O discurso de Macron: «Os dons que esperam de vocês»
Algumas passagens do discurso do presidente Emmanuel Macron na Conferência Episcopal Francesa. Collège des Bernardins, 9 de abril de 2018 (de Passos julho/2018)Para nos encontrarmos aqui, nesta tarde, Monsenhor, nós, o senhor e eu, tivemos que enfrentar os céticos de cada lado. E se nós o fizemos é porque, sem dúvida, compartilhamos a sensação confusa de que a relação entre a Igreja e o Estado se encontra deteriorada, e tanto aos senhores como a mim, interessa recuperá-la. Este objetivo pode ser alcançado apenas através de um diálogo na verdade. Esse diálogo é indispensável, e se eu tivesse que resumir o meu ponto de vista, eu diria que uma Igreja que pensasse em se desinteressar pelas questões temporais não seria capaz de centrar o coração da sua vocação. E que um Presidente da República que pretendesse se desinteressar pela Igreja e pelos católicos faltaria com o seu dever.
O exemplo do Coronel Beltrame ilustra esse ponto de vista de maneira que eu considero bem clara [Beltrame é um policial francês que se ofereceu para trocar de lugar com uma refém durante um atentado no Sul da França, em março de 2018, sendo gravemente ferido e em seguida faleceu]. Muitos buscaram identificar as fontes secretas do seu gesto heroico: alguns viram o seu sacrifício ancorado na sua vocação militar; outros viram a manifestação de uma fidelidade republicana alimentada pelo seu percurso; outros ainda, de maneira especial sua mulher, interpretaram o seu ato como a tradução de sua ardente fé católica, pronta para a prova suprema da morte. Essas dimensões se encontram de tal maneira entrelaçadas, que separá-las seria impossível e inútil, porque esta conduta heroica é a verdade de um homem em toda a sua complexidade. Mas neste país, que não esconde sua desconfiança para com as religiões, eu não ouvi uma única voz elevar-se para desafiar essa evidência, gravada no coração de nossa imaginação coletiva: quando chega a hora da maior intensidade, quando a provação leva a reunir todas as forças e colocá-las a serviço da França, então a parte de cidadão e a parte de católico ardem, como no verdadeiro crente, da mesma chama.
Estou convencido de que os laços mais indestrutíveis entre a nação francesa e o catolicismo foram forjados no momento em que é revelado o verdadeiro valor de homens e mulheres. (...) Se os católicos quiseram servir e engrandecer a França, se eles aceitaram morrer (...) foi porque eles estavam animados pela fé em Deus e pela sua prática religiosa. Alguns poderão considerar que tais proposições são infrações à laicidade. (...) Considero que a laicidade não tem a função de negar o espiritual em nome do temporal, nem de arrancar de nossas sociedades a parte sagrada que nutre tantos de nossos concidadãos.
Eu, como Chefe de Estado, devo garantir a liberdade de crer e de não crer, mas eu não sou nem o inventor nem o promotor de uma religião estatal que substitua a transcendência divina por um credo republicano. Se eu ficasse cego com relação à dimensão espiritual que os católicos investem em sua vida moral, intelectual, familiar, profissional e social, isto seria me condenar a ter apenas uma visão parcial da França; significaria ignorar o país, sua história, seus cidadãos; e com a indiferença, eu anularia a minha missão. E essa mesma indiferença não deve existir em relação a nenhuma das religiões que hoje habitam o nosso país. E é porque não sou indiferente que percebo o quanto o caminho que o Estado e a Igreja compartilharam por tanto tempo está hoje repleto de incompreensões mútuas e de desconfianças.
Esta certamente não é a primeira vez em nossa história. (...) Mas hoje, neste momento de grande fragilidade social, quando o próprio tecido da nação corre o risco de ser dilacerado, considero como parte da minha responsabilidade não deixar que a confiança dos católicos com relação à política e aos políticos se corroa. (...) E eu não posso deixar esse desapontamento piorar. Assim, por um lado, uma parte da classe política, sem dúvida, exagerou ao atacar os católicos, por razões que, com frequência, eram claramente eleitorais. (...) Criamos uma visão comunitária em contradição com a diversidade e a vitalidade da Igreja da França (...). Por outro lado, encontramos todas as razões para não ouvir os católicos, relegando-os, por suspeita e cálculo, ao posto de minoria militante capaz de minar a unanimidade republicana.
Por razões ao mesmo tempo biográficas, pessoais e intelectuais, estou adquirindo uma ideia mais elevada dos católicos. E não me parece saudável nem justo que a política esteja empenhada com tanta determinação a instrumentalizá-los e ignorá-los, enquanto, a fim de que as coisas sigam na direção certa, precisamos de um diálogo e de uma contribuição de um outro nível para o entendimento do nosso tempo e para a ação (...).
