Claire Ly

A pedra removida do meu sepulcro

Sobrevivente dos campos de trabalho forçado do regime de Pol Pot, a ex-intelectual budista Claire Ly conta-nos a sua conversão ao catolicismo. Os laços com um Deus que irrompeu no silêncio da prisão (de Passos, abril 2013)
Alessandra Stoppa

“Olhe para mim. Fui corajosa. Tem que me aplaudir”. De noite, na luz fraca do dormitório, fala sempre e só com ele. O seu inimigo. Deu-lhe até um nome: “o deus dos ocidentais”. Não existe, é unicamente o objeto mental para se concentrar: como séria intelectual budista, escolheu-o para descarregar a raiva e a angústia. Para não morrer de dor. E para não trair a coerência da ,via do meio que conduz ao nirvana. “No budismo não se podem experimentar sentimentos negativos. E Ele era o único a quem podia dizer o que estava vivendo”. Prisioneira da violência de um killing field, os campos de trabalhos forçados criados pelo regime de Pol Pot para realizar a utopia comunista.
Era o ano de 1977, Claire Ly havia sido deportada há dois anos. Desde o dia 17 de abril de 1975, o dia em que viu os Khmer Vermelhos, guerrilheiros da revolução, fuzilarem o pai, o marido, dois irmãos e o sogro. Nem lhe deram tempo para os acariciar, teve de começar logo a caminhar para os campos, com um filho de três anos nas mãos, uma filha na barriga e pistola apontada para a cabeça. Junto a milhares de outras mulheres, burguesas como ela, habituadas à vida na cidade e agora obrigadas a trabalhar nos campos pantanosos. Despertar às quatro, em fila indiana para não falar: todo o dia vergadas sobre o arroz e a água, a noite passada em cursos de reeducação política. Se se enganam na resposta, uma pancada na nuca. Muitas acabam por adoecer. A Claire não. Então, desafia aquele Deus imaginário: “Viste? Sou uma mulher forte: eu era uma intelectual e agora eis-me camponesa. Eu sou budista. Portanto, vou esperar. Até te ouvir aplaudir”.
E Ele? “Ele nunca aplaudiu!”. Hoje, solta uma gargalhada de criança, quarenta e cinco anos depois: “Mas, naquele silêncio, eu soube que Ele estava lá”.

“Eu existo!”. Dá aulas no Instituto de Ciências e Teologia das Religiões de Marselha, vive na França desde 1980, tendo sobrevivido a quatro anos de regime e de cárcere que exterminaram dois milhões de cambojanos. Quatro anos de homicídios sumários e valas comuns e, para ela, de diálogo com um Deus que era o culpado perfeito: “Porque o marxismo nasceu no Ocidente e porque eu tinha necessidade de uma coisa muito grande contra quem desabafar. Estavam roubando a minha identidade”. Arrancada aos seus amores, despojada de tudo o que era, mesmo no aspecto – a farda militar, o cabelo rapado –, forçada a amamentar os bebês das outras por serem “filhas do regime” e a nem pronunciar o nome dos seus: só filho e filha. Mas naquele ato de loucura, que ia aniquilando todo e qualquer traço humano, ela não desistia de ter uma necessidade: “Tinha vontade de gritar: eu existo!”. Naquele turbilhão de doutrinamento e morte, ela tinha a pretensão de existir. Não conseguia aceitar a lógica que justificava o que estava acontecendo, o karma, segundo o qual o mal é a expiação das culpas de vidas passadas: “Não era possível que quem eu amava tivesse morrido pelos seus pecados”.
É assim que começou a gritar ao “Deus dos ocidentais”: “Durante dois anos insultei-O, sem me preocupar com a Sua existência. Mas isto criou um espaço entre mim e Ele”. Um espaço “necessário”, diz, “tão diferente da divindade que engloba tudo”. Relata o que a partir dali começou como um grande mistério, de amor. “É assim. Num amor você sempre agradece por ser amada, e deixa ao outro o poder de lhe ferir. Eu comecei até a deixar Deus me machucar, a não responder. Sem o saber, de repente, ficamos livres os dois.” O que era essa relação e essa liberdade, só veio a entender no tempo.
Antes de explodir o inferno, a Claire vivia em Phnom Penh, a capital. “Depois de ter dado aulas de Filosofia, tornei-me chefe de departamento no Ministério da Educação.” É uma mulher delicada. Viveu por dentro a brutalidade mais feroz mas não tem sequer vestígios dela. Não lhe pertenceu. “A ideologia tinha também violentado pela raiz o budismo theravada, e massacrado os mestres espirituais.” Tinha moldado os carrascos e as vítimas no seio do mesmo povo, do mesmo sangue, da mesma religião. A sua terra estava sem alma. E ela decidiu partir logo com os dois filhos. E com uma “paz interior”, que a acompanhara em tudo. “Mas não tinha percebido ainda que não era minha.”

