Camboja. Percorrendo o Mekong com Giussani
Em missão há mais de vinte anos, padre Alberto Caccaro conta por que decidiu traduzir Educar é um risco na língua khmer e a revolução que se iniciou dentro dele. Atravessando aldeia após aldeia. Da Passos de marçoArrozais a perder de vista, estradas de terra batida, aldeias de palafitas e de camponeses à espera de que o grande rio Mekong cubra os campos. Padre Alberto Caccaro, no início da sua aventura no Camboja, atravessou-os de moto dia após dia. A cada manhã, partia para metas desconhecidas de Prey Veng, pequena capital de distrito a que o Bispo, em 2004, o tinha destinado e onde nunca tinha estado um padre católico. Para se orientar nos deslocamentos, só uma velha carta militar dos anos da guerra do Vietnã, na qual assinalava tudo: as aldeias, as trilhas e as pessoas. Aqui são quase todos budistas e não sabem o que é um padre. Mas o acolheram sempre como uma bênção. «Levavam-me à casa deles, aos seus doentes. E eu os ajudava como podia, com os medicamentos; às vezes com as internações no hospital», conta o missionário do Pontifício Instituto das Missões Exteriores (PIME). E eles, com as perguntas mais simples, sempre o reconduziram ao coração da sua vocação. «Perguntavam-me: “Você é casado? Tem filhos?” Eu respondia: “Não tenho mulher, por Deus. E não tenho filhos, por Deus”».
Foi durante essas explorações cotidianas que padre Alberto percebeu a dificuldade que as crianças das aldeias tinham em prosseguir os estudos. As escolas de ensino fundamental e médio são poucas e concentradas na vizinhança dos grandes centros urbanos. Os estudantes mais motivados são obrigados a fazer várias horas de caminho ou então a mudar-se para a cidade. «O sonho de construir uma escola nasceu assim, para responder a uma necessidade que eu via. A evasão escolar era altíssima, e era normal para muitos meninos ir tentar a sorte na vizinha Tailândia. Além disso, em Prey Veng tínhamos aberto uma hospedaria para acolher os de fora do povoado, e foi a ocasião para perceber muitos pontos críticos da escola pública». As crianças voltavam à hospedaria tristes. Mesmo os mais dotados ficavam desmotivados, não obstante o gasto de dinheiro e de energia que tinham de manter. Dá para ver isso pelas muitas faltas, mais que pelas notas baixas. «A única proposta que via da parte da escola eram as aulas particulares na casa dos docentes. Um sistema que dava origem a muitas ambiguidades», conta ele, que, diante de tudo isso, detectou desde logo a urgência de um lugar diferente. Mas foram seus superiores que o seguraram. «O meu Bispo, de origem indiana, temia que os projetos educativos dos ocidentais se transformassem em escolas de elite e sempre me apresentava muitas dúvidas». Mas padre Alberto não se desencorajou. Pelo contrário. Justo quando tudo parecia travado, o sonho recebeu um impulso novo durante uma visita à casa do PIME em Phnom Penh, a capital. «Encontrei uma cópia da Revista Passos, na qual li com surpresa alguns artigos sobre as obras educativas do Movimento, que não conhecia muito bem. Foi como um chacoalhão. Não perdi tempo, telefonei para um confrade na Itália e pedi que me enviasse o Educar é um risco de Dom Giussani. Ali encontrei a carne, a consistência do meu sonho».
Estávamos em 2005. A partir desse ano, ele voltaria a lê-lo pelo menos seis vezes. Cada data foi anotada à mão na folha de rosto do seu livro: 2006, 2009, 2010, 2015, 2017. Foram todas as vezes que precisou «rever o sonho», alimentá-lo. «Aquelas palavras, desde o início, eliminaram a solidão em que me sentia e encorajaram o caminho a que eu entendia que era chamado. A ideia de que a educação fosse uma introdução à realidade total ajudava-me a dar forma à escola que imaginava, além de me sugerir os critérios com que pensar nos programas didáticos e na seleção do pessoal. Em suma, em Giussani tinha encontrado o meu companheiro de viagem». E não foi o único. Nesse mesmo ano, padre Alberto conseguiu comprar um terreno logo na saída de Prey Veng, graças às poupanças que fizera desde a sua ordenação, em 1995, e às ajudas dos amigos. Mas a quantidade de barreiras burocráticas e financeiras atrasavam o início das obras. Até que apareceu à porta do gabinete do padre Alberto um empresário coreano. «Quem o levou lá foi um jovem paroquiano, empregado de uma firma em Phnom Penh. Tinha ouvido dizer que o seu patrão, budista, queria financiar um projeto educativo num contexto rural, e lhe falou de mim». As ideias do sacerdote não demoraram muito a entusiasmá-lo. Bastou-lhe aquele primeiro encontro para levá-lo a decidir comprometer-se para os dez anos seguintes com duzentos mil dólares.
Depois de ter encontrado quem desse solidez às fundações, padre Alberto começou a procurar alguém com quem partilhar a ideia de uma escola que se preocupasse com a educação do humano em todas as suas dimensões. Através dos meninos da hospedaria, conheceu um jovem professor católico, a quem confiou a direção. «Lendo Giussani, era para nós cada vez mais claro que devíamos dar dignidade a cada disciplina. E a cada docente. E ainda que não pudéssemos apelar imediatamente a um conceito de verdade, visto que a esmagadora maioria dos estudantes é budista, entendemos que a preocupação de ensinar “o que é verdadeiro” devia traduzir-se num modo de fazer tudo “verdadeiramente”. Devíamos “verdadeiramente” fazer uma escola: um horário verdadeiramente, uma aula verdadeiramente, um exame verdadeiramente, um dez verdadeiramente, as limpezas verdadeiramente… só assim poderíamos conduzir os nossos alunos à consistência última das coisas».
