O psicanalista Massimo Recalcati

A falta que é vida

Não é uma “mutilação”, como anseia o niilismo, mas “alimento do desejo” e “abertura ao Outro”. O psicanalista Massimo Recalcati, confrontado com o tema do próximo Meeting, explica por que tem a ver com o amor de mãe... (de Tracce giugno)
Giuseppe Frangi

“A angústia contemporânea não surge da falta mas de um muito cheio, da sensação de estarmos encarcerados num sistema que nos envolve e nos comprime e não parece permitir – nem em imaginação – outro mundo, outro horizonte...”.
Massimo Recalcati, psicanalista, colunista do jornal italiano La Repubblica, investigador da condição do homem contemporâneo gosta de virar do avesso os lugares comuns: a “falta” não é um “menos” mas um “mais” em potência. Porque é justamente a percepção de uma falta que põe em movimento o desejo e, com o desejo, todo o humano... “Lacan afirmava que a única verdadeira culpa do homem é enganar o seu próprio desejo”, explica: “A clínica psicanalítica confirma que a infelicidade está muitas vezes ligada a que a nossa vida não é coerente com aquilo que desejamos”.
Recalcati acaba de publicar um livro, que é já um bestseller, em que pela primeira vez se aventura na pesquisa sobre a figura da mãe (Le Mani della Madre, Ed. Feltrinelli). Um livro que toca um tema fascinante, hoje refém de muitos esquematismos ideológicos de toda a sorte. No livro, o tema da “falta” assume um lugar central na reflexão em torno à experiência da maternidade. “A mãe é atravessada pela falta, não a esconde, não a oculta, não a remove, mas doa-a”, escreve Recalcati. “Doar a própria falta - a própria insuficiência e a própria vulnerabilidade – tem o mesmo valor inestimável do oferecer as suas mãos e o seu rosto. Trata-se, para Lacan, da definição mais alta do amor: amar é dar ao Outro aquilo que não se tem”. A falta é o tema do próximo Meeting de Rimini, ao qual Recalcati, embora quisesse, não poderá participar por ter outros compromissos.

Como título do Meeting temos um verso de Mario Luzi: “De que é falta esta falta, coração, que num repente dela está cheio?”. Em que sentido, na sua opinião, a falta pode ser algo que preenche o coração do homem?
A falta não é aflição, pena, mutilação da vida. Esta é apenas uma representação niilista. Não é isso que me interessa. A psicanálise põe em evidência que a falta é geradora, porque constitui o alimento vital do nosso desejo, que não é só pranto nostálgico por uma plenitude inalcançável, mas uma potência, uma força, uma energia transformadora que transforma a falta em condição de abertura ao Outro rica de vida e de mundo, capaz de cumular, como escreve o poeta, o coração do homem.

A experiência da “falta” é uma experiência difícil de se aceitar atualmente. Há sempre uma pretensão oposta à posse. Como se pode ir abrindo uma fresta? Como levá-la a sério?
Se, por exemplo, se faz referência à experiência da maternidade, a maternidade suficientemente boa não é uma experiência de posse ou de apropriação, não é um reforço do Eu. Ao contrário. Ser mãe é abrir-se radicalmente à vinda do Outro. Neste sentido, a mãe justa – para referir-me ao episódio bíblico das duas mães do juízo do rei Salomão – é a que sabe renunciar à posse do filho para poder salvaguardar a sua vida. Não será este porventura um dos maiores dons da maternidade? Perder o filho que se gerou? Perder o próprio filho, deixá-lo ir, gozar da sua liberdade.

Que relação existe entre a experiência da falta e o desejo?
O desejo manifesta a falta que habita o ser humano, é dela a expressão mais pura. Como acontece aos apaixonados que se reencontram depois de um certo período de separação: não se pergunta ao amado o que foi que nos trouxe, não se aborda com uma pergunta apontada ao haver. A pergunta do amor é sempre a mesma: Você teve saudade de mim? A minha ausência foi para você uma presença?

O senhor escreveu: “É a transcendência do desejo da mãe que torna possível a transcendência do desejo do filho”. O que é esta transcendência do desejo?
O desejo da mãe não é desejo de possuir ou de ter um filho. É antes uma abertura ao filho. A maternidade não é uma experiência de centramento, mas de descentramento.
Se quiséssemos esticar as coisas até um paradoxo, poderíamos dizer que o desejo da mãe não quer ter o filho, mas quer perdê-lo. É a alegria que uma mãe sente ao ver o seu fruto aprender a andar ou a falar, ao vê-lo entrar no mundo. Aquele filho que uma mãe trouxe no seu ventre e alimentou com o seu sangue nunca é dela, nunca é seu filho porque esse filho é sempre outra vida, vida outra, vida não sua, vida desconhecida. Neste sentido a transcendência do desejo da mãe, a sua abertura à vida outra do filho, funda a transcendência do desejo do filho, funda a sua vida como vida livre, como vida não sua.

A propósito de desejo, no seu livro fala de “um desejo que não seja anônimo”. O que é o desejo anônimo?
O cuidado materno é um cuidado que sabe dar lugar ao particular, à vida particular do filho. Não é nunca um cuidado válido para todos, anônimo justamente. É sempre cuidar de um enquanto um, do filho como filho único. Deve-se pôr a nota política do meu livro no sublinhar deste aspecto essencial do cuidado materno: num tempo dominado pelo discurso do capitalista predomina a inércia absoluta, a ausência total de cuidado do particular, a generalização anônima, a despersonalização, a desumanização dos laços sociais. A mim interessam-me sempre os pontos de resistência e de antagonismo a esta deriva niilista do nosso tempo. Insisti recentemente no amor como fator de oposição ao discurso do capitalista. Mas também a lição mais elevada da maternidade, que é saber particularizar os cuidados, se manifesta como ponto de resistência ao conformismo crescente da inércia própria do nosso tempo.

O senhor tinha escrito num artigo no La Repubblica: “O que é que se herda se não se herda um Reino, se não se é filho de Rei? O que conta na herança é a transmissão do desejo de uma geração para a outra. É o modo como os nossos pais souberam viver sobre esta terra tentando dar um sentido à sua existência”. Ser herdeiro quer, portanto, dizer “homem livre”?
Ser filhos, como a palavra de Jesus realça, não é uma condição entre outras, mas define a vida humana no seu traço mais essencial. Somos todos filhos. E como filhos também todos temos a obrigação de ser herdeiros. A humanização da vida tem a ver com a ação, ou melhor, com o movimento de herdar. O que foi que fizemos com o que recebemos do Outro? Não há vida humana sem este movimento subjetivo de retomar aquilo que o Outro de quem procedemos fez de nós mesmos. A liberdade não indica ausência de condicionamentos, nunca é absoluta, mas define precisamente este movimento de retoma singular do destino que o Outro traçou na nuca das nossas vidas.