Um sorriso no Gulag
Foi presa, torturada e mandada para a Sibéria, acusada por ter difundido notícias sobre a Igreja Lituana. Nijole Sadunaite diz: “Também hoje somos chamados a dizer a verdade com a força da nossa debilidade”Os guardas da prisão já não a suportavam. Ela cantava sem parar. Faltava o ar na cela do porão da sede do KGB em Vilnius. E mesmo assim, ela entoava os hinos sagrados que tinha aprendido na infância. Os carrascos batiam à porta pedindo que parasse. Reportaram ao comandante: “Trouxeram-nos um disco long-play e não há maneira de desligá-lo”. É Nijole Sadunaite, 78 anos, que nos conta o episódio. Tem o ar dócil de uma avó, mas a sua paixão pela liberdade e pela verdade nunca se aposentaram, porque, segundo ela: “Também hoje há quem não responda nem a Deus nem aos homens, como os irmãos da KGB”. E essa expressão, “irmãos”, é suficiente para perceber de que massa é feita a senhora Nijole. Uma energia capaz, ainda hoje, de envergonhar os partidos políticos da Lituânia contemporânea.
Permaneceu nove meses na cela de Vilnius. Emagreceu e ficou sem cabelo. Submetiam-na, sem ela saber, a um tratamento de radiações ionizantes, para debilitá-la e induzi-la a confessar. E ela não falou. Nunca traiu os seus amigos. Aqueles meses, conta, “foram os mais bonitos da minha vida, porque nunca tinha sentido Deus tão carnalmente perto”.
Detida no dia 27 de agosto de 1974, processada um ano depois sem testemunhas, num julgamento à portas fechadas, “por ter datilografado o número 11 da revista clandestina Crônica da Igreja católica na Lituânia”. Foi condenada a seis anos de detenção: três num Gulag perto de Saransk, na região do Volga, e três no exílio em Boguchany, na Sibéria. A declaração final da acusada foi ouvida com os juízes olhando para baixo. “Foi reservado para mim um destino glorioso, não apenas para lutar pelos direitos dos homens e pela justiça, mas para ser condenada por eles”, disse Nijole ao tribunal: “Só é infeliz aquele que não ama. Vocês ontem estavam maravilhados com a minha serenidade. Isso mostra como o meu coração arde de amor pelos meus semelhantes, porque só amando é que tudo se torna feliz”.
A sua história é de fato a história de uma mulher feliz, também nos anos do Gulag. Espanta-se com o céu estrelado, fica amiga das companheiras de cela e reza com elas. Do exílio ampara os amigos dissidentes. Coloca em crise os funcionários encarregados da sua reeducação. Libertada, entra na clandestinidade: vive entre Vilnius e Moscou dedicando-se à difusão da Crônica. No ano de 1989, em Santiago de Compostela, João Paulo II pede para encontrá-la durante a Jornada Mundial da Juventude. Depois daquele abraço fica miraculosamente curada da gravíssima anemia contraída na cela de Vilnius, por causa das radiações.
Encontrar-se hoje com Nijole Sadunaite e ouvi-la contar como olha para o mundo, produz o mesmo efeito que naquela época terá produzido sobre os seus algozes. Ficamos desorientados, e também muito seduzidos, por esta fé simples e inabalável.
Como se tornou uma dissidente?
A propaganda soviética nos anos 70 alegava que no nosso país existia liberdade de culto. Dizia-se que se as igrejas fechavam, era porque as pessoas já não as frequentavam. Por causa disso, nasceu a ideia de criar um instrumento para contar o que estava acontecendo para a comunidade cristã. Queríamos enviar ao mundo o nosso SOS.
Sabiam que se arriscavam a ser presos.
Sim, houve muitos processos. Muitas pessoas acabaram em hospitais psiquiátricos. Também houve iniciativas do gênero na Ucrânia e em Moscou. Uma vez, à Crônica da Igreja ortodoxa russa, a KGB fez saber que se aparecesse um novo número, por represália, deteria dez inocentes. Sergheij Kovalev, um conhecido professor que também ajudou a nós, lituanos, decidiu que o indicariam como redator único. Publicaram o seu nome, sobrenome, endereço e número de telefone. Não queriam que pessoas inocentes pagassem por eles.
Como chegaram até a senhora?
Eu escrevia à máquina no apartamento do meu irmão com uma amiga que ia me ditando. Não sabíamos que a vizinha colaborava com a KGB. Tinham aberto um vão na parede, escondido por uma tomada elétrica. Do outro lado, ouvia-se tudo. Durante os interrogatórios os agentes diziam: “Você tem pena de todo mundo, mas a sua vizinha não teve pena de você. Logo a denunciou”.
E o que respondia?
Se a vizinha acreditava mesmo que ao nos denunciar estava a fazer uma coisa boa, porque éramos pessoas que queriam o mal do povo soviético, então fez a coisa certa. Se pelo contrário, tinha se vendido por dinheiro, eu só podia ter pena dela.
