«Charitas Christi urget nos!», “o amor de Cristo nos impele”. O escrito na entrada do Cotolengo de Turim

Cotolengo. “Se não damos Deus, não damos nada”

Fomos ao Cotolengo de Turim, a "cidade" da caridade. Onde "a razão de ser não é o assistencialismo, mas o Evangelho". É esse o "motor que" muda a vida de quem é acolhido e de quem ali trabalha (da Passos de junho)
Paola Bergamini

Vito nasceu sem braços e sem pernas, seus pais o levaram à Pequena Casa da Divina Providência, em Turim. Deixaram-no lá para sempre. Era 1951. Viveu 68 anos naquela pequena cidade dentro da cidade, que é o Cotolengo; teve uma vida plena, digna, jamais sendo derrotado pela sua condição. Nessa nova família é que floresceu a sua humanidade. Aprendeu a ler, a escrever, trabalhou como telefonista, ator de teatro, pintor e, nos últimos anos, assistente das crianças da escola que há dentro do Cotolengo. Mas o impressionante não era o que ele conseguia fazer ou o que dizia: e sim a sua própria pessoa. «Coitado», era o pensamento de quem se encontrava com ele pela primeira vez; mas depois, quando iam embora, em silêncio, eles próprios é que se sentiam “coitados”. «A fé me levantou», diz Vito num vídeo que ilustra a obra.

No dia 27 de novembro de 2018, durante o seu funeral, a igreja do Cotolengo estava lotada: doentes, hóspedes da Casa, freiras, sacerdotes, enfermeiros, médicos, voluntários... «Você foi um dom para a Pequena Casa e a Pequena Casa foi um dom para você. Dom da caridade de Cristo. Tudo isso é um milagre da Divina Providência», disse durante a homilia o padre Carmine Arice, padre geral da família de Cotolengo.

Vito era uma das “pérolas” da Pequena Casa, como padre José Cotolengo chamava os pobres, os doentes, os necessitados que batiam à sua porta. De 1828 a 1842, ano da sua morte, o santo italiano ergueu uma obra que hospedou mais de seis mil necessitados, oferecendo cuidados médicos, instrução, trabalho. Uma revolução. A ele não interessava resolver os problemas sociais de Turim, tanto é verdade que rejeitava o título de benfeitor, pois estava associado à ideia de filantropo, mas se sentia provocado pela necessidade que se apresentava a ele e encontrava a resposta na caridade de Cristo pelo irmão. «Caritas Christi urget nos» (O amor de Cristo nos interpela), mandou afixar na porta de entrada. Ainda hoje essa frase pode ser lida esculpida na entrada do Cotolengo. «A caridade era o motor que o movia e movia as outras pessoas, porque através da caridade o irmão necessitado pode encontrar o Cristo e ter uma esperança de vida. E a coisa interessante é que encontrava soluções lá onde os problemas pareciam impossíveis. Até alguém como Cavour [primeiro-ministro do Reino da Itália, em 1861] ficou estupefato com a obra. Para padre Cotolengo tudo nascia dos encontros. Quando o Papa Francisco diz que a realidade é mais importante do que a ideia, eu compreendi melhor a obra do nosso fundador. Encontrava alguém surdo-mudo? Criava a família dos surdos-mudos, isto é, uma casa dentro do Cotolengo que os acolhia. O samaritano não fez a mesma coisa? Não saiu procurando os feridos da região. Ajudou aquela pessoa que estava machucada», explica padre Arice.

A partir desses encontros surgiram o hospital, as Famílias – não institutos – dos Santos Inocentes, de Santo Antonio, de Sant’Ana, de Santa Isabel, dos Anjos da Guarda... que acolhiam os pobres mutilados, surdos-mudos, doentes mentais, deformados, órfãos, o que a realidade colocava diante dele. Hoje, percorrendo as vielas desses 112 mil metros quadrados, ao lado do hospital vemos as Casas que acolhem os novos pobres: idosos, deficientes físicos, doentes de várias patologias neurodegenerativas, e também a escola primária e secundária, na qual 13% dos alunos (frente aos 2% das escolas públicas) são portadores de deficiências. E tudo o mais que a realidade suscita. E por onde a gente anda, vê em ação as Irmãs que Cotolengo quis pôr para ajudar os leigos. As de vida apostólica, a serviço dos necessitados; e as de vida contemplativa, porque “oração e eucaristia são as duas rodas da Pequena Casa”, lê-se no interior da igreja onde todo dia as Irmãs se alternam na laus perennis, a adoração ao Santíssimo Sacramento.

Quando, em 2015, o Papa Francisco visitou o Cotolengo, disse: «A razão de ser desta Pequena Casa não é o assistencialismo, ou a filantropia, mas o Evangelho: o Evangelho do amor de Cristo é a força que a fez nascer e que a faz ir adiante». Padre Arice continua: «A maior caridade não é dar alguma coisa, mas dar Jesus. O nosso objetivo é que o homem esteja bem e que o seu estar bem possa levá-lo ao encontro com Jesus. Isso é o que determina a nossa ação. Cotolengo repetia às freiras: Se aos pobre não damos Deus, não damos nada».

