Criança desenha no campo de refugiados.

“Fomos queridos”

O caderno de Sama, o presente de Mohammed, as notinhas fiscais coladas pela pequena Hlass... Relato de uma voluntária que trabalhou por um ano na Grécia, entre rostos e histórias de um milhão de imigrantes. E uma surpresa: “Esta é Belém”
Francesca Brufani

Um diário é algo pessoal. E foi para isso que Sama, de 21 anos, me pediu um caderno como se pedisse uma fortuna. “Quero escrever pra você”, me disse. Ela veio de Alepo, na Síria, e pede asilo na Grécia. Eu já trabalhava aqui há seis meses junto com a Cáritas italiana e nos conhecemos. Este seu pedido foi a primeira surpresa a quebrar minhas imagens.
Cheguei a Atenas para acompanhar um projeto de pesquisa social ligado à crise econômica. Eu não tinha procurado pelos refugiados, mas justo quando buscava me aproximar dos gregos, Sama me disse que os imigrantes que circulavam por Atenas não estavam interessados em ser meus “beneficiários”, mas queriam ser meus amigos. Não um número entre tantos, mas pessoas únicas com uma história singular que pedem um pouco de escuta. Aquela frase de Madre Teresa de Calcutá, companhia em tantos momentos, voltava a ecoar: “Hoje em dia fala-se demais dos pobres, mas ninguém fala com eles”.
Mohammed, 42 anos, é um dos últimos habitantes que chegou ao campo informal de Idomeni, após atravessar a fronteira da Macedônia. Pediu para se afastar um pouco das tendas para conversar. Contou-me que sua mulher ficou na Síria e não quis acompanhá-lo na viagem. E por mais de três meses ele não pôde confiar esta dor a ninguém. “Agora me sinto melhor”, diz ele. E sorri pela primeira vez.
Acredito que se for a fundo do seu fator de stress, das coisas que trazem dificuldade para você, existe sempre uma chave para vivê-lo e aquilo se torna uma aceleração para a vida. Certo dia, eu estava nervosa com a pilha de notas fiscais que devia prestar contas. E entra na minha sala a pequena Hlass, siriana, 4 anos, a quem apelidamos de “menina-terremoto”. Hlass se ilumina ao ver os papéis. Achei que iria bagunçar tudo, e ao invés, diz: “Que jogo legal. Eu colo pra você”. Não me esquecerei do seu olhar. Quando você deixa que os outros o “perturbem”, até uma nota fiscal se transfigura e, então, se torna uma peça de museu a colagem de um refugiado.
Asma tem 39 anos, é uma mulher forte, também siriana. Viajou sozinha com seus doze filhos enfrentando o mar, até que a Cruz Vermelha os levou para a casa Neos Kosmos. Hatoon, uma de suas filhas mais velhas, parecia perdida por aquela nova mudança. Eu pedi que me desse a mão, para guiarmos juntas a caravana dos seus irmãozinhos. Esta atenção particular a fez enxugar as lágrimas e se encheu de orgulho pela tarefa. Ali, Hatoon, uma menina muçulmana de 12 anos se percebeu amada. Como sinal de reconhecimento trouxe-me um colar e uma pulseira e me vestiu com eles.

Um presépio. No campo de Idomeni as tendas também pedem para ser ouvidas. Cada um decora sua cabana como pode, improvisando com cordas para delinear uma varanda, juntando peças abandonadas para formar um fogão. Para nenhum deles havia um lugar e por isso se encontram ali, vindos da Síria, do Afeganistão, do Iraque...
Suham me espera ansiosa perto de Idomeni, sentada num caixote. Traz um desenho para mim. “Hada Makedonia”, esta é a Macedônia, me diz acenando o campo. Eu apareço na frente, e estou com ela, que tem 27 anos, e o pequeno Jakob de dois, diante de uma das tendas que aparecem no desenho. Olho para todas, surpresa, e penso que as tendas de Suham parecem mesmo tantas pequenas grutas da Natividade. A Grécia é realmente Belém.
Hoje, passados seis meses daquele dia, desde quando comprei o diário para Sama, e um ano que entrei pela primeira vez na casa de Neos Kosmos, acaricio as palavras escritas naquele caderno vermelho, como se fossem um velho doente: “Os meus pais estão na Alemanha, gostaria que nos mandassem para lá, mas iremos para Portugal. Estamos felizes da mesma forma, pois teremos uma casa”. Combinamos de nos rever em Lisboa. Sama deve escrever outros capítulos e eu ainda tenho o que escutar. Olho com ternura cada símbolo árabe daquelas frases, passando o dedo sobre cada linha. Há corações desenhados ao redor da palavra “Síria” a cada vez que ela aparece. Dou uma olhada rápida no diário e na última página está escrito: “Por favor, conte que fomos queridos por você”.