Alguma vez lhe perguntou por que fez aquilo?
Quando escrevi as minhas memórias, Um sorriso no lager, contei este episódio sem mencionar o nome. Ela me disse que não era verdade, que não tinha sido ela que me entregou. Mas os catorze agentes da KGB que entraram em minha casa tinham saído do apartamento dela.
O que aconteceu?
Eu e a minha amiga Brone estávamos fazendo uma pausa. Tínhamos acabado de redigir a sexta página do número da Crônica. Irromperam pela sala dizendo: “Todos parados, vamos fotografar tudo”. Ficamos com vontade de rir: “Por que gritam assim? Até parece que estamos escondendo a bomba atômica”. A minha ironia confundiu um pouco a Brone, que à princípio achou que tudo aquilo era uma brincadeira. Depois, nos disseram para ficar encostadas na parede. Eu assegurei que a única coisa que iriam encontrar eram aquelas seis folhas. Enquanto eles procuravam, começamos a rezar o Terço.
Não teve medo?
Que poderiam ter feito comigo? No máximo me mandavam diretamente para os braços de Deus. Uma vez, durante um interrogatório, puseram à minha frente um frasco com veneno. Respondi: “Muito obrigada! Sou uma pecadora, e assim fazem com que eu vá direto para o Paraíso. Serei eternamente grata a vocês”. Mas eles nunca faziam aquilo que você pedia. Não podiam dar-se ao luxo de criar um mártir. Se você não tem medo, não podem fazer nada com você. Se tem, então começa a fazer tudo o que eles pedem. Eu dizia: “Se Deus está conosco, quem estará contra nós? Um milhão de agentes da KGB é zero aos olhos de Deus. Um sopro e deixam de existir”.
Qual foi o momento mais duro?
Foi quando internaram o meu irmão no hospital psiquiátrico. Diziam: “Se falar, salvamos a vida dele”. Foi muito difícil. Mas eu sabia que, apesar de tudo, também o meu irmão estava nas mãos de Deus. E, de fato, alguns meses depois, foi libertado.
Perdoou as pessoas que lhe fizeram mal?
Claro, sempre fui grata a elas. Foi através delas que vi a bondade de Deus. Eram pessoas muito infelizes. Ficavam desorientadas ao constatar que os seus métodos violentos não funcionavam comigo. Mas Deus faz-nos ver que existe outro tipo de força. E eu experimentei isso. Levaram-me para a Sibéria e disseram-me que não iria voltar viva. E aqui estou eu.
Acabou há pouco tempo o Ano da Misericórdia. O que significou para a senhora?
Cada ano, e também este que passou, está cheio de alegria e ao mesmo tempo cheio de dor (pensemos nas guerras e nas injustiças). A alegria e a dor vão sempre juntas, são o rosto da nossa cotidianidade. E aquilo de que mais precisamos é mesmo a misericórdia. O Jubileu nos fez recordar essa nossa necessidade: eu preciso continuamente do olhar de misericórdia de Deus para poder olhar os outros como Ele me olha. Quando perde a relação com Deus, o homem torna-se escravo do mal.
Hoje ainda é preciso lutar pela verdade?
Assim como nos tempos soviéticos existiam os irmãos da KGB, também hoje há quem só pense nos próprios interesses pessoais, quem se ponha sempre a si próprio no centro, não respondendo nem a Deus nem aos homens.
E o que a senhora faz?
Tomo uma posição diante dos fatos de evidente injustiça e tento estar fisicamente próxima das vítimas. Quando vejo que alguém sofreu uma injustiça, eu luto por aquela pessoa, sem me preocupar com a opinião pública. Recentemente, fui convidada a intervir no Parlamento e falei de um caso que tinha ficado pouco claro e que o sistema judicial declarou como encerrado. Nenhum partido tinha interesse em voltar a abri-lo e ninguém queria dar opinião sobre o assunto. Estava preocupada com a menina de dez anos que estava envolvida no caso. Noutra ocasião, há três anos, defendi publicamente uma jovem acusada injustamente, por motivos políticos, de estar envolvida numa organização terrorista. Quando adoeceu na prisão, levei-lhe remédios, e quando saiu, ajudei-a. Não me interessam as motivações políticas. Eu defendo a verdade e estou perto da pessoa. Não consigo ficar calada, mesmo que muitos me aconselhem isso. Dizem que sou uma “velha gagá”.
O que gostaria que fosse recordado da sua história?
Deus é bom para com todos, e também para conosco, pobres pecadores. As pessoas pensam que resisti com as minhas forças, mas não é verdade. Se temos confiança em Deus, somos invencíveis. O ódio é débil. Basta um sopro para acabar com ele. Quem está zangado nunca sai vencedor. Não tendo argumentos para demonstrar a verdade, usa a força. A nossa força é sermos fracos.