A liberdade de ter perguntas
Depois do encontro sobre A beleza desarmada, a escritora não crente PILAR RAHOLA continua o diálogo iniciado com Julián Carrón. Numa época de “caça aos heréticos ideológicos”, em que há resposta para tudo, eis porque «temos necessidade de vozes cristãs»Pilar Rahola é conhecida na Catalunha e no resto da Espanha como comentadora televisiva, jornalista e escritora. Dirigente da ERC (Esquerda Republicana da Catalunha), durante sete anos deputada em Madrid, abandonou a militância política há alguns anos. Não crente, confessa ter sido seduzida por A beleza desarmada de Julián Carrón, com quem se confrontou, no passado dia 14 de maio, no Punt Barcelona, num diálogo intenso e sincero (o vídeo integral e traduzido em italiano em clonline.org). Daí a pouco, a sua terra foi atingida no coração, com os atentados de Barcelona e Cambrils. A nossa conversa começa neste ponto.
Qual foi a sua reação?
Há mais de quinze anos que me ocupo dos acontecimentos ligados ao islamismo. Publiquei dois livros sobre a questão. Na época redigi até uma lista de imãs salafitas presentes na Catalunha e entreguei-a à polícia. Disse muitas vezes que estávamos sob risco de atentado, que era previsível mesmo que não se pudesse prever. Sabemos que Barcelona estava entre os objetivos dos jihadistas. O que sucedeu causa-me uma grande dor e uma grande raiva. Mas a liberdade é mais forte do que o ódio. Quiseram atingir o coração da liberdade, que é o tempo livre, o divertimento: por isso atacaram a Rambla. Mas a nossa reação foi voltar rapidamente às Ramblas para mostrar que o objetivo deles não fora atingido.
No encontro público com Carrón falou de uma outra «ameaça à liberdade», a que provém dos «dogmatismos éticos» do nosso tempo. O que quer dizer?
Creio que uma das grandes conquistas do Iluminismo tenha sido pôr a razão no coração do aparelho legislativo e da vida coletiva. Daí em diante, desenvolvemos conceitos de liberdade que nos enriqueceram enquanto sociedade, e de uma certa maneira todos progredimos no respeito, na ética social, na capacidade de compreender os outros, diferentes, etc.. A partir do Iluminismo as sociedades livres, as sociedades democráticas, procuraram cobrir progressivamente através das leis, as zonas de sombra do agir dos homens. Lutámos contra os preconceitos sexuais, raciais, contra a intolerância, a xenofobia … Tudo isto creio representar a parte positiva deste percurso em direção à liberdade. Qual é o problema? Que nesta vontade de “hiperlegalização” chegámos a um ponto no qual estamos a distorcer a liberdade. Na luta contra os preconceitos começámos a proibir o livre pensamento. Se outrora existiam as heresias religiosas, hoje existem as heresias sociais. Para dizê-lo em termos mais simples: o politicamente correto foi um modo de tornar melhor a sociedade, hoje é um aríete contra quem pensa de forma diferente.
Quer dizer que o Iluminismo se voltou contra aquele espaço da liberdade que o próprio Iluminismo tinha escancarado?
O Iluminismo entrou em crise. Em primeiro lugar, descobrimos que a razão não explica tudo. Em segundo lugar, as leis não resolvem todos os problemas. E por fim, há uma “caça aos heréticos ideológicos”. Houve um tempo no qual existiam pessoas que podiam ser perseguidas pela sua identidade. Hoje são desprezados aqueles que pensam sem se ater ao politicamente correto. Não creio que o Iluminismo não seja útil, creio que chegou a um beco sem saída. As sociedades livres são menos livres hoje do que no passado, enquanto temos mais leis que regulam a liberdade. É uma contradição, é um paradoxo.
Nesta situação, porque convida os cristãos – fê-lo várias vezes – a «sair do armário»?