Dois motivos. Tomou a estrada dos refugiados rumo à Tailândia e dali, em 1980, emigrou para a França. Uma das primeiras coisas com que se deparou, nos novos estudos, foi uma encíclica de João Paulo II, a Dives in Misericordia. “Eu a li e, como filósofa, queria verificar a sua coerência. Assim, procurei um padre que tinha me ajudado logo que cheguei e pedi-lhe uma cópia do Evangelho. Comecei a lê-lo”. A figura de Jesus fascinou-a logo. “Aquele homem sofria, chorava. Era como eu. Conhecia a minha experiência. Buda é um homem, mas tão perfeito que não tem nada de humano.” No entanto, Jesus continuava a ser apenas um mestre, e ela uma mulher que O escutava. “Foi o convívio com Ele, com a Sua humanidade, que me levou a crer.” Um dia, participando de uma missa, ouviu claramente que Cristo lhe dizia: “Há já tempo que caminho contigo, mas você nã quis me reconhecer”. “Ali, dei-me conta de que aquela paz me tinha sido concedida por Outro. E decidi segui-Lo.” Recebeu o Batismo no dia 24 de abril de 1983, aos trinta e sete anos.
Diz que o cristianismo a seduziu por dois motivos. “É um Deus que entra na minha vida.” E, além disso, guarda a liberdade. “É a minha grandeza humana: a minha resposta livre e razoável ao apelo de Cristo. Livre inclusive de não fazer a vontade de Deus. Como Ele o é de não fazer a minha...”, sorri. Emociona-se ao falar do paradoxo desta relação. É uma “ruptura”, que não a quebrou. E uma opção “razoável” de aceitar uma loucura: “Porque a Ressurreição é uma loucura. Mas sem ela a minha fé é vã. É uma loucura que me faz usar todo o meu coração e toda a minha mente”.
Uma coisa ajuda a certeza: “a minha ferida”. Pensa em tudo o que viveu, nas imagens do filme Os Gritos do Silêncio, de Roland Joffé, que mostra no computador. “Eu fui ferida por um amor.” Não está falando daquilo em que você está pensando: “A minha fé é uma certeza ferida. Não está fechada, completa. Não. Abre todo o meu ser a Deus, que me precede sempre e não possuo”. Tenho fé. “Não é um bem que possuamos!”, ri. Depois fica novamente séria: “É a pedra removida do meu sepulcro”. Um amor que chegou a escrutiná-la na sua raiva, “a minha verdadeira prisão”, e a inverter a coerência budista, “porque me permite amar-me tal como sou, tão imperfeita, tão fragmentada, no mais profundo de mim. E me faz amar o mundo tal como é, não como eu queria que fosse”.
Encontrou também palavras para falar do clamor que tinha, aquela pretensão de existir enquanto tudo era negado: “O si mesmo não é uma ilusão. Eu existo realmente. Não sou uma partícula do todo metafísico: sou única, gravada para sempre no coração do meu Deus. Por isso, sou íntegra, e não redutível ao que faço”. Pensamos outra vez na identidade que lhe foi roubada. Não lhe foi restituída pelo tempo ou pelos tribunais internacionais: “A cada dia, só existo plenamente quando estou em relação com Deus. A minha identidade é um devir”.

Não é uma ideia. Voltou pela primeira vez ao Camboja em 2003. “Desejo testemunhar a esperança naquela cultura esculpida pelo budismo que habita em mim.” Como ela o fora. “A conversão foi uma ruptura total para mim, mas não um salto no vazio. É uma estrada: da humanidade de Cristo à Sua divindade. Como budista, acreditei no mistério da Encarnação com toda a minha razão. Embora não sendo um ato comum do pensamento, um raciocínio.” O mal – “o mal verdadeiro”, especifica – é algo que anula todo o discurso intelectual: “E a resposta, a fé, não é uma ideia, é experimentar em mim uma força de vida que não é minha”.
Fala sempre da fé como um caminho. “Não é uma chuva torrencial, que dura umas horas. É um fio de água, que penetra as fendas do meu deserto. Uma plenitude mesmo na falta.” No budismo, a felicidade é um jato de água: as mãos tentam agarrá-lo, mas escorre por entre os dedos e, caindo na terra, converte-se em lama. “É verdade”, diz a Claire: “Não se agarra. Mas no cristianismo a água não cessa de jorrar. E a aventura é não fechar as mãos. Mantê-las abertas. Seguimos Jesus que abriu o caminho, e é o nosso companheiro de luta na vida. Porque a estrada não tem fim. E um coração ardente retoma-a continuamente. Não pode senão retomá-la, sempre”.