As suas perguntas, Monsenhor, (...) interessam a toda a França, não porque elas sejam especificamente católicas, mas porque falam sobre uma ideia de homem, sobre o seu destino, sua vocação, e estão no centro do nosso futuro imediato. Porque pretendem oferecer significado e apoio àqueles que precisam.
Estou aqui porque pretendo fazer justiça a estas perguntas. E pedir solenemente a vocês que não se sintam às margens da República, mas que reencontrem o gosto e o sal do papel que vocês sempre interpretaram. Eu sei que sobre as raízes cristãs da Europa se discutiu como sobre o sexo dos anjos. (...) Mas o que importa é a seiva. E estou convencido de que a seiva católica deve contribuir repetidas vezes para a vida de nossa nação. (...) A República espera muito de vocês. Em particular, se me permitem, ela está esperando que vocês tragam três dons: a sua sabedoria, o seu compromisso, a sua liberdade.
A urgência de nossa política contemporânea é reencontrar sua raiz na questão do homem, ou, para falar com Mounier, da pessoa. Nós não podemos mais, no mundo como ele está, nos satisfazer com um progresso econômico ou científico que não se questiona acerca do impacto sobre a humanidade e sobre o mundo. (...) Nós temos necessidade de dar uma direção à nossa ação, e essa direção é o homem. Mas não é possível avançar nesse caminho sem cruzar o caminho do catolicismo, que durante séculos tem escavado pacientemente essas perguntas. Ele escava em seu próprio questionamento e no diálogo com outras religiões. A estas interrogações confere a forma de uma arquitetura, uma pintura, uma filosofia, uma literatura, todas tentando, de mil maneiras, expressar a natureza humana e o sentido da vida. “Venerável porque ela conhecia bem o homem”, diz Pascal da religião cristã. E, certamente, também outras religiões, outras filosofias escavaram o mistério do homem. Mas a secularização não pode eliminar a longa tradição cristã.
No centro deste questionamento do sentido da vida, do lugar que reservamos para a pessoa, do modo como lhe damos a sua dignidade, o senhor, Monsenhor, colocou dois sujeitos do nosso tempo: a bioética e a questão dos imigrantes. (...) Esses dois sujeitos mobilizam nossa parte mais humana e nossa própria concepção do humano, e essa coerência é essencial para todos.
Sobre os imigrantes, somos às vezes reprovados por não sermos suficientemente generosos e acolhedores, por permitir que sejam detidos ou por recusar os menores desacompanhados. Somos até acusados de permitir que a violência policial floresça. Mas, para dizer a verdade, o que estamos fazendo? Estamos tentando urgentemente acabar com as situações que herdamos e estamos desenvolvendo por causa da ausência de regras, de sua má aplicação ou de sua má qualidade. (...) Estamos tentando a conciliação entre a lei e a humanidade. (...)
Sobre a bioética, às vezes se tem a impressão de estar diante de uma agenda oculta, para saber de antemão os resultados de um debate que abrirá novas possibilidades na procriação assistida, abrindo a porta para práticas que inevitavelmente serão impostas mais tarde, como a gestação por terceiros. Alguns dizem que a introdução nestes debates de representantes da Igreja Católica, assim como eu me comprometi desde o início do meu mandato, é um engodo destinado a diluir a palavra da Igreja ou levá-la como refém. (...) Estou convencido de que não estamos aqui diante de um problema simples que poderia ser decidido por uma única lei, mas às vezes nos deparamos com debates morais, éticos e profundos que afetam o mais íntimo de cada um de nós. (...)
Também somos confrontados com uma sociedade em que as formas de família estão mudando radicalmente, na qual a situação da criança às vezes se confunde e onde nossos concidadãos sonham em fundar células familiares de estilo tradicional a partir de padrões familiares de minorias. (...) A Igreja acompanha incansavelmente essas situações delicadas e tenta conciliar esses princípios com o real. (...)
Assim, os políticos e a Igreja compartilham esta missão de colocar as mãos no barro do real, para se confrontar, todos os dias, com aquilo que o temporal tem, ouso dizer, de mais temporal. E frequentemente é difícil, complicado, exigente e imperfeito. As soluções não chegam sozinhas, elas surgem da articulação entre essa realidade e um pensamento, um sistema de valor, uma concepção de mundo. Tais soluções muitas vezes são escolha do mau menor, sempre precária e também exigente e difícil.