Cáucaso, região de Stavropol (Foto: Serghey Ryumin/Getty Images)

A luta pela felicidade

«Por anos, Deus me carregou em seus braços como a uma criança temperamental e indiferente. Deu-me riquezas inestimáveis e amigos que têm sido um guia no caminho até Ele». História de uma cazaque vivendo no norte do Cáucaso. Da Passos, novembro/21
Anna Kim

Nasci em 1974 em Karaganda, Cazaquistão. Quando eu tinha três anos, minha família se mudou para Tashkent, no Uzbequistão. Depois de me formar em minha cidade natal, voltei para o Uzbequistão e me casei. Em 1995 ocorreu uma tragédia em nossa família, que destruiu tudo: meu único irmão foi condenado a uma longa pena de prisão. Havia noites em que era impossível dormir devido à dor e ao desespero, e era terrível acordar pela manhã. Morávamos em uma cidade pequena, onde não havia trabalho, então meu marido e eu fomos para Moscou procurar emprego. Vivemos como migrantes em condições muito difíceis.

Em 2005 voltei a morar em Karaganda, onde estava minha família e em particular minha tia Lyubov. Na verdade, uma coisa incrível tinha acontecido com ela, quando eu ainda estava em Moscou: ela tinha vindo para participar de um encontro de CL com Julián Carrón, e quando nos vimos ela me abraçou com muita força, olhou-me nas profundezas do meu coração, de forma sincera e madura, e me perguntou: «O que você quer? O que você está esperando? Você quer ser feliz?». Hoje, depois de tantos anos, com certeza posso definir aquele encontro como um Acontecimento. Foi assim que Jesus entrou na minha vida.

No verão daquele ano participei de minhas primeiras férias com os amigos do Movimento, e quando terminaram eu havia entendido que este é o “lugar da Esperança” para mim, onde me sinto abraçada o suficiente para poder olhar com esperança tanto para as minhas próprias feridas quanto para a “escuridão sem fim”.
Ninguém, nunca, em lugar nenhum, me abraçou assim, ninguém jamais “torceu” assim pela minha felicidade, pelo meu destino, pela minha liberdade.
No outono de 2006 pedi o meu batismo ao padre Adelio Dell’Oro, que hoje é Bispo de Karaganda. Naquele dia, eu, meus dois filhos e minha avó de 85 anos recebemos o batismo e, também, celebrei o sacramento matrimonial com meu marido, com quem estava casada no civil havia mais de dez anos.
Por todos os anos que se sucederam, fui uma minúscula parte de toda a nossa comunidade de CL em Karaganda. Deus me carregou em seus braços como a uma criança temperamental, irracional e indiferente. O Senhor Deus deu-me riquezas inestimáveis, enviando-me amigos que pertenciam ao Movimento e que eram apaixonados por Cristo, com a experiência deles, com seus olhares e suas vidas, têm sido um guia, um farol e uma âncora no meu caminho para Ele. E esses amigos estavam espalhados por todo o mundo. Alguns deles, mesmo sem me conhecer, tornaram-se grandes amigos, ajudando-me a crescer. Meu “eu” pequeno, frágil e fraco, nasceu da luta diária entre mim e a realidade e entre eu comigo mesma. E quanto mais eu sucumbia nessa luta, mais eu precisava daqueles amigos. Agora percebo que essa luta foi pela minha felicidade.

Quando a pandemia começou, o medo e a impotência tomaram conta de mim, o mesmo se deu com muitos ao meu redor. Lembro-me claramente de que naquele momento meus olhos se arregalaram, meus ouvidos e meu coração ficaram mais sensíveis... Como alguém que está se afogando, eu estava procurando alguém a quem me agarrar, olhar, para não me afogar na minha impotência. Então, fui tocada ainda mais uma vez pelo infinito Amor de Deus por mim, o valor da amizade, a minha necessidade de testemunhas, a minha necessidade de Ele.
Outro milagre foi o casamento do meu filho mais velho, Boris, a quem padre Adelio disse: «Busquem Aquele que deu a vocês um ao outro». Tenho certeza de que foram exatamente as mesmas palavras que ouvi no meu casamento, quinze anos atrás. É uma companhia pra mim o fato de padre Adelio responder à pergunta “como você se sente?” sempre com a mesma resposta: «Sinto-me nas mãos de Deus”. Portanto, minha tia Lyubov, que me abraçou com força naquele momento em que eu estava desesperada e me deu o livro O senso religioso de Giussani, não se cansa de me lembrar com toda a vida que «a existência nas mãos d’Ele sempre tem um sentido».