Porque creio que os cristãos são, hoje em dia, nas sociedades livres e infelizmente também em muitas outras situações, as vítimas reduzidas ao silêncio. Sofrem o estigma da letra escarlate, como aquele que calhava às adúlteras em França. Durante muito tempo foram vistos como a cultura dominante, como o poder. É verdade que fizeram parte do poder, e nesta situação cometeram muitos erros. Mas hoje ser cristão no mundo ocidental começa a ser um problema. A cruz é malvista. É um fenómeno interessante, porque hoje o cristianismo está a voltar à sua raiz. Este caminho, que me parece um processo interessantíssimo e muito revolucionário, não é bem visto. Quando o bispo de Solsona, Xavier Novell, faz algumas afirmações numa homilia, dizendo que lhe parece que a falta do pai na família tradicional pode gerar algum problema nos filhos, monta-se uma grande polémica. É declarado pessoa «non grata», e por fim chega até a pedir perdão. Eu penso como Novell? Não. Mas Novell é uma vítima. Não pode acontecer que, em nome da liberdade, não se possa discordar do pensamento único.
Há uma forma de presença cristã nesta sociedade plural que procura propor à razão civil, à convivência civil, uma inteligência da realidade que nasce da fé. Não se pretendem hegemonias, não se invoca a lei divina, mas oferece-se livremente a todos uma visão dos problemas. Que contributo pode chegar desta chave de leitura?
Creio que esse é o pensamento de Julián Carrón. E parece-me muito interessante. Eu não sou crente, mas não o sou não porque não queira sê-lo, mas porque não cheguei ao ponto no qual o crer resolva as minhas dúvidas e o meu modo de entender a vida. Sabemos que a razão não explica tudo. Esta é a crise do Iluminismo, pensar que a razão tenha resolvido todas as interrogativas. Não é verdade. Criou outras. Vivemos numa sociedade cada dia mais complexa, mais desorientada, mais perdida. Por um lado, há qualquer coisa que está a desabar muito gravemente, e por outro há pessoas que através da fé introduzem grandes conceitos de progresso, liberdade, reflexão, maturidade social. Isto para mim é muito importante. Todos aqueles que levam a fé para dentro do debate coletivo contribuem sim para fazer que esse seja mais profundo, mais interessante e provavelmente muito mais rico.
Mas se se trata de fornecer um contributo civil, aquilo que a fé pode trazer em cada caso deverá passar através da liberdade e também através de um critério racional, não lhe parece?
Sem dúvida. Mas o problema é que antes de mais devemos permitir que este contributo da fé seja ajuizado positivamente. Quero dizer que aquilo que me preocupa mais do que tudo – e aqui eu sou um aprendiz do pensamento – a partir da minha posição distante do crer e da fé, é que no momento em que estamos a viver, aqueles que refletem mais profundamente sobre os abismos do ser humano são frequentemente pessoas crentes. Aqueles que se põem as perguntas a respeito da desorientação, dos receios, desta estranha sociedade que está a perder a esperança, são pessoas de fé. Tenho a impressão de que estou a verificar um fenómeno similar ao que se verificou no primeiro cristianismo, quando aqueles que revolucionaram o mundo e o mudaram foram pessoas de fé. Gostaria que este tema fizesse parte da reflexão geral. Não saberia dizer-lhe o que é que trazem especificamente, isso devê-lo-iam dizer as pessoas que têm a fé, como vós. Dou-lhe um exemplo. Um dos textos mais interessantes que li a respeito da situação atual é o de Bento XVI nas suas conversas com Habermas. Também o discurso que fez quando se deslocou a Inglaterra me pareceu muito importante. E também A beleza desarmada, entre todas as coisas que li, é um dos textos que me explicaram melhor o momento atual.
O que quer dizer tudo isto?