A partir de 2008, data da inauguração da escola, nasceram outros três institutos, espalhadas um pouco por todo o distrito, sob o mote small is beautiful (pequeno é bonito), porque optam sempre pela construção de escolas pequenas, não mais de 150 alunos, favorecendo uma capilaridade no território. «Aquela primeira experiência pôde multiplicar-se graças também aos muitos alunos que, uma vez formados, pela experiência feita, desejaram continuar envolvendo-se como professores», explica padre Alberto. Como aconteceu com Sagn: muito bom em Física, queria continuar a estudá-la na universidade, mas depois preferiu tentar o exame de admissão na escola pública para professores. Passou e, enquanto estudava, começou a dar uma ajuda. «Na hora do almoço corria até nós e recolhia o caderno dos alunos para corrigir os exercícios, estando disponível para responder às suas perguntas». Rapidamente se tornou o monitor para as disciplinas científicas, antes de ser contratado. Também Chuan, ex-estudante, agora ensina Informática. Ele, como muitos professores, pôde ler o Educar é um risco de Giussani, graças à tradução em língua khmer preparada pelo padre Alberto em 2010. «O desejo de publicar o livro em cambojano foi para mim um ato de gratidão. Além de se tornar um instrumento fundamental para a formação do corpo docente e uma mina de pretextos para entrar em diálogo com as nossas famílias». Repetiu com frequência às mães e aos pais dos seus alunos as palavras de Dom Giussani que também nesta latitude se entendem muito bem: «De nada valeria ter dado a vida, sem ajudar incansavelmente os filhos a reconhecer o sentido total dela».
O trabalho de tradução foi longo e, às vezes, difícil. Padre Alberto pediu ajuda a Hong, um estudante da hospedaria de Prey Veng. Tinha-o encontrado, no início da sua missão, durante uma daquelas suas voltas exploratórias nas aldeias em torno da cidade. Naquele dia as condições na estrada estavam péssimas e o pequeno Hong parou a bicicleta para dar passagem ao padre Alberto, que avançava dentro de um trilho de lama. O olhar da criança enterneceu o do padre, que, desligando a moto, lhe perguntou aonde ia debaixo de toda aquela chuva: «À escola», respondeu, sem acusar o peso daqueles trinta quilômetros diários. Padre Alberto esforçou-se para lhe arranjar um lugar na hospedaria. Sem imaginar que, anos mais tarde, se encontrariam lado a lado a procurar as palavras certas para traduzir o livro de Dom Giussani.
«O cambojano é uma língua muito pragmática; havia conceitos, como por exemplo o de Mistério, para os quais não há um equivalente. Com Hong, procuramos chegar lá por aproximação, rebuscando nas palavras e na nossa experiência. Desta forma, por exemplo, “Mistério” tornou-se algo que existe mas não se vê, como um molho de chaves que não se encontra», explica padre Alberto. Mas às vezes as explicações não conseguem convencer Hong. Ficaram atolados durante horas na frase: «A consistência da nossa vida é Ele». Padre Alberto, cansado por todas as tentativas, a um certo ponto tomou entre os dedos a toalha da mesa em que estavam trabalhando e lhe disse: «Hong, tocando esta toalha eu intuo a trama do tecido, se é de algodão ou de náilon. Se eu toco a sua mão, do mesmo modo, intuo de que você é feito. Você é feito de Deus». Naquele momento, Hong entendeu.
Hoje as escolas do padre Alberto gozam de certo renome. As fotos de alguns alunos, graduados com nota máxima e premiados pelo primeiro-ministro Hu Sen, rodaram as redes sociais. Muitos, para simplificar, rebatizaram-na “a escola de Jesus”. Padre Alberto sorri com a ideia. E relembra o quanto foi difícil, no início da aventura, encontrar alunos dispostos a inscrever-se, porque temiam que sua adesão fosse o prelúdio de uma obra de proselitismo. «Pelo contrário, apostei só no “perfume” de um ambiente, feito do “eu” do estudante e do “nós” da escola, irredutíveis um ao outro, mas que se promovem reciprocamente e dentro dos quais a educação acontece». Ele não tem nem fórmulas nem procedimentos a entregar a quem tomou as rédeas da gestão das várias escolas. «Devemos só oferecer lugares, nem que seja só uma folha de papel e uma gota de tinta, que cultivem o desejo de alguma coisa mais profunda. Através das várias matérias, podemos fazer pressentir que há um segredo por detrás de cada coisa visível. A escola é isto: um ambiente com janelas e portas escancaradas».
Ele entende isso com uma clareza solar quando visita as turmas mais novas. As crianças do infantil que correm para ele, como se fosse um irmão ou um pai, fazem-no pressentir a vertigem da sua responsabilidade. «São como muitas perguntas à espera de uma resposta. Pedem-me implicitamente o sentido da vida, do amor, do ser amigos, do tempo e da dor. E eu não quero feri-los. Sinto que mentiria recorrendo a discursos cômodos sobre os valores. Então recomendo às professoras que respondam a essas perguntas devagarinho, com sua presença, com suas aulas bem preparadas, com as salas de aula arrumadas». Depois acrescenta sempre: «Mas só Deus pode responder a essas perguntas. Só Deus é digno da sua liberdade. Mais ninguém. Essas crianças merecem Deus, nada menos».#100Testemunhos