todos, hoje, a perspectiva é a mesma: ficar muito tempo, talvez para sempre. Porque a perspectiva é nunca mais sair dos campos. Desde que aos problemas humanitários veio se juntar o risco do terrorismo, dos Shabaab somalis e dos massacres como o da universidade de Garissa, apenas cento e cinquenta quilômetros para oeste, o Quênia blindou tudo. Não só em Dadaab, mas também em Kukuma, o outro campo mais abaixo, a caminho do Sudão, com 180 mil habitantes e o mesmo buraco negro: o futuro.

No terreno trabalham umas setenta ONGs. Levam assistência, alimentos, educação. A FilmAid usa instrumentos raros: vídeos, principalmente. E revistas. “Usamos isso para informar, educar ou simplesmente para entreter”, conta Bebé do seu escritório em Nairóbi. Clipes que ensinam como lavar os alimentos, como tratar certas doenças, como evitar a violência. Para ver em pequenos grupos, para serem debatidos. Ou assistidos num telão gigante montado sobre uma pick-up e onde os espectadores se confundem com quem pensou e rodou o filme. Ou seja, também refugiados. Porque a novidade está na origem. A FilmAid, em primeiro lugar, ensina jornalismo e produção de vídeo. “Damos aulas de direção, som, iluminação. Os jovens aprendem a construir a narrativa e a filmar documentários. Têm inclusivamente um jornal: The Refugee. Entre os dois campos, damos trabalho a uma centena de pessoas. É uma coisa boa. Sentem-se valorizadas, recebem um pequeno salário, estão ocupadas oito horas por dia. E aprendem profissões que gostariam de exercer fora. Se pudessem”, diz Bebé.

É o sonho de Smart, que aparece num vídeo para falar de si: “Ser refugiado não é uma opção minha. Mas também não é desculpa para não alcançar algum objetivo na vida”. Ou de Farida, que gostaria de se tornar diretor de cinema. E Bithu, Abdirashid, Ojullu… “Os diálogos com eles me consomem, sempre: ‘Gostaria de ir para Hollywood’, ‘Quero ser jornalista’. Mas que perspectivas têm? Estão no auge da vida aos vinte anos, mas não têm esperança. E você não pode dar respostas falsas. Nem a eles, nem a você mesmo. Até pode dizer ‘coragem, o futuro vai ser melhor’, mas você sabe que não é verdade, a não ser por milagre. A esperança humana, aqui, não existe. Aqui perdi o sono, no princípio”. E depois? “Lembrei-me da experiência dos presos de Pádua, na Itália. A única possibilidade, para eles, é que a esperança esteja presente agora, numa relação humana pela qual todas as coisas presentes são uma Presença. E que se possa estender a tudo. A única resposta é o cristianismo. Mas isso não se pode dizer assim, imediatamente; não se pode saltar logo para a conclusão. É preciso ir a fundo das palavras cristãs. É preciso vê-las acontecer”.

Ela as vê constantemente. Coisas pequenas, mas reais. Exemplos? Bebé pensa uns segundos. “Olha, em determinadas situações, a maldade do homem torna-se maior”, suspira. “Nos campos há gente que pede favores sexuais às mulheres em troco de um emprego. Tive que brigar muito para expulsá-los. Mas assim conheci Afmahani, uma mulher muçulmana. Ela me contou o que sofria e eu lhe disse: vou fazer tudo para que possa viver com dignidade. Ela: ‘Por quê? Entre nós cada um se vira, é a lei da selva’. E eu: ‘Porque você é valiosa. Infinita’. Ou o diálogo com Geffe, há alguns dias. Ele me perguntou: ‘Você tem marido? Filhos?’ Respondi que não, ‘Por que não se casa?’ Eu disse: ‘Porque Deus me deu muito e eu sou tão feliz que quero dar tudo a Ele’. Ele olhou para mim e disse: então você é católica. Só um católico pode falar assim”.