Talvez que tenha havido algo em que tenhamos falhado. Houve um momento na história em que decidimos que não havia espaço para as divindades no pensamento coletivo, mas pertenciam à esfera individual. Não estavam na praça pública. Hoje descobrimos que desta maneira não resolvemos os problemas que temos diante de nós. Substituímos os gurus religiosos pelos gurus políticos, substituímos a fé pela ideologia, mas queremos ainda dominar o mundo, resolver as nossas dúvidas e, sobretudo, superar os nossos medos. Por isto talvez devamos voltar a introduzir o conceito da fé. Porque me avizinhei de todo este mundo? Não porque o compreenda, mas porque me oferece uma luz, ajuda-me a refletir sobre temas sobre os quais normalmente não me deteria. Ajuda-me a voltar à base fundamental do ser humano, que é a bondade, a empatia com o próximo, ao nível fundamental que determina as coisas. Num certo sentido, isto é voltar ao catecismo. Quais são as pessoas no mundo, hoje em dia, que se empenham mais a favor dos outros? Em geral, pessoas de fé. O que quer isto dizer? Devemos reintroduzir este fator no pensamento coletivo, mas não saberia dizer como.
Há quatro ou cinco anos que ando pelo mundo, recolhendo testemunhos de cristãos perseguidos. Estive no Egito, na Síria, no Líbano, no Iraque, na Nigéria, na Índia. Encontrei algumas testemunhas de uma beleza impressionante, testemunhas de fidelidade, de gratuidade, de perdão, envolvidas positivamente na vida civil. Porque é que a senhora, que não é cristã, se interessa por este tema?
Estou a escrever neste momento um livro que se intitulará S.O.S. Cristãos. Desenvolvo uma análise da perseguição cristã no mundo, em três níveis. O primeiro é o evidente, claro, o da violência que tem a ver com a jihad e os extremismos. Um segundo nível é o dos países membros da ONU, nos quais pelo facto de seres cristão podes ser metido na prisão, condenado à morte, ou serem-te negados os direitos fundamentais. Creio que seria necessário fazer um mapa destes países, da Coreia do Norte à Arábia Saudita. E finalmente existe esta cristianofobia subtil que se encontra nas sociedades democráticas liberais, sobretudo as europeias, devida ao pensamento politicamente correto que marginalizou os cristãos. Isto interessava-me. Por um motivo simples: porque são vítimas e é negada a sua condição de vítimas.
A perseguição passa em silêncio.
As vítimas cristãs não existem. Morrem duas vezes. Morrem enquanto vítimas e morrem porque não são reconhecidas. São vítimas casuais, passavam ali. Nega-se que exista uma cristianofobia nos discursos, nos diálogos, em determinadas ideologias. Não pode ser que neguemos que existem milhões de pessoas que pela sua fé cristã, pelo facto de crerem em Cristo, vejam posta em perigo a sua vida ou a sua liberdade.
Por vezes tem-se a liberdade religiosa por um direito de segunda categoria.
O cristianismo foi o pensamento religioso do poder durante séculos. Mas os cristãos não devem por isso pagar hoje as consequências da opressão. Não me cai bem que me falem do passado. É evidente que a Igreja católica pode ter feito muitíssimos erros. Mas interpela-me o facto de que este sírio, este copta, ou este cristão que no Iraque, na Somália, na Nigéria, ou na Arábia Saudita não pode crer em Cristo porque lhe são negados os seus direitos. Porque negamos que existem cristão em perigo pelo facto de serem cristãos? Creio que são vítimas incómodas que o mundo votado ao progresso não sabe onde colocar. Eu não sou cristã – ainda que o seja culturalmente e obviamente existem aspetos da minha cultura cristã e católica dos quais continuo a ser profundamente impregnada –, mas isso não significa que eu não me preocupe para que, quem quer que seja, possa pregar Cristo ou seguir o seu Evangelho. Este assédio à fé, em muitas partes do planeta, tornou o mundo cristão muito interessante.
O cristianismo está a voltar a ser aquilo que foi nas suas origens: não uma religião de poder, mas uma religião de perseguidos.
