Giordano, de Rimini, visita a Creche Cantinho da Natureza, no Rio de Janeiro.

Obras gêmeas. Abertura a um diálogo

A Companhia das Obras, através do projeto Obras Gêmeas, abriu o diálogo de obras brasileiras com outras da Itália. Depois de um ano de trabalho à distância, em setembro passado se reuniram num evento que antecedeu o Fórum Nacional da CdO em São Paulo
Adriano Gaved

Um tiroteio. O céu de Brasília e o mar da Bahia. A missão da empresa e um vídeo de uma ONG italiana. Ler e entender um balanço. Favelas.
Não são coisas que se encontram normalmente em uma atividade de formação, mas foram alguns dos mil ingredientes do projeto Obras Gêmeas, um diálogo de obras brasileiras com outras da Itália. Estamos falando de um projeto de colaboração que durou todo o ano de 2018, entre a CdO Brasil e a CdO Obras Sociais da Itália.

Desde o início do ano foram compartilhando, devagar mas sistematicamente, os interesses e os problemas que descobriam ter em comum: captação de recursos, comunicação, formação dos colaboradores... simples, mas não obvio, uma vez que, sejam obras sociais ou empresas com fins lucrativos, o grande inimigo de uma organização é fechar-se em si mesma. “A palavra principal foi abertura – seja o abrir-se pessoal, o abrir-se do meu ‘eu’, como também o fato de abrirmos a possibilidade do meu trabalho, abrir a porta da obra para poder dialogar com outros”, diz Patrícia Almeida, diretora de uma creche em Samambaia (Brasília). “Tivemos que arriscar juntos no método que foi proposto, porque imagina que estranho: você vai falar de um problema da sua obra para um outro que está distante e que você nem conhece. Cada mês fazíamos um encontro via Skype. O primeiro contato foi um pouco difícil, porque você tenta se apresentar, não sabe como o outro vai te compreender (tem sempre o desafio da língua, da cultura, etc.), mas ao longo do processo tudo foi muito interessante para mim, porque você tem que dialogar com o outro, você tem que pensar sobre aquilo que você está falando, acolher o que o outro está falando e pensar: como isso que ele está trazendo como experiência dele pode se aplicar ao meu trabalho?”, continua Patrícia.

Aula no CEDUC, em Belo Horizonte.

Depois das conexões e ao final de quase um ano de interação, as pessoas das obras italianas vieram ao Brasil visitar as suas gêmeas brasileiras. Para Patrícia foi uma experiência única: “Isso gerou um crescimento mútuo, seja para a obra italiana – eu vi como foi importante também para eles, seja para nós como crescimento. Eu digo particularmente que ver minha Obra Gêmea chegar à creche, o meu amigo Franco vir à creche e olhar o meu trabalho e ficar impressionado, fascinado, me ajudou também a pensar: o que ele está vendo, que eu às vezes não vejo? E também fazer um percurso, agora, da identidade da obra. O que fascinou a ele? ”

Hilária mora em Milão e trabalha em uma obra com 250 funcionários que administra 40 centros para a infância. A vinda ao Brasil marcou profundamente seu caminho: “Já faz um tempo que eu não viajo, que não encontro outras obras. Estou fechada numa sala, gerenciando emergências. Em Salvador, o que me impressionou foi a pobreza da favela e a beleza das creches. É uma esperança contra qualquer desespero do mundo. Pensei numa pessoa que trabalha comigo em um centro que nós temos no hospital, onde as crianças morrem de câncer todo dia. Essa pessoa me disse: ‘Por que nós estamos presentes onde tem toda essa desesperança?’. Decidi então que vou mostrar os vídeos que eu fiz, principalmente o de uma festa na creche onde as crianças dançavam como se não tivesse tiroteios lá fora. Acho que vai trazer esperança, não só para as pessoas com quem nós trabalhamos e acolhemos, mas também para as pessoas que trabalham com a gente”.

A fase final foram dois dias de formação em São Paulo sobre organização, comunicação interna e externa, gestão econômica. Palestras, apresentações de casos, conversas. Palavras que, contrariamente ao que acontece normalmente, mudaram os presentes: “O que me marcou muito” – diz Magali, de Salvador – “foi uma frase de Mauro (Battuello, de Turim, na Itália): ‘Se temos certeza daquilo que somos, não temos por que ter medo de dialogar com qualquer um’. E é verdade. As distâncias, o idioma e tantas outras coisas não foram impedimento para podermos dialogar durante este ano inteiro. Quando a gente acredita muito no que faz é possível dialogar com qualquer pessoa, a qualquer distância, em qualquer condição”.

Creche Menino Deus, em São Paulo.

E em tudo isso, qual foi o papel da CdO? “Foi a casa comum, que nós construímos juntos, não uma organização que chega do alto”, responde Monica Poletto, a responsável da CdO Obras Sociais. “Isso gerou descobertas: saímos com mais perguntas do que quando entramos. A realidade desperta nosso ‘eu’ se somos capaz de fazer as perguntas certas, não colando respostas vindas do alto. Nós aprendemos uma abertura para aprender, que facilita a colocar-se em jogo. Nós descobrimos que o mundo é grande, que os problemas são comuns. Isso ajuda muito na superação daquele câncer que é a autorreferencialidade, que nos mata, mata as nossas obras e as pessoas que nós atendemos. Nós aprendemos coisas novas, tendo inspiração, ideias dos outros. Nós voltamos cheios de ideias. E depois também estamos nos dando conta de que aprendemos a criar formas novas. Sempre me impressionou que o cristianismo no mundo fez coisas que não existiam, por isso temos que aprender de todos, consultar a todos, mas criticamente. Justamente porque esperamos que da nossa experiência, que se coloca humildemente, criticamente, na realidade, possam nascer – e nós já vemos – formas novas de vida”.

Bernhard Scholz, o presidente internacional da CdO, participou dos dois dias de formação. “Foi realmente uma amizade vivida, no sentido de uma amizade que nos envolve e provoca até o fundo. Vi experiências doloridas, porém o que prevalece no final era sempre uma beleza. Não existe nada de mais bonito do que ver pessoas livres que se expressam, mesmo na dramaticidade, no limite da própria vida, diante do que acontece. O olhar de uma pessoa livre é uma coisa que não tem preço”.

Depois de algumas semanas, de volta ao trabalho, Maria Pia Morrone, que gerencia uma casa de acolhida para menores em uma das regiões mais pobres da Itália, conta: “Foi uma experiência que me impactou tanto no nível humano quanto profissional. Através desses rostos o Senhor fez meu coração começar de novo a bater e eu estava feliz como 30 anos atrás, quando conheci pela primeira vez o Movimento. Agora, voltando para casa, comecei a fazer Escola de Comunidade com os meus colegas que me haviam pedido há um ano. Eu abracei a tudo e a todos, conseguindo até olhar para as minhas feridas, com um abraço brasileiro... ao ritmo do samba”.