«Tenho os instrumentos para ver que a realidade é boa»
Logo após a festa pelos 50 anos, a descoberta inesperada de uma doença silenciosa que não dava sinais. Diante disso, uma certeza que nasce da fé: «Estou com uma doença a ser tratada. Mas eu não sou a doença, e ela não pode passar a determinar meus dias»Ainda impactada pelo belo testemunho da Jone Carrascosa que foi publicado na Revista Passos e também pelo vídeo de seu testemunho no Dia de Início de Ano, disponível no YouTube, vou contar um pouco sobre a experiência que estou vivendo neste ano, mesmo que não possa comparar com a dificuldade que a Jone passou na sua longa internação no CTI.
O ano iniciou com uma bela comemoração dos meus 50 anos, a notícia de que meu segundo filho com 20 anos decidiu se crismar e escolheu como padrinho nosso querido amigo padre Giuliano Renzi, e também com a compra de um novo apartamento para a família. Em março, na semana em que assinamos a escritura, recebi o resultado de uma biopsia de um exame de rotina (minha primeira endoscopia, sem nenhum sintoma) com um adenocarcinoma no esôfago, e entrei em um “mundo paralelo” que é ser um paciente oncológico.
Intuí desde o início que isso não podia me determinar, aprendi sempre no Movimento que devemos olhar a realidade segundo a totalidade dos seus fatores (e é uma graça estarmos retomando isso tudo na Escola de Comunidade). Eu sou mãe, esposa, filha, amiga, trabalhadora e estou com uma doença a ser tratada. Mas eu não sou a doença, ou ela não pode passar a determinar meus dias. Como disse Jone no seu testemunho, «Não queria que aquela circunstância fosse um parêntese na minha vida».
Após uma diversidade de exames, o primeiro dia da químio e rádio coincidiu com os Exercícios da Fraternidade no Brasil, 5 de maio. Na «audácia ingênua que nos caracteriza», perguntei à minha oncologista se poderia participar, ela analisou tecnicamente e disse que sim, então fui direto da clínica para os Exercícios. Participo deles há quase 30 anos, eu teria total justificativa para assistir online, mas queria estar perto das pessoas que fazem parte dessa história que me ajuda a olhar e julgar a realidade de outra forma. Ouvir padre Lepori falar da «nuvem de testemunhas» em que estamos imersos me dava a certeza de que eu tinha os instrumentos para viver essa circunstância de uma forma serena, tendo a certeza de que a realidade é boa, de que tudo concorre para um Destino bom, independentemente do resultado objetivo do tratamento e da cirurgia.
A quimioterapia e a rádio passaram relativamente bem, não precisei me afastar do meu trabalho nem de todas as minhas atividades. Conversando sobre isso com a médica, ela me olhou e disse que foi porque eu fui ao Retiro no primeiro dia. Isso deve ter marcado a história dela, pois ela tem tantos pacientes e se lembrou disso quase dois meses depois.
Fiz uma cirurgia com nove horas de duração no final de agosto e fiquei 27 dias internada. No hospital você não pode fazer nada sozinha, como ir ao banheiro ou andar, está sempre acompanhada pelos técnicos de enfermagem e fisioterapeutas. Fiquei 24 dias sem ingerir nem água pela boca, mas não foram dias de desespero. As palavras de Jone me ajudaram a descrever o que experimentei. Ela disse: «A minha dignidade pertencia a Ele, ao Senhor», e lembrou a frase de Giussani: «As circunstâncias pelas quais o Senhor nos faz passar são um fator essencial da nossa vocação». A gente não sabe por que está com a doença, não entende o porquê de estar ali. Não adianta se perguntar, reclamar. O que podemos fazer é oferecer, dar-nos conta de que o Senhor nos quer ali por algum motivo e que é por um bem. O que será disso para nós ou para um médico que passou comigo uns minutos, não sabemos… Pode ser uma conversão, uma graça alcançada. E então toda a dor valerá à pena. Jone disse que «um dos sinais era estar em paz, não uma paz psicológica, mas uma satisfação afetiva porque a sua vida é sustentada por um Outro».
Eu estava ali, paralisada, mas estava viva e ativa porque sabia que tudo tinha um significado. O que me foi dado foi muito mais do que o que sofri. E o bonito é que não vivi aquilo tudo sozinha: meu marido, minha família, meus amigos do Movimento sempre estiveram presentes ali. Uma grande graça foi ter Dom Filippo Santoro, meu pai na fé, que estava no Brasil por poucos dias e pôde me fazer duas visitas. Esse é um dos muitos exemplos de quantas graças recebi neste tempo.
LEIA TAMBÉM - «Me ajude a lembrar deste dia»
Um ponto que me marcou no início do tratamento foi uma frase que ouvi no trabalho: «É… acho que ainda não caiu a ficha para a Adriana». Talvez esperassem que eu chegasse triste no trabalho, não cumprisse minhas atividades, ficasse falando o tempo todo da doença. Realmente deve ser um desespero receber uma notícia assim para quem não tem fé. Outra amiga me disse que às vezes recebemos umas rasteiras da vida. Para mim, ouvir isso tudo aumenta mais a gratidão por ter feito esse encontro e me faz querer viver com mais seriedade todos os gestos que o Movimento me propõe: a Escola de Comunidade, a Fraternidade, a organização das férias, a missa, a oração, a caritativa… Já temos todos os instrumentos para enfrentar a realidade. E acabamos sendo testemunhos numa hora em que realmente nem pensamos nisso – muitos no trabalho falam da forma “serena e em paz” como estou enfrentando o tratamento.
E para muitos deles eu dou o “nome e sobrenome” do que me ajuda, falo que não adiantaria nada viver trinta anos de uma experiência de fé, na Igreja, se não pudesse me ajudar neste momento. Vejo que muitos ficam curiosos e até mesmo desejosos de ter algo que os ajude a enfrentar a realidade.
Para finalizar, há um trecho de uma música do Movimento que eu amo, La strada. Sempre lembramos do refrão: «È bella la strada per chi cammina…» mas tem um trecho ao qual nunca dei muita atenção, mas que começou a me acompanhar neste tempo: «Porto con me le mie canzoni ed una storia cominciata», trago comigo as minhas canções e uma história começada. Sim! Temos uma história que nos ajuda a enfrentar tudo, momentos belos e também de dor.