Anna Kim no dia de seu casamento

Padre Carrón, que para mim é uma rocha, um pai e um verdadeiro amigo, recentemente numa assembleia das comunidades do Leste Europeu e Ásia central, diante dos meus medos porque tive que me mudar para a Rússia, disse-me: «Diante da nova situação que você terá de enfrentar, poderá perceber o que faz verdadeiramente companhia para você; o que não quer dizer que não precise da companhia, ou que não haverá companhia onde estiver. Dependerá de você reconhecê-la na modalidade em que Cristo der a você a possibilidade de experimentá-la, através da maneira como se fará a companhia na nova situação. A sua mudança será uma ocasião para aprofundar o conteúdo da companhia que você encontrou em Karaganda. É um verdadeiro desafio, que irá ajudá-la a entender que o que dizemos não são só palavras... Você pode partir e ir para onde deve ir com curiosidade: “Vejamos como Cristo me fará companhia na nova situação”». Este é um milagre incrível. Quero realmente permanecer numa pobreza que deseja participar de uma realidade fascinante.

Outro grande amigo meu, Enrico Craighero, uma vez me disse: «Deve-se desejar apenas uma coisa: que no coração se abra um pequeno orifício, uma brecha, uma fenda pela qual Cristo possa entrar».

Agora moro no Cáucaso do Norte, perto da cidade de Stavropol, em uma pequena aldeia chamada Proletarsky. Estou muito longe dos amigos, longe da minha querida comunidade de Karaganda. Experimento um grande número de desafios “hostis”, mas me sinto nas mãos de Deus, lembro-me de que “a vida nas mãos d’Ele sempre tem um sentido”, quero que ele me faça companhia em cada momento da minha realidade e rezo para que a pequena abertura do meu coração não feche nem cicatrize, apesar da (ou graças à) luta diária que continua e que, tenho a certeza, está me conduzindo para a felicidade.

Toda manhã começa com uma luta. Certo dia, no final de agosto, acordei muito cedo, em pedaços e insatisfeita com tudo. Lembrei-me dos momentos daquela noite, há um ano, quando um amigo nos deixou após uma doença grave. Comecei a rezar, para ser sincera, com muita preguiça, mecanicamente ... E justo naquele momento chegou uma mensagem de Karaganda para nos informar que uma amiga nossa tinha dado à luz uma menina naquela noite. Foi como se Ele tivesse me gritado: «Estou aqui! Estou contigo. Eu sou a esperança». Imediatamente me tornei outra, minha oração tornou-se outra, meu dia inteiro foi diferente.

Conhecendo todos os problemas de muitos amigos da comunidade, comparando-os com as minhas dificuldades, hoje sou salva pelos Seus sinais. Enquanto pensava sobre o que o título do encontro do Dia de Início de Ano (“Nenhum dom de graça vos falta”) significa na minha experiência, de repente, percebi que na minha vida, neste momento, era pungente a falta de muitas coisas. Só falta! A falta de saúde, de tempo, de amor e de atenção por parte dos filhos que estão longe, a falta de força no relacionamento com os pais doentes, a falta de resultados num trabalho difícil e cansativo... Porém, é justamente por isso que percebo de forma ainda mais aguda que Jesus age através de tudo. Por isso, não há decepção, então, não há dor, o que existe é a oportunidade de conhecê-Lo através da realidade e daqueles que Ele nos dá. Há um pedido centuplicado para que mude o meu coração e doe-Se a mim. E pela maneira como Ele responde, pelos sinais que me dá e como me muda, tenho uma certeza cada vez maior.

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Estando fisicamente longe de amigos, sinto maior a responsabilidade de viver minha vida. Nesse momento fico emocionada quando leio as mensagens nos chats ou recebo convites para rezar por alguém ou por alguns acontecimentos importantes na vida da comunidade. Fico particularmente tocada pelo fato de mais uma vez me sentir parte dessa nossa companhia. Nisto vejo a prova de Seu enorme amor por mim, pois confiou a mim as minhas circunstâncias.

E agora compreendo ainda mais profundamente as palavras “pertença” e “comunidade”. Aquele diálogo com Carrón, antes da minha partida, virou tudo de cabeça para baixo: as preocupações intermináveis, a série de questões urgentes e “importantes”, a longa e cansativa viagem pela Rússia, a separação iminente de meu filho que havia começado seus estudos em outra cidade… Tudo parou de ser uma grande preocupação. O que mais me preocupava era o quanto do meu coração comovido eu poderia levar para meus pais e meu marido. Se eu pudesse levar mais do que malas... Por fim, já não me falta “nenhum dom de graça”.