Exato. Hoje ser um cristão em Bagdad ou na Somália, ou na Coreia do Norte, implica ter completado um percurso vital e pessoal em direção à transcendência muito profundo. Significa que se quer crer no cristianismo, que há algo que atrai para lá dos receios e das condições favoráveis. É algo de extraordinário, de luminoso.
É a consequência de uma decisão livre, de uma liberdade seduzida.
E de uma grande coragem. Como faço para não experimentar admiração por quem entra numa igreja em Damasco, sabendo que aí pode explodir uma bomba? Como pode não apresentar-se-me revolucionário, iluminante? E não falamos de duas pessoas, nem de vinte, ou cem, falamos de milhões.
É um tesouro para todos, crentes e não crentes.
É impressionante. E isto sim faz que o cristão, imediatamente, seja digno de grande interesse. Porque no fim, se me permite, o ensinamento de Cristo, do Novo Testamento no seu conjunto, torna-se um livro fundamental para a liberdade de toda a história.
No seu diálogo com Carrón dizia que, nas crises de hoje, estamos diante de uma sociedade sem perguntas. Porquê? Por medo, porque a razão faliu, porque em geral aceitamos respostas pré-fabricadas…
Entre outros motivos, porque temos já todas as respostas. Substituímos as perguntas pelas instruções. Talvez tenhamos deixado que os intelectuais pensassem pela nossa cabeça. Se lhes fazemos caso, a cada pergunta do ser humano responde-se com uma receita. A pergunta aparentemente é resolvida no plano ideológico, mas na realidade não o é.
A receita esvazia a pergunta.
A receita mata. Mais do que esvaziá-la, expulsa-a. No momento em que tu tens uma resposta pré-fabricada – e o politicamente correto pré-fabricou montanhas de respostas – não tens mais perguntas, parece que já as resolveste todas. Mas não resolveste nada, encontras-te num estado de perene extravio.
A pergunta, com efeito, reaparece sempre, mesmo quando a deitas fora.
Reaparece a pergunta, ou o mal-estar. Vivemos numa sociedade em que se procura regular tudo, e malgrado isso estamos perenemente extraviados, amedrontados. Não conseguimos encontrar a porta de saída.
Não temos sequer a coragem de reconhecer que estamos mal.
Não, porque também a felicidade é uma obrigação, faz parte do politicamente correto. O Estado paternalista resolve-nos tudo, não devemos ter nenhuma iniciativa pessoal, porque para cada necessidade há uma Administração que pensa por nós… No estatuto da Catalunha figura a obrigação de ser feliz. Em geral, nas reflexões que procuro fazer, não tenho diante de mim um interlocutor que se coloque as mesmas perguntas. Continuo a encontrar pessoas que têm todas as respostas, e apesar disso vejo que o mundo não vai de facto bem.
Provavelmente, a este nível reconhecer o desconforto pode ser um exercício de liberdade.
Reconhecer o extravio, e em seguida o desconforto que provoca em nós o não possuir as respostas. E se as encontras na fé, qual é o mal?
A fé, quando é autêntica, não elimina a pergunta: torna-a muito mais urgente.
Não tenho qualquer dúvida sobre o facto de que um crente é fundamentalmente uma pessoa cheia de dúvidas, mas pelo menos tem uma força que o inspira. Eu, por exemplo, tenho todas as minhas dúvidas assim como são, sem rede. O que ocupa o meu íntimo acaba por ser a minha família, os meus, o seu futuro, mas é evidente que a mim, que sou uma racionalista pura, falta algo, há algo que não resolvi. Perguntava-me no início porque é que os cristãos devem sair do armário. Porque temos necessidade deles. Não pode acontecer que uma amiga minha, no outro dia, me diga que tem medo de trazer uma cruz ao peito porque gozam com ela – gozam com ela! – numa democracia! Disse-lhe: «Eu tenho necessidade da tua cruz, porque significa que tu te sentes segura não da tua fé, mas da sociedade em que vives». É evidente que temos necessidade de vocês. A razão não resolveu aquilo que temos diante de nós.