Ou, ainda, “aquele dia em que entrei na aula durante uma lição. Eu não ensino, fico nos bastidores. Mas naquele dia estavam falando do currículo e impressionou-me. Tomei a liberdade de interromper o professor e disse: ‘pessoal, quem está à procura de alguém para contratar, procura uma pessoa especial. Não ponham coisas que dizem pouco, como Esporte preferido: futebol. Não me diz nada. Um milhão de pessoas jogam bola ou são adeptos. Mas você, em vez disso, quem é?’. Levanta-se uma mão, tímida: ‘Eu aprendi a tocar a música dos turkana, uma tribo daqui’. ‘Bem, isso me fala de você!’ Outro: ‘Eu estudei jornalismo’. ‘Perfeito: isso me diz que está fechado aqui dentro, mas não fica sem fazer nada… Pessoal, reparem que vocês são únicos. Cada um de vocês é. E eu quero conhecer isso’. Nasceu um diálogo impensável sobre o mistério da vida, não apenas sobre os currículos”.

Quem sabe onde vão acabar aqueles currículos. Mas, entretanto servem para escrever mais um capítulo da luta entre o futuro e o presente, entre a incógnita do amanhã e a vida que decorre agora. “Parece absurdo ensinar uma profissão a quem nunca poderá exercê-la fora daqui. Porém, por exemplo, por um vídeo sobre o parto as mulheres percebem que um hospital não é um lugar onde só se vai para morrer. Ou por um sobre a alimentação aprendem a lavar as coisas antes de comer”. Coisas simples mas que no meio do deserto podem fazer a diferença entre saúde e doença, vida e morte. Ou alterar a ideia que se tem de si próprio: “Uma mulher, há dias, disse-me: graças a vocês percebi que as mulheres têm direitos”.

Clarões num céu que também por estas bandas é sempre mais encoberto. O campo de Dadaab é agora um ponto de apoio dos terroristas somalis de al-Shabaab: fazem circular armas, recrutam e inclusivamente treinam em certas zonas, entre os barracos. Bebé só entra nos campos com escolta: “Branca, mulher, cristã, que trabalha para uma ONG americana: é um risco muito grande. Há três meses parecia que me iam tirar o meu visto. Pensei: volto para casa, de novo. Estava angustiada. Depois, um momento de reconhecimento e pensei: que estúpida, estava à espera do visto mas a espera é por Jesus”.

Foi sempre assim. Desde que trabalhava numa estação de televisão em Lisboa, após se formar. Oito anos, antes de passar para uma editora, depois para um escritório de advogados, depois a oportunidade no Timor Leste, num hospital que devia abrir uma maternidade (“tinha sido pedida por João Paulo II à Igreja portuguesa”); e o Haiti, depois do terremoto (“era para estar lá uns meses, fiquei dois anos e meio”); e Moçambique, que já estava à espera dela antes de aparecer a FilmAid. Sempre de coração inquieto, nunca tranquila.

Um dia, almoçando com alguns dos “seus” refugiados, Bebé fez uma pergunta: do que é que sentem mais falta? “Talvez seja banal, mas a resposta me surpreendeu. Todos, mas todos mesmo, de onde quer que viessem, responderam: da minha casa. Muitos deles vêm de zonas devastadas: miséria e cabanas de barro. Vendo as condições, vivem melhor aqui. Mas sentem falta da casa. Perguntei-me: o que é a casa, então? As paredes ou os laços, as relações, a sua identidade? E para mim, o que é?”.
Bebé é Memor Domini. Mas, em Nairóbi vive sozinha, não tem ainda uma “casa”, irmãs com quem partilhar vida e vocação. “Volto à noite e não tem ninguém que me pergunte: como você está? Como foi hoje? E a comunidade de CL está quase toda do outro lado da cidade e os vejo pouco, pois não posso me deslocar sozinha porque é perigoso, e eles não têm carro”. A solidão é grande, em suma. “Mas a presença de Jesus é maior. A casa não são as paredes: é a relação com Ele”. A ser vivida nas circunstâncias nuas e cruas. Sem redes. “Aí percebi que Cristo é a minha identidade. A minha casa. Como Ele é quem me faz, estou sempre em companhia. Perceber isso foi comovente”.