(Foto: Arquivo Meeting)

Quem sou eu?

As “mulheres de Rose”, vindas de Kampala, Uganda, foram protagonistas de uma das exposições mais visitadas do Meeting de Rímini de 2021, intitulada “Você tem valor”. Retomemos o que elas viveram naqueles dias. De Passos, outubro/2021

Anifa: Com o que vi na minha vida, nem poderia sonhar que viria aqui. No nosso clã, ninguém nunca saiu de Kampala, acho que a notícia vai sair nos jornais. As pessoas me encantam, têm o coração “italiano”, que vi primeiro em Rose [Rose Busingye, fundadora do Meeting Point International de Kampala]. Fiquei impressionada com uma menina de 11 anos que viu o vídeo das nossas histórias e chorou. Pensei: que coração Deus deu a esse povo! Nunca vi pessoas com uma amizade assim. Estou acostumada a que as pessoas gostem de você pelo que você tem, pela aparência, ninguém considera quem você é. Agora a certeza vai se desenvolvendo, cresce a pergunta: quem sou eu? Quando voltar para casa, vou dizer aos meus filhos: nós não estamos sozinhos; não somos ricos, mas não estamos sozinhos. Há alguém que nos ama. Se todas as pessoas tivessem esse coração, talvez o mundo mudasse. Sou muçulmana e muitos me perguntam por que continuo seguindo pessoas que não são da minha religião, me perguntam por que eu vendo a Traces [edição de Passos em inglês], se eu não consigo lê-la. Vendo porque sei que o que está escrito nela tem valor. Há só a beleza. Nunca vou parar de vendê-la. Quem me pergunta por que ando com católicos, para mim é “atrasado”, mas me ajuda a redescobrir o que estou seguindo: faço isso porque faz minha vida crescer. Faz meu ser crescer. Acompanho os encontros com Julián Carrón, embora eu não entenda tudo: olho para ele e sinto que tudo o que está dizendo entra no coração. Pela manhã também penso nas palavras dele, e isso me dá vida outra vez, me dá o ser. Se eu não seguisse, já não estaria viva. O que contamos na exposição é pouco comparado com o que passamos. É como um pequeno ponto. Vivemos uma vida assustadora.

Rose Busingye (de boné) no Meeting de 2021.

Akello Florence: É minha primeira vez na Itália e no Meeting. Cheguei aqui e comecei a ver algo que nunca tinha visto. Rose sempre me diz: “Não se diminua, porque você tem um grande valor”. Se você não se diminuir, se Deus quiser, coisas grandes vão começar a acontecer com você. Quando cheguei aqui, encontrei rostos que aos poucos foram dando respostas. Estou experimentando a certeza de que sempre há alguém comigo. Todo o carinho que recebo é um chamado de Deus: “Aproxime-se, aproxime-se mais de Mim”. As pessoas daqui me olham com amor, não posso nem descrever. É isso o que vou levar para casa, também para as pessoas queridas, não só para mim. Voltarei sabendo que existe um chamado, que onde eu moro é o lugar certo.

Agnes: Todos os que viram a exposição ficaram mexidos, tocados. Antes de chegar aqui eu me perguntava: será que as pessoas virão para ver isso? Pensei que ninguém chegaria perto para dizer “olá”. No entanto, quando as pessoas saíam da exposição perguntavam se podiam nos abraçar, e choravam. Ninguém nos conhecia e, mesmo assim, ficaram tocados. Isso para mim é a demonstração de que o que Rose diz sobre o nosso valor é o que as pessoas que vêm à exposição descobrem em si. É por isso que há uma identificação real com a dor que sofremos. Vi uma reciprocidade de amor, não só recebido, mas também dado às pessoas que encontramos. É por isso que as pessoas que viram a exposição sentiram a minha dor, estavam ao meu lado, mesmo que não tenham passado por tudo o que passei. Mesmo agora, enquanto falo, a pergunta continua: quem sou eu? Todos que têm essa pergunta podem entender.

Claire: É um presente de Deus estar aqui. Antes de chegar, eu tinha muitas perguntas, sobretudo sobre a amizade. Era como se Deus estivesse me dizendo: “Eu lhe darei as respostas na Itália”. Encontrei um interesse sincero das pessoas que me faziam perguntas reais, não eram frases feitas. Foi surpreendente: almocei e jantei com pessoas com quem compartilhei muitas coisas, e elas também compartilharam muito comigo. Descobri uma amizade que nunca vivi com outros amigos. Visitei a exposição “Viver sem medo na era da incerteza” e entendi que o cristianismo é algo que atrai, não um discurso cheio de regras. O que eu experimentei aqui é algo realmente interessante. Não acredito que alguém tenha dito a essas pessoas: “Sejam gentis com quem vocês encontrarem, ou tentem ter uma conversa profunda”. É perturbador e interessante, porque gera em mim muitas perguntas. Eu me sinto amada. Mas quem sou eu para receber todo esse amor de pessoas que nunca tinha encontrado, e que eu não conhecia?