Esse “Amor que interpela” abraça também os que, como dependentes, trabalham na Pequena Casa. Chiara Maghenzani há vinte anos é enfermeira no hospital. Já teve inúmeras oportunidades economicamente melhores. «Fiquei por escolha própria. Aqui se respira um ar diferente. Prefere-se a fragilidade, e por isso é preciso uma busca de sentido, do porquê do próprio trabalho. Por isso eu busco a companhia das Irmãs, que se tornaram uma presença na minha vida. Aqui eu reencontro a fonte da caridade de Cristo. Mas, às vezes, a caridade gera ciúme, inveja, porque é algo que foge da compreensão comum. É difícil entender por que a gente antecipa o início do turno diário só para estar com aquele doente ou porque precisa falar com uma freira, por exemplo».

A espera por Papa Francisco, que visitou o Cotolengo em 21 de junho de 2015

«Como é que vocês conseguem se manter?», é a pergunta que padre Arice ouve com frequência. «De um ponto de vista econômico, socorrendo indigentes não é possível ter um orçamento equilibrado. Não há previsão que resista. Mas a Divina Providência, desde o início, nunca deixou faltar nada». Assim, pode acontecer que certa manhã chegue uma van cheia de caixas de frutas. Tantas que até é possível enviar uma parte para as fundações que existem fora de Turim. «Deo gratias», disse uma freira ao condutor da van. A mesma expressão usada por São José Cotolengo, quando via em ação a obra da Providência. Desde então, essas duas palavras latinas são repetidas ao final de uma conversa, de um encontro, ainda que de poucos minutos. Para não se esquecer jamais para Quem se está trabalhando.

Rossella Puddu é quem cuida do fechamento das contas, que controla a gestão. «Uma coisa é clara: aqui não se cortam os serviços. Até mexendo com números a gente procura o sentido de caridade de Cotolengo. É difícil explicar. Mas isso, depois, também repercute no meu trabalho com as outras empresas».

É entre as “pérolas” acolhidas na Pequena Casa que se descobre qual esperança este lugar gera. Angela é surda-muda e cega. A comunicação com o exterior parecia impossível. Em anos de trabalho, com a ajuda das freiras aprendeu uma linguagem de sinais que lhe permite “falar” com as pessoas. Quando participou da peregrinação ao Santuário de Lourdes, não pediu o milagre da cura, mas a paz no coração.
Em novembro de 2018, na praça Castello foi montada a exposição intitulada “Com os meus olhos”. Com pinturas, esculturas, poesias e outras expressões artísticas criadas pelos moradores da Pequena Casa. Que levaram Maurizio Momo, arquiteto de Turim, curador da exposição, a dizer: «São verdadeiras obras de arte!».

Num painel, Teresina, que tem esclerose múltipla, quis escrever a sua história: «Senhor Deus de amor, de ternura, pousaste o vosso olhar sobre mim antes mesmo de eu nascer. O vosso amor, entre as pregas do meu sofrimento, abriu uma brecha no meu coração, na minha alma ferida, perturbada pela doença, pela morte precoce da minha mãe e como consequência a escolha do meu pai de me tirar da minha terra e levar-me para Turim, deixando-me na Pequena Casa da Divina Providência. Eu vos louvo, vos agradeço, Deus de amor, Deus de ternura, por ter-me feito compreender que o sofrimento e a doença já não eram um abismo, mas uma profundeza de viver com alegre esperança».

Depois pode acontecer que justamente estando com as “pérolas” do Cotolengo a caridade de Cristo se torne tão transparente e urgente a ponto de indicar a estrada para a própria vocação. Lucia, recém-formada em Enfermagem, “por acaso” começou a trabalhar no hospital da Pequena Casa. Em breve vai se casar, tudo está definido. É feliz com seu namorado. Um dia, perdeu-se no subsolo do Cotolengo e foi parar no pátio onde acontece uma festa organizada por pessoas deficientes. Perguntou a uma freira o que havia naquele lugar. «Você está na Pequena Casa da Divina Providência, onde se acolhem pessoas sozinhas, com deficiências». Ficou ali parada, só olhando. E no dia seguinte retornou, atraída por aquele lugar. «Eu ficava ali com aquelas pessoas especiais, tinham uma serenidade que dava inveja, uma alegria profunda». A conta não fechava, havia algo diferente, ela precisava de tempo. Não se sentia mais segura de nada. Retirou-se por um mês, dedicou-se à oração e à meditação. Numa tarde chuvosa, leu na Bíblia: «Farei de ti o meu servo!». Um raio de sol penetrou no quarto. Aconteceu isso mesmo. «Nada de sentimental, mas pensei: essa frase é para mim. Tudo bem, Senhor, me entrego, vos seguirei». Nada de casamento; decidiu ingressar como consagrada na família do Cotolengo. Hoje é a Irmã Lucia.

E há quem encontre a própria vocação. Um casal estava em crise: só brigas e incompreensão. Parecia ter chegado o momento de inserir a palavra “fim” na história do casamento. Certa manhã, a esposa disse ao marido: «Ouça, antes de tomar a última decisão, vamos nos apresentar como voluntários no Cotolengo. Pelo menos a gente faz uma boa obra». A boa obra, ou melhor, um novo Amor foi ao encontro deles através dos rostos daqueles pobres, que mesmo naquela situação se sentem felizes. Após alguns meses, uma noite eles se olham como nunca tinham feito antes. E se perguntam: «Mas o que estamos fazendo?». E a partir daí recomeçaram, para uma nova vida matrimonial.


(Texto inicialmente publicado na Revista Passos, junho/2019)