Apresentação de dança no stand da exposição, em Rímini.

Apolot Florence: Estou descobrindo que não estou sozinha. Para mim foi um sonho. Dia e noite eu pensava: quem sou eu para ir à Itália? Ou por que a Rose, mesmo eu sendo soropositiva, me abraça? Quando a conheci, eu tinha todos os sinais da doença no meu corpo e mesmo assim fui abraçada nas condições em que estava. E aqui, também encontrei o mesmo abraço. Para mim, o simples fato de poder pegar um avião era inacreditável: eu, que estava na floresta, com tudo o que vivi. Eu estava isolada por ser soropositiva. Negavam-me tratamento. Mas quando conheci Rose, ela me acolheu, não me perguntou a qual etnia eu pertencia, e me disse: “Você tem valor”. Eu nem sabia o que era valor. Achava que valor fosse algo ligado a pessoas ricas ou que têm instrução. Eu não sabia que tinha valor, porque sou soropositiva e as pessoas me diziam o tempo todo que eu iria infectá-las. Rose pegou meus filhos e os levou para a escola, onde receberam o mesmo amor. Quando aceitei Cristo na minha vida, entendi que o meu valor é maior do que a pobreza, do que a doença ou a instrução. Agora, quanto mais eu vivo, mais sinto que Cristo vive dentro de mim.

Ketty: A primeira coisa que experimentei foi o amor que as pessoas me mostravam. Disseram-me que as pessoas aqui eram distantes, por medo da Covid. Em vez disso, foi algo incrível. Isso pôs em movimento o que eu tinha dentro de mim, está me “fazendo crescer”, me dá muito. O que mais me surpreendeu é que as pessoas me chamavam: “Ketty, Ketty…”. Mas eu não sei como elas descobriram o meu nome. Depois de ver a exposição, me faziam muitas perguntas: “Por que você é feliz? Por que você sorri? O que você viveu é indescritível, mas você dança e canta”. Às vezes eu respondo chorando, porque essas perguntas estão no fundo do meu coração. Depois, pensei que, se as pessoas me fazem essas perguntas, significa que elas também sofrem, então eu me perguntei: por que sorrimos? Fazem-me perguntas sobre o Colégio Luigi Giussani, em Kampala. Antes, nossos filhos estavam em escolas onde odiavam suas vidas. Não quero que vivam o que eu vivi. Quero agradecer a todos vocês, porque a escola literalmente salvou a vida dos nossos filhos. É por isso que cantamos, para agradecer. Não podemos agradecer-lhes de outra maneira, mas com o canto, sim. A pergunta é “quem sou eu?”, e a resposta é o que estou experimentando aqui.

Rose: Vivi dois anos difíceis com o isolamento, porque não podia encontrar as pessoas nem ir visitar as mulheres. Eu disse a elas que tivessem cuidado para não pegar outro vírus e fiquei surpresa quando uma delas me respondeu: “Será o que Deus quiser”. Eu estava tirando Deus do instante, do fato da Covid. Dois meninos morreram este ano, um de leucemia e o outro porque não recebeu cuidados. Eu fiquei com raiva. Então, ouvi Carrón falar de uma pessoa que tinha morrido, que estava melhor que nós. Foi um tapa na cara! Ele disse: “Vocês julgam a realidade sem fé, como se Deus não tivesse a ver com a realidade, com o instante”. E, ali, eu disse: eu não Te perdi. Se estou com Ele, posso dizer: Danielino, eu não te perdi. Mark Trevor, não te perdi. Não perdemos nada se tivermos nossos olhos focados n’Aquele que é maior do que nós. Sou feliz, mesmo quando as coisas me deixam sem ar. Ainda estou sem ar, mas, como as mulheres dizem, temos onde pôr nossas perguntas. Eu posso dizer: não perco o instante porque meu Amigo habita nele. Habita em mim, habita no instante. Estou muito feliz com o Meeting, porque renova nosso olhar e nossa fé. Renova a certeza do que está em jogo agora. E sinto um forte aperto quando digo: quem sou eu para ter essa predileção? Tu amas tanto o meu nada! Quem sou eu? Quem é Deus que cuida de mim? Se eu me medir, não encontro nada que progrida, quanto mais eu vou em frente, nada progride. Por que cuidas de mim?
Não é que encontramos a resposta, porque é sempre uma comoção dizer: quem sou eu? Não é tanto que alguém me dá uma resposta. É um choro dentro de mim, e dizer: quem sou eu, para que cuides de mim? Porque eu não sou nada, eu sei.


O Meeting Point é uma pequena organização não-governamental nascida na década de 90 que age nos subúrbios de Kampala encontrando doentes, viúvas, crianças e órfãos, oferecendo apoio psicológico a jovens e famílias, ensinando normas de educação sanitária, tratando pacientes em domicílio, levando cuidados e remédios e promovendo atividades sociais. (http://meetingpoint